“Não é previsível que haja um alívio nos preços dos bens alimentares nos próximos tempos”;

Analista da corretora XTB antecipa a evolução dos preços dos cereais
“Não é previsível que haja um alívio nos preços dos bens alimentares nos próximos tempos”
Os inventários de cereais a nível global são “os mais baixos em vários anos”, devido ao facto de as colheitas dos grandes produtores serem “menores do que inicialmente esperado” e de a seca ter “castigado as colheitas europeias” e estar “a ameaçar a próxima época de semeio na América do Sul”.
Em entrevista à “Vida Económica”, Henrique Tomé, analista da corretora XTB, antecipa a evolução dos preços dos cereais no mercado global, defende “uma maior intervenção” do Governo português para estimular a aposta na agricultura e deixa o alerta: a escalada dos preços na Europa “tenderá a aumentar”. E “não é previsível um alívio nos preços dos bens alimentares nos próximos tempos”.
Vida Económica - Para além de ajudar a economia da Ucrânia e de alimentar países em dificuldades, que efeitos podemos esperar no preço dos cereais a nível global? Uma descida generalizada? E menos especulação nos mercados?
Henrique Tomé -
As exportações de milho e trigo da Ucrânia aumentaram desde que um acordo entre a ONU e a Rússia permitiu o reinício dos carregamentos a partir de portos que tinham sido bloqueados desde o início da guerra. Mas resta saber o quanto a Ucrânia pode exportar, especialmente se a guerra se arrastar. Na quarta-feira [da última semana], Putin disse que a Rússia poderia retirar o apoio ao corredor marítimo depois de ter acusado Kiev de o utilizar para exportar para a União Europeia e Turquia em vez de para as nações mais pobres que mais necessitam dos alimentos, particularmente em África. Mesmo que o acordo se mantenha, os perigos de enviar navios para o Mar Negro, fortemente minado, juntamente com a falta de grandes navios e a exclusão de um grande porto, significam que os volumes transportados estão muito abaixo do objetivo da Ucrânia de duplicar as exportações agrícolas para pelo menos seis milhões de toneladas até outubro. Posto isto, os preços poderão resfriar as subidas nos mercados internacionais, mas não acredito que a tendência generalizada de subida se inverta.

VE - Portugal recebe anualmente vários cereais vindos da Ucrânia, nomeadamente milho. Fruto do bloqueio de cereais na Ucrânia e do aumento dos preços dos fertilizantes vindos da Rússia, deu-se uma retração nas áreas de sementeira de milho. E os custos de produção do que foi semeado foram mais elevados. Que reflexos vamos ter no mercado dos cereais e nos respetivos preços nos próximos meses?
HT -
Atualmente, registam-se os inventários de cereais mais baixos em vários anos, apesar da retoma das exportações da Ucrânia, uma vez que as colheitas dos grandes produtores são menores do que inicialmente esperado. A seca também castigou as colheitas europeias e está a ameaçar a próxima época de semeio na América do Sul.  Existe ainda um outro fator, que é a crescente procura global de gado que se alimenta de milho, consumindo as reservas. Não é previsível que haja um alívio nos preços dos bens alimentares nos próximos tempos.

VE - O conflito na Ucrânia está longe do fim. A Rússia acaba de dar ordem de mobilização de 300 mil reservistas para reforçar o contingente na Ucrânia. O que podemos esperar em matéria de evolução dos preços das matérias- -primas alimentares e dos alimentos a nível global, nomeadamente na União Europeia?
HT -
Na região de Mayenne, no noroeste de França, o principal país produtor de cereais da União Europeia, as secas têm afetado a qualidade do milho, que tem menos espigas, estimando-se que as colheitas estejam 35% abaixo da sua média. Em média, caiu menos de um centímetro [cúbico] de chuva em toda a França em julho. Os afluentes dos rios secaram à medida que as sucessivas ondas de calor e incêndios florestais devastaram os campos. Espera-se que a produção da UE atinja um mínimo de 15 anos, uma queda que levará o bloco a aumentar as importações em 2022/23 da Ucrânia em cerca de 30% em relação ao ano anterior para 10,4 milhões de toneladas. Uma maior procura de importações europeias significa menos para, por exemplo, ao continente africano. A escalada dos preços na Europa tenderá, pois, a aumentar.

VE - Portugal, muito embora seja membro da UE, dada a sua localização geográfica, está menos exposto à volatilidade dos preços alimentares? Ou, pelo contrário, como é muito dependente em várias áreas, pode sofrer impactos fortes?
HT -
Portugal está menos exposto ao conflito direto no Leste da Europa. Contudo, é importante notar que os problemas associados à inflação começaram muito antes da invasão da Rússia à Ucrânia. Esta situação acabou por agravar apenas a curto prazo uma questão que já não era novidade. Por outro lado, como não somos autossuficientes em diversas áreas, acabamos por sair prejudicados pelas subidas dos preços nos mercados internacionais.

VE - Que conselho deixa aos agricultores e aos responsáveis políticos em matéria de Agricultura em Portugal?
HT -
O nosso país tem condições para se tornar mais competitivo nesta matéria e para ter autossuficiência em algumas culturas. No entanto, o apoio dado aos agricultores até então não tem sido suficiente. É necessária uma maior intervenção do Governo neste tema para estimular o [setor] privado a apostar mais na agricultura. A aposta em mão de obra qualificada e incentivos fiscais à exploração desta área seria uma opção, que traria resultados a médio e longo prazo.
TERESA SILVEIRA (teresasilveira@vidaecononomica.pt), 06/10/2022
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