“As pessoas precisam de estar habilitadas para resistirem às catástrofes”
“De um modo geral, a magnitude de uma catástrofe está muitas vezes diretamente relacionada com anteriores escolhas de desenvolvimento feitas pelos governos, comunidades locais e atores internacionais. Quanto aos incêndios em Londres e em Portugal, medidas regulatórias ou estruturais, tais como regulamentos de construção mais apertados e melhor ordenamento do território, podem mitigar o impacto de possíveis eventos futuros”, afirma Andrea Kraus, engenheira de risco de resseguro da Daimler Insurance Services e autora do livro “Desastres Narurais”.
Segundo a mesma responsável, “as pessoas precisam de estar habilitadas para resistirem às catástrofes, reduzindo a sua vulnerabilidade às mesmas, em vez de as evitar”. Por isso, “as estratégias de gestão de risco devem ser concentradas nas pessoas”, conclui.
Segundo a mesma responsável, “as pessoas precisam de estar habilitadas para resistirem às catástrofes, reduzindo a sua vulnerabilidade às mesmas, em vez de as evitar”. Por isso, “as estratégias de gestão de risco devem ser concentradas nas pessoas”, conclui.
Vida Económica - De acordo com a sua pesquisa, quais são as lições que devemos aprender com o período internacional de ajuda e reconstrução, após o tsunami?
AK - “Dê um peixe a um homem, e alimentá-lo-á por um dia. Ensine um homem a pescar, e alimentá-lo-á para toda a vida.” Este ditado chinês descreve bem uma das principais lições aprendidas com a situação que se segue a um evento desastroso como o tsunami, que atingiu, entre outros países, a Tailândia, em dezembro de 2004. Durante a minha investigação no terreno, em agosto e setembro de 2005, em Khao Lak/Tailândia, estudei o impacto económico de um desastre natural e do período seguinte de reconstrução e aprendi que a ajuda fornecida após um evento catastrófico pode tornar-se inútil e até piorar a situação das pessoas afetadas caso não seja devidamente planeada e levada a cabo.
Do ponto de vista económico, a ajuda e a presença das organizações de ajuda humanitária tiveram efeitos diretos e indiretos (tanto positivos como negativos) ao nível do mercado local. O que se pode dizer é que, por uma questão de princípio, as pessoas afetadas não devem ser tratadas como vítimas indefesas e a ajuda não deve ser simplesmente dada de mão beijada. Em vez disso, as sociedades precisam de ser reforçadas através do fortalecimento dos seus mecanismos internos ou da sua resiliência. Assim, as pessoas poderão aprender a lidar melhor com futuros desastres, pelo que a dependência da ajuda externa pode ser evitada e a recuperação será mais sustentável.
Mais concretamente, no caso de Khao Lak, a chegada da ajuda externa foi bem-vinda e essencial para o processo de recuperação, não só pela sua assistência financeira e técnica, mas também por apoiar a economia local, exigindo instalações e serviços turísticos. No entanto, o fornecimento de assistência também pode ser contraproducente, ou ser mais nocivo do que benéfico, se não for feito corretamente. Segundo a minha pesquisa, as lições aprendidas são as seguintes:
– As comunidades têm de participar, caso contrário, poderá haver uma lacuna entre a perceção internacional das suas necessidades e as suas necessidades reais, tal como elas são vistas pelas comunidades locais e pelas pessoas afetadas, uma lacuna que acaba por resultar num sentimento de frustração.
– A coordenação entre doadores é fundamental. A má coordenação pode levar a um excesso de oferta, no caso de certos bens (no caso de Khao Lak: casas e barcos de pesca) ou serviços, enquanto, noutros casos, pode levar precisamente ao fenómeno oposto.
– O auxílio deve ser distribuído e concedido de forma igualitária e justa. Durante a minha investigação no terreno, pude observar a discriminação de certos grupos; vi missionários a aproveitarem-se da situação para concederem auxílio apenas a pessoas necessitadas que fossem cristãs ou que, entretanto, se convertessem; também surgiram problemas sociais, por exemplo, nos casos em que vizinhos receberam casas de tamanhos diferentes.
– O auxílio desajustado ou inadequado é inútil ou pode até ter um valor negativo. Pude observar voluntários cercados por pessoas locais que, curiosos, lhes perguntavam sobre o que estavam a construir. Quando receberam a resposta “galinheiros”, ficaram bastante surpresos, uma vez que, tradicionalmente, na Tailândia, as galinhas são deixadas livres.
– O auxílio pode ser um desincentivo ao trabalho; durante os primeiros meses após o tsunami, observou-se que, em vez de trabalharem, algumas pessoas preferiam ficar nos campos de refugiados, à espera que as organizações de ajuda humanitária ou pessoas privadas lá passassem, distribuindo gratuitamente dinheiro ou mercadorias. Em alguns casos, os campos voltaram a encher automaticamente, depois de os seus habitantes se mudarem para as suas novas casas.
VE - Em alguns aspetos, existem problemas e soluções comuns relativamente às formas de reconstruir as regiões que são vítimas de catástrofes naturais, ou de prevenir esses desastres?
AK - Sim e não; é claro que cada desastre é diferente, considerando o seu impacto económico e humano e as causas subjacentes que levam a esse resultado catastrófico. Mas, como Kofi Annan disse uma vez: “Não podemos parar as catástrofes naturais, mas podemos e devemos equipar as pessoas e as comunidades para resistirem a elas”. Este é o ponto crucial que todas as regiões que são vítimas de catástrofes naturais têm em comum.
É importante fomentar a capacidade das pessoas para enfrentarem estas catástrofes e aplicarem estratégias e medidas que reduzam o risco estrutural em relação às mesmas. O tratamento adequado do risco de catástrofes e dos seus potenciais efeitos deve ser realizado em três fases: antes [“ex ante”] (gestão de risco, que inclui identificação e avaliação do risco, mitigação de catástrofes e financiamento do risco), durante (alívio), e depois [“ex post”] (reabilitação e reconstrução). As abordagens “ex ante” e “ex post” devem andar de mãos dadas. No entanto, é necessária uma mudança de foco, de “ex post” para “ex ante”, uma vez que este é mais sustentável a longo prazo: as pessoas precisam de estar habilitadas para resistirem às catástrofes, reduzindo a sua vulnerabilidade às mesmas, em vez de as evitar. Portanto, as estratégias de gestão de risco devem ser concentradas nas pessoas, pelo que a participação das comunidades desempenha um papel essencial.
Alguns problemas comuns são, por exemplo, o risco moral existente devido ao fornecimento dos recursos necessários após a catástrofe pelo governo ou pela comunidade internacional de doadores. Portanto, as pessoas ou os governos podem não se sentir motivados a comprometerem-se proativamente com medidas de mitigação e prevenção de desastres. Estes também podem, simplesmente, não estar cientes do risco a que estão expostos. Além disso, a ajuda externa pode ter um impacto negativo sobre os mecanismos de defesa da sociedade, podendo diminuir a sua eficiência e eficácia.
Melhor ordenamento do território pode mitigar impacto dos incêndios
VE - Tivemos, recentemente, incêndios dramáticos em Londres e em Portugal. O número de vítimas é consequência de erros e falta de prevenção?
AK - Um desastre pode ser definido como uma interação entre fenómenos físicos ou naturais extremos e um grupo humano vulnerável, levando a uma ruptura e destruição gerais, perda de vidas e feridos. Portanto, não é suficiente ocorrerem fenómenos físicos ou naturais extremos, mas é também necessário que haja elementos em risco e alguma vulnerabilidade. Só neste caso o evento se torna um desastre. No caso dos incêndios catastróficos em Londres e Portugal, parece haver uma combinação infeliz de uma alta vulnerabilidade física com um número relativamente elevado de seres humanos em risco, causando um resultado devastador.
Na minha opinião, as questões que devem ser levantadas são: as medidas adequadas de gestão de risco (especialmente, prevenção de risco e prontidão) estavam em vigor? Ocorreram erros durante as atividades de resposta dos meios de emergência?
A longo prazo, todas as partes interessadas devem mudar as suas perceções e comportamentos, de modo a reduzir o risco de catástrofes e os seus possíveis efeitos.
De um modo geral, a magnitude de uma catástrofe está muitas vezes diretamente relacionada com anteriores escolhas de desenvolvimento feitas pelos governos, comunidades locais e atores internacionais. Quanto aos incêndios em Londres e em Portugal, medidas regulatórias ou estruturais, tais como regulamentos de construção mais apertados e melhor ordenamento do território, podem mitigar o impacto de possíveis eventos futuros. Por agora, resta-nos esperar que as partes interessadas responsáveis aprendam com os erros cometidos e introduzam respostas conscientes.
VE - Como vê o papel das organismos públicos, dos cidadãos e da sociedade civil em geral?
AK - Os cidadãos, a sociedade civil e a comunidade internacional de doadores (ou seja, organismos públicos e privados) têm os seus papéis a desempenhar durante as três fases de uma catástrofe.
A palavra catástrofe implica uma combinação de perdas que podem ser demasiado grandes para que a sociedade afetada consiga lidar com elas utilizando apenas os seus próprios recursos. Portanto, pode ser necessária assistência externa. A comunidade internacional de doadores atua como “seguradora de último recurso” no caso de, por exemplo, um país não conseguir financiar, pelos seus próprios meios, as perdas ocorridas na catástrofe, assim como os esforços de socorro e reconstrução; ou quando os governos não conseguem intervir diretamente na ajuda operacional de emergência e ajuda ao desenvolvimento e não existem práticas proativas de gestão de risco.
O papel dos cidadãos é estarem cientes dos riscos que (potencialmente) enfrentam e protegerem-se tanto quanto podem. Isso pode ser feito, por exemplo, através da criação e da colocação em vigor de medidas de mitigação, como medidas de proteção contra incêndio; através do respeito das regras de construção, para a sua própria segurança; ou assegurando a cobertura de algum seguro sempre que possível e comportável. Na minha opinião, os cidadãos devem responsabilizar-se por se protegerem, fazendo preparações “ex ante”, em vez de confiarem em outros, como, por exemplo, o Governo ou outros organismos públicos, para os “salvarem” caso seja necessário.
O papel da sociedade civil, por outro lado, torna-se mais óbvio após a catástrofe, quando as redes sociais tradicionais oferecem “seguros informais”, como a prestação de serviços de alojamento gratuitos ou a disponibilização de mão de obra também gratuita.
VE - Também enfrentamos atentados terroristas cada vez mais frequentes. Não sendo um desastre natural, os riscos de terrorismo devem ser prevenidos e enfrentados como os de outras grandes catástrofes?
AK - Em geral, o risco pode ser visto como a probabilidade de uma catástrofe multiplicada pelas perdas esperadas, que, por sua vez, dependem da vulnerabilidade estrutural e dos elementos em risco.
A principal diferença entre catástrofes naturais e eventos terroristas é que o aparecimento das catástrofes naturais não pode ser evitado, enquanto o terrorismo é tipicamente classificado como uma catástrofe artificial. Assim, é impossível evitar as catástrofes naturais e, portanto, o foco deve ser diminuir a vulnerabilidade estrutural e a quantidade de elementos em risco. No que diz respeito a ataques terroristas, porém, pode-se e deve-se abordar a causa do problema, que pode englobar a motivação política, questões sociais ou crenças religiosas radicais. Por esta razão, acredito que, para os riscos de terrorismo, é mais eficaz e razoável haver um foco na solução da causa, ao mesmo tempo que se diminui a quantidade e intensidade de elementos em risco.
Do ponto de vista dos seguros, a principal diferença entre as catástrofes naturais e aquelas causadas pelo homem é que, regra geral, o terrorismo é excluído da cobertura normalmente solicitada (contra danos no veículo próprio ou relativos à proteção de propriedade privada) e, portanto, a cobertura de seguros é, muitas vezes, insuficiente como medida de mitigação. Como resultado disso, os governos precisam de intervir e assumir a responsabilidade de proteger os seus cidadãos e combater a causa do terrorismo. Em alguns países (por exemplo, em Espanha), existem fundos que fornecem cobertura contra ataques terroristas e são até geridos ou objeto de resseguro pelo governo, uma vez que se tratam de riscos pouco atraentes para o mercado de seguros.
Alerta para todas as forças vivas da sociedade
Ao longo do próximo meio século, estima-se que os desastres naturais e as respetivas perdas subam drasticamente. Assim, a redução do risco de ocorrência de uma catástrofe é um ponto crítico da atualidade – não só para os residentes e os governos de países em desenvolvimento, mas também para os dos países desenvolvidos, incluindo as agências de desenvolvimento e a indústria de seguros. O livro “Desastres Naturais”, editado pela Vida Económica em conjunto com a Liberty Seguros, aborda o tema dos impactos económicos dos desastres em países menos desenvolvidos e países emergentes, tendo como exemplo o impacto do tsunami de 2004 na Tailândia. Os efeitos macroeconómicos são analisados tendo em conta também os efeitos sobre o nível microeconómico, de modo a mostrar a importância de uma análise a vários níveis dos desastres. Ao explorar o impacto económico sobre o nível local de uma forma mais detalhada, o livro mostra ainda que a resposta dada pelas sociedades aos desastres deve ser analisada de forma crítica. São analisados tanto os efeitos económicos positivos como os negativos, decorrentes da ação das entidades responsáveis pela gestão dos desastres a nível local. Tal como refere António José de Sousa, presidente e CEO da Liberty Seguros Portugal, no prefácio do livro de Andrea Kraus: “Espero que este livro seja um alerta para que todas as forças vivas da sociedade preparem com consciência um verdadeiro plano de ação nacional”. |