“Todos os projetos com mérito devem ser apoiados”;

António Costa Silva, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR, afirma
“Todos os projetos com mérito devem ser apoiados”
“Defendo que todos os projetos com mérito devem ser apoiados e o país tudo deve fazer para isso acontecer”, afirma António Costa Silva, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR.
A aposta na capitalização das empresas é, para António Costa Silva, uma das alavancas para Portugal sair da crise.
Sobre os empréstimos do PRR, considera que a política seguida pelo Governo, de utilizar em primeiro lugar as subvenções por não terem impacto na dívida pública, “é uma escolha acertada”.
Vida Económica – Que constrangimentos têm impedido o país de crescer nas últimas décadas?
António Costa Silva -
A crise pandémica voltou a colocar à vista de todos aquilo que são as debilidades do país: um mercado interno limitado; as empresas descapitalizadas; uma dívida pública elevada, que é ela própria inibidora do crescimento; uma economia ainda pouco diversificada e pouco virada para a criação de produtos e serviços de alto valor acrescentado; uma produtividade baixa; um baixo nível de investimento; uma carga fiscal elevada. O país tem feito um esforço, ao longo dos anos, para superar estes constrangimentos e, antes da eclosão da crise pandémica, a economia estava numa trajetória de recuperação, mas a crise pandémica, apesar de todos os apoios para se preservar a capacidade produtiva e ajudar as empresas, veio introduzir novas preocupações e incertezas.
Com o PRR e o PT2030 Portugal tem condições para sair da crise, apostando nas alavancas essenciais que podem propiciar um crescimento sustentável do PIB potencial do país na próxima década. Essas alavancas são, em primeiro lugar, o investimento nas qualificações e competências. Apesar dos avanços da educação em Portugal, nas últimas décadas, nós ainda somos um dos países da União Europeia com a percentagem mais baixa de cidadãos que terminam o ensino secundário e isso é uma espécie de espada de Dâmocles que inibe o crescimento. Investir na escola, no saber e no conhecimento é investir num dos motores geradores de crescimento.
A segunda alavanca é apostar na capitalização das empresas, que estão altamente descapitalizadas, e sem capital não há desenvolvimento económico nem crescimento. O nível de capital por trabalhador nas empresas portuguesas é dos mais baixos da União Europeia. A mudança do paradigma de financiamento às empresas, com a criação do Banco de Fomento e com o desenvolvimento, no âmbito do PRR, de dois grandes programas de recapitalização das empresas e dois programas de capitalização, e a subsequente articulação com os outros instrumentos – a banca comercial, as sociedades de capital de risco, o mercado de capitais, que tem de ser dinamizado – pode propiciar um caminho mais sustentável para o futuro.
A terceira alavanca é a literacia de gestão e financeira nas empresas e instituições. Os estudos mostram que o diferencial de produtividade de Portugal, quando nos comparamos com os países mais avançados do mundo, é explicado em cerca de 30 a 40% por deficiências da gestão e é por isso que os programas de auxílio às empresas devem ser condicionados ao refrescamento das equipas de gestão com a frequência de cursos expeditos preparados pelas Faculdades de Economia e Gestão.
A quarta alavanca é o ecossistema de inovação. O país avançou muito nas últimas décadas na criação de um sistema científico e tecnológico avançado, mas há que melhorar a ligação das universidades e centros de investigação com o tecido empresarial, assegurar o financiamento da inovação num horizonte temporal mais alargado para o tornar sustentável, rever o sistema de incentivos à inovação, adaptando-o às especificidades dos diferentes clusters, rever as redes de interface entre empresas e centros de investigação para dar foco e continuidade às agendas. Portugal tem hoje todos os ingredientes para dar um salto em termos de inovação e criar uma economia avançada, capaz de criar produtos e serviços de alto valor acrescentado. Para isso, precisa de aliar o ciclo da imitação tecnológica, que permite adaptar as melhores práticas e tecnologias existentes em cada setor de atividade, a um ciclo sustentável de inovações na fronteira tecnológica, o que pode ser decisivo para o futuro. Algumas indicações fornecidas pelas propostas das empresas e dos centros de inovação, no âmbito das Agendas Mobilizadoras do PRR, apontam nessa direção, e isso mostra como o tecido produtivo e o sistema científico e tecnológico estão preparados para o salto.

VE – Portugal revela alta “performance” na criação de produtos e serviços inovadores, mas o crescimento económico é baixo. O que está a falhar?
ACS -
De facto, se olharmos para os resultados da investigação do Laboratório do Crescimento da Universidade de Harvard, que monitoriza o desempenho das economias mundiais, entre 2002 e 2017 Portugal criou 39 novos produtos e serviços, alguns de alto valor acrescentado. Foi a 12ª economia do mundo neste indicador, o que é notável, mas depois, quando vemos o nosso crescimento anémico, isto é um murro no estômago. Onde estamos a falhar? Estamos a falhar na persistência e continuidade das políticas públicas; estamos a falhar na sabedoria e inteligência, que são necessárias em muitas dessas políticas; estamos a falhar na gestão e na organização; estamos a falhar na fraca capacidade de criarmos marcas globais; estamos a falhar porque o conteúdo importado das nossas exportações é muito elevado tendo em conta que preferimos muitas vezes importar a matéria-prima do exterior, fabricar os produtos e exportá-los, quando parte dessa matéria-prima pode ser obtida em território nacional, se existir melhor organização e coordenação estratégica entre os atores económicos e maior capacidade colaborativa; estamos a falhar no marketing, na capacidade de venda dos nossos produtos; estamos a falhar na subida da nossa competitividade nas cadeias de valor, na exploração das sinergias, do conhecimento e da tecnologia, que possam alavancar e sustentar a nossa subida nessas cadeias de valor. E falhamos às vezes na internacionalização e na capacidade de usar as plataformas eletrónicas para vender nos mercados globais.

VE – A questão dos empréstimos do PRR tem levantado alguma polémica. Qual é a sua opinião sobre esta questão?
ACS -
Creio que a política seguida pelo Governo é utilizar em primeiro lugar as subvenções previstas no PRR porque estas não têm impacto na dívida pública. É uma escolha acertada. O recurso aos empréstimos é equacionado como última opção,  a utilizar apenas quando é estritamente necessária. Isto pode acontecer, por exemplo, no âmbito das Agendas Mobilizadoras, onde a resposta das empresas e do sistema científico e tecnológico foi extraordinária e, portanto, as verbas previstas são insuficientes. Defendo que todos os projetos com mérito devem ser apoiados e o país tudo deve fazer para isso acontecer porque estes projetos são um vislumbre do que a economia do país pode ser daqui a dez anos, muito mais inovadora, mais assente no conhecimento, uma economia baseada na inovação tecnológica e não nos baixos salários, com muito maior incorporação do produto nacional e mais orientada para a transição climática e para a transição digital. Se isto implicar o recurso a empréstimos, para colmatar o remanescente do investimento necessário, é preciso fazer uma análise custo/benefício e esta pode perfeitamente ditar que é uma boa opção, tendo em conta as baixas taxas de juro existentes. Mas, como sabemos, também isso pode mudar porque o aumento dos preços da energia, e das matérias-primas em geral, aliado às disrupções nas cadeia de abastecimento, estão a pressionar a inflação em alta e isto parece ser um fenómeno estrutural mais do que conjuntural, e é preciso ter isso em conta para o futuro.

VE – Acha que a falta de redimensionamento das empresas poderá dificultar o cumprimento dos objetivos traçados pelo PRR, tais como a transição climática e digital? Que se poderia melhorar neste capítulo?
ACS -
Sim, como é sabido, temos um tecido empresarial que é esmagadoramente dominado por pequenas, médias e microempresas. Existe, portanto, um problema de dimensão e falta de escala e isso cria constrangimentos sérios. Mas nós não podemos hostilizar as grandes empresas, como muitas vezes acontece no país, porque isso é contraproducente. Precisamos de empresas grandes e médias porque elas são dínamos da economia, agregam e impulsionam cadeias de valor, funcionam como polos aglutinadores e organizadores dessas cadeias de valor e são decisivas para o país ter um crescimento mais significativo e sustentado. É por isso que temos de ter políticas multidimensionais dirigidas para as PME, como tem acontecido, mas também para o resto de tecido empresarial. O país não vai crescer significativamente se apostarmos apenas numa espécie de “Portugal dos Pequeninos” para a economia. Precisamos mais do que isso e  acredito que no âmbito das políticas de investimento do PRR e dos Programas de Capitalização das empresas possam existir mecanismos que favoreçam a consolidação e os ganhos de escala que são decisivos para o futuro. E se olharmos para questões como a transição climática e a descarbonização da economia, isto não se vai materializar se deixarmos as grandes empresas de fora e por isso no PRR deve ser dada atenção especial a empresas como siderurgias, cimenteiras e petroquímicas, porque estas empresas têm feito um caminho notável na descarbonização, com a eletrificação dos seus processos de produção, o processamento dos resíduos, o uso de energias renováveis, a atenção aos novos materiais menos poluentes, mas precisam de fazer ainda mais, dada a sua pegada carbónica, e todo esse esforço deve ser estimulado e apoiado ao mesmo tempo que se deve atender à especificidade das PME. Para a transição digital o processo é também exigente, até porque o nível de competências digitais do país, apesar de algum avanço nos últimos anos, ainda é baixo em comparação com a média europeia. A aposta nas competências digitais é aqui decisiva porque sem competências digitais não há digitalização, e a preocupação é muita para superarmos esta fragilidade.

VE – Que investimentos devem ser privilegiados na execução do PRR/Portugal 2030 para termos um crescimento real do país nos próximos anos?
ACS -
Os investimentos previstos no PRR devem ser executados porque, se não o forem, o tipo de contrato negociado com a União Europeia cria grandes constrangimentos a financiamentos posteriores. Mas se quisermos selecionar investimentos, como exercício conceptual, são aqueles que são mais decisivos para um crescimento significativo e sustentável na próxima década: o investimento nas qualificações e competências; o investimento na Ciência e Inovação para vir a representar 3% do PIB em 2030, quando hoje está em cerca de 1.4%, muito abaixo da média europeia; o investimento nas empresas e nos centros de Inovação, apoiando todos os projetos com mérito apresentados no âmbito das Agendas Mobilizadoras do PRR, porque estes podem levar o país a um novo ciclo de desenvolvimento e de inovação tecnológica.

Mudar o “paradigma cultural”

VE – Defende que para o PRR poder ser um instrumento transformador do país é preciso mudar o “paradigma cultural”. Pode explicar esta ideia?
ACS -
Uma das razões por que Portugal não é um país mais desenvolvido e capaz de explorar todo o seu potencial tem a ver com o paradigma cultural português: somos um povo muito individualista, falamos pouco uns com os outros, ouvimo-nos pouco uns aos outros e refugiamo-nos, na maior parte das vezes, em lutas autofágicas e guerras de alecrim e manjerona, onde consumimos recursos e energia que deviam estar concentrados no desenvolvimento de projetos aglutinadores capazes de criarem mais riqueza para o país e mudarem o nosso crescimento, que tem sido anémico. Tudo isto se reflete nos nossos modelos de trabalho e organização: funcionamos em silos, estamos mais preocupados em proteger os nossos feudos e em manter o “status quo” e somos muitas vezes incapazes de criar grandes plataformas colaborativas - políticas, institucionais, sociais, empresariais, sindicais e também plataformas de cidadãos –  capazes de superarem as nossas diferenças e aglutinarem vontades, corporizando projetos transformadores. E o problema está hoje ainda mais exacerbado com a crescente polarização e fragmentação da sociedade portuguesa e o surgimento de movimentos extremistas demagógicos que exploram o medo e apostam na demonização do outro e na exclusão do outro. Uma sociedade sem um elo coletivo, sem um desígnio, sem uma visão estratégica transforma-se numa coleção de cidadãos desgarrados que se afundam nas suas guerras intestinas e falham o futuro.

VE – Até que ponto o PRR pode ser também um instrumento de reconstrução da confiança dos cidadãos?
ACS -
O PRR precisa de ser um instrumento de reconstrução da confiança dos cidadãos em duas dimensões que são vitais. Primeiro, na reformatação do modelo de “governance”, porque hoje, nas sociedades do conhecimento, não é possível governar apenas com o modelo hierárquico tradicional que funciona de cima para baixo. Ele deve ser articulado com um funcionamento de baixo para cima, mobilizando todos os saberes acumulados no país em todas as áreas, mobilizando os cidadãos e as diferentes plataformas sociais, empresariais, científicas, para participarem na vida pública e na formatação das políticas, estimulando a intervenção multifacetada dos cidadãos e das instituições. E a outra dimensão é o reforço da transparência, da prestação de contas e da submissão ao escrutínio público. No documento sobre a Visão Estratégica para o país na próxima década, que preparei a pedido do senhor Primeiro-Ministro, defendi a criação de um Portal da Transparência para o PRR, onde sejam indicados todos os investimentos feitos, a alocação de recursos, o grau de execução dos projetos, o cumprimento das metas e dos contratos, etc… para ser acompanhado pelos cidadãos e pelas entidades que o entenderem. O Portal da Transparência foi criado e é um passo importante na construção da confiança e no exercício do escrutínio público.

VE – Portugal pode melhorar o seu desenvolvimento se o PRR e o Portugal 2030 forem melhor trabalhados com as empresas, ensino superior e centros de investigação?
ACS -
Sim, claramente, Portugal pode melhorar o seu desenvolvimento se souber aplicar e utilizar bem estes instrumentos e se souber mobilizar a sociedade civil, as empresas, o ensino superior, os centros de investigação.
Há que rever também os mecanismos de planeamento estratégico da Administração Pública e melhorar a capacidade de coordenação estratégica da multiplicidade de organismos que vão intervir na execução do PRR e do PT2030.
Portugal o máximo que executou de fundos europeus num ano foi de 2500 a 3000 milhões de euros. Vamos ter agora mais do dobro e portanto a capacidade de execução vai estar à prova e isso exige mudanças na mentalidade burocrática prevalecente, no excesso de procedimentos regulamentares e administrativos, na pesada carga burocrática existente e que condiciona as instituições e as empresas, o que leva a uma excessiva concentração de recursos naquilo que é a burocracia e menor concentração no que é decisivo, que são as atividades que criam valor, que consolidam a inovação e mudam e transformam de facto o país.

“O país tem potencial para criar riqueza”

António Costa Silva entende que os decisores políticos deveriam concentrar-se mais em criar riqueza do que em distribuir riqueza.
“De facto nós passamos muito tempo em Portugal a discutir como distribuir a riqueza e damos pouca atenção à discussão sobre a criação de riqueza. Se formos capazes de criar mais riqueza, podemos ter um país mais próspero, mais coeso e mais justo na próxima década. O país tem potencial para criar riqueza e para se transformar, como uma vez mais ficou patente na resposta extraordinária das empresas e do sistema científico e tecnológico no âmbito das Agendas Mobilizadoras do PRR. Se tivermos uma boa alocação dos recursos financeiros para a inovação e o desenvolvimento tecnológico, o país tem todos os ingredientes para dar um salto e ter um caminho sustentável de inovação na fronteira tecnológica, o que exercerá um efeito de arrasto e de galvanização de todo o tecido produtivo. As empresas altamente inovadoras são alavancas decisivas, propiciam mais rapidamente a criação de produtos e serviços de alto valor acrescentado, são dínamos da economia do conhecimento e são novos polos de emprego, funcionando como excelentes elevadores da mobilidade social. Portanto, o problema é multidimensional mas com políticas públicas sábias e com a mobilização que já existe no tecido empresarial e no sistema científico e tecnológico, o salto é possível. Mas não podemos esquecer também a distribuição da riqueza porque vivemos numa sociedade muito desigual e, como nos explica a História, as desigualdades extremas são tóxicas, em particular nas sociedades democráticas. É um traço distintivo da civilização não deixar ninguém para trás, proteger os mais vulneráveis e apostar nos serviços básicos da educação e da saúde. É preciso dar corpo a uma nova política de respostas sociais, e de renovação dos equipamentos sociais porque os últimos estudos indicam que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza e a pandemia acentuou este flagelo. O maior ativo que o país tem são as pessoas e investir na sua recuperação e qualificação e na sua saúde é fulcral, até porque estamos confrontados com uma crise demográfica muito profunda”, conclui.


VIRGÍLIO FERREIRA (virgilio@vidaeconomica.pt), 14/01/2022
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