Uma visão distinta sobre o Plano de Recuperação Europeu – enquadramento & perspetivas;

Uma visão distinta sobre o Plano de Recuperação Europeu – enquadramento & perspetivas
No seguimento da proposta apresentada pela Comissão Europeia (final de Maio) relativamente à criação de um plano de resposta comunitário à devastação económico-social induzida pela crise da Covid-19, finalmente assistimos à indispensável aceitação por unanimidade dos responsáveis máximos dos países da União em sede do Conselho Europeu – naquela que foi uma das cimeiras europeias mais longas da história. Nas próximas linhas procuraremos identificar os termos e implicações do acordo alcançado, bem como as oportunidades económicas e de mercado que poderão advir para a Europa no geral.
 
1) O acordo
 
A génese da discussão ao longo dos mais de 4 dias de negociação da Cimeira Europeia continuou a fazer-se sobre os mesmos quatro elementos que se revelaram polémicos desde o início: i) montante global do fundo de recuperação; ii) mecanismo de correcção (rebates) de que beneficiam os contribuintes líquidos para o orçamento comunitário; iii) governança dos planos nacionais de recuperação e resiliência; iv) cumprimento das regras do Estado de direito pelos Estados-membros (este ponto faria mais sentido ser discutido no quadro do orçamento plurianual e não tanto no contexto da emergência pandémica).
Uma nova proposta de compromisso, com uma revisão da fórmula prevista para a repartição entre subvenções e empréstimos do futuro fundo de recuperação foi alcançada, surgiu depois de quatro dias de negociação ao bom género de um “faroeste político moderno”. Face à proposta inicial que já tinha o suporte do eixo franco- -alemão, o montante global do fundo de recuperação manteve-se nos EUR 750 mil milhões, mas a parcela de subvenções foi cortada de EUR 500 mil milhões para EUR 390 mil milhões, sendo os remanescentes EUR 360 mil milhões obtidos por via de créditos em condições favoráveis. A oposição mais veemente partiu dos países intitulados “4 frugais” liderados pela Holanda – qual Reino Unido no passado recente –, a que se juntou o papel secundário da Áustria, Suécia e Dinamarca, que rejeitavam qualquer tipo de fundo assente em transferências e o precedente histórico de emissão de dívida conjunta. 
Se o corte no mix de subvenções já era esperado, a magnitude desse corte acabou por ficar abaixo do limite mínimo que prevíamos (EUR 400-450 mil mn), com os países frugais a obterem também uma subida dos descontos sobre a sua contribuição para o orçamento comunitário. Para além da indiscutível supervisão que irá procurar assegurar a qualidade/controlo da distribuição dos Fundos Europeus ao nível de cada país, não deixa de ser curioso que os 4 países frugais que “apenas” representam 9% da população da União Europeia e 12,5% do PIB da região conseguiram que o presidente do Conselho Europeu (Charles Michel) cortasse 22% nas subvenções previstas, reduzindo a ambição do próprio plano, sobretudo porque os cortes previstos incidem em áreas tidas como estratégicas no futuro – nomeadamente o Programa Europeu para a Saúde, para a Transição Energética e para o Desenvolvimento Rural. 
No final e depois da esgrima, sem evidências de grandes sorrisos ou desilusões entre as fações (Norte-Sul e Leste-Oeste), o acordo foi naturalmente alcançado, uma vez que era óbvio que todos teriam de fazer concessões e ninguém aceitaria um acordo que pudesse ser interpretado como uma humilhação nacional. Não obstante, podemos apelidar este momento como histórico ao traduzir “um pequeno passo fiscal, mas um salto gigante para o projeto europeu” – uma vez que se criou um precedente na emissão de dívida conjunta que poderá servir como oportunidade para relançar a Europa no contexto económico, geopolítico e redimensionar os mercados europeus à escala internacional. 
   
2) A oportunidade de mercado 
& económica da Europa
 
O acordo alcançado poderá servir também para transformar o horizonte de investimento dos mercados financeiros europeus na cena internacional, abrangendo classes de ativos diversas, como o mercado de obrigações, cambial e de ações. No que respeita às obrigações, a criação de um “novo” mercado de dívida soberana que contemple a dívida conjunta da UE aguçará o apetite de investidores internacionais ao amplificar de forma significativa o montante de dívida com rating “AAA”, ainda para mais num contexto em que as emissões de dívida previstas pelos países da Zona Euro ajustadas aos programas de compra pelos respectivos bancos centrais revelam menos pressão a médio prazo quando se compara com o nível de emissões previstas noutros países desenvolvidos, como os EUA, UK e Japão. A própria remoção do risco existencial do bloco europeu com este acordo deverá igualmente redimensionar a procura por um círculo mais abrangente de investidores internacionais pela dívida dos países periféricos da Europa.
A perspetiva de uma maior estabilidade política e económica, a par da maior profundidade do mercado de obrigações europeu, deverá potenciar o estatuto da divisa europeia enquanto investimento e reserva de valor junto de investidores internacionais e de bancos centrais. O euro mantém-se demasiado subrepresentado em relação ao dólar norte-americano no sistema financeiro, em particular no total das reservas detidas pelos bancos centrais (cerca de 21% vs 62%, respetivamente). Este Plano de Recuperação Europeu poderá contribuir para reverter essa tendência, tanto mais que a evolução mais favorável da pandemia na Europa, aliada à perspetiva de uma evolução mais favorável dos saldos orçamentais e da balança comercial face aos EUA, deverá favorecer o reforço do posicionamento na divisa europeia.
No que respeita às vantagens que poderão observar-se no mercado accionista, o debate é mais complexo, uma vez que existe um crónico desconto “justificado” das ações europeias face às norte-americanas, em resultado de um conjunto de condições estruturais que favorecem os EUA. Desde questões fiscais, regulatórias e sobretudo por uma composição do tecido económico, corporativo e de mercados nos EUA que integra empresas tecnológicas de ponta e de elevado crescimento, as quais, pura e simplesmente, não existem na Europa. Ainda assim, a direção recente da política fiscal e monetária no bloco remove o risco de fragmentação que sempre “pesou” sobre as empresas europeias, ao passo que a canalização de verbas do Plano de Recuperação para a digitalização e transição energética são factores que deverão contribuir para dirimir algumas dessas disparidades em relação aos “peers” norte-americanos.  No contexto de tensões geopolíticas crescentes e da digladiação permanente EUA vs. China no que respeita à supremacia económica e tecnológica, a Europa poderá tomar a dianteira ao longo da nova década no que respeita ao investimento (público e privado), ao alto crescimento da indústria verde e aproveitamento das energias renováveis e à maior eficiência de infraestruturas de cidades inteligentes, princípios que estão na base do conceito estratégico que subjaz à economia circular, isto quando comparamos com o superior nível de “fossilização” energética a que continuamos a assistir tanto nos EUA como na China.
joão lampreia chief investment strategist do BiG, 30/07/2020
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