“As taxas de arbitragem e encargos com os processos arbitrais são absolutamente proibitivos”
Presidente do Clube de Futebol Os Belenenses, advogado e co-autor do Dicionário de Autores Portugueses e também Quem Marca este Penalty?, Patrick Morais de Carvalho aborda nesta entrevista o regime das sociedades desportivas, o Tribunal Arbitral do Desporto, as compensações a clubes formadores e a proibição de os direitos desportivos serem detidos por partes terceiras
Considera que o atual regime das sociedades desportivas regula convenientemente as relações entre clubes fundadores e as sociedades desportivas pelos mesmos fundadas?
O regime jurídico atual procurou, sem ter sido plenamente bem sucedido, dotar as sociedades desportivas dos instrumentos necessários que permitam a sua adoção pelos clubes participantes em competições desportivas de carácter profissional, tendo havido o bom senso de se salvaguardar, entre outros aspectos, a defesa dos direitos dos associados do clube fundador, atribuindo-lhes direitos especiais, nomeadamente garantindo a obrigatoriedade das instalações desportivas reverterem para o clube em caso de extinção da sociedade. A verdade é que a realidade das sociedades desportivas reclama, em vários aspectos, um regime especial, na medida em que são tutelados interesses específicos, muito diferentes daqueles que estão na génese do regime geral das sociedades comerciais. Por isso, seria necessário que o legislador fosse suficientemente hábil na identificação desses interesses e na escolha dos meios que permitissem assegurar, de modo eficaz e coerente, a respectiva tutela, o que não me parece que tenha acontecido. As SAD são tratadas como verdadeiras sociedades comerciais de capitais quando o legislador devia intuir que essas sociedades têm especificidades próprias, desde logo porque têm investimento de “coração”, de “sentimento” – que é o investimento dos sócios do clube fundador –, motivo pelo qual tem sido tão difícil chegar a um regime substantivo perfeito, que preveja todas as especificidades e características destas sociedades. É verdade que, no plano teórico, as acções de que os clubes fundadores são titulares conferem sempre o direito de veto sobre as matérias estruturantes da sociedade e que a atribuição desses direitos de veto tem implícita uma manifestação fortíssima do princípio da prevalência do clube no processo decisório da sociedade, mas, na realidade, esse mecanismo não consegue per si garantir que, na prática, haja uma política de estreita proximidade entre investidores e clube fundador e não consegue evitar investidas puramente especulativas sobre os clubes fundadores. Diria, em suma, que a falta de sensibilidade do legislador paira sobre as SAD, que a redação pouco clara e de difícil articulação sistemática que atravessa todo o regime suscita problemas e que se deveria olhar com especial atenção para a necessidade dos clubes fundadores serem mais protegidos, os membros nomeados pelos clubes fundadores deverem ser obrigatoriamente elementos executivos das sociedades, sendo que, em paralelo, não é aceitável que se reduza o limiar da participação mínima dos clubes fundadores para 10% do capital, reduzindo ao mesmo tempo as suas garantias e as dos seus representantes em cada momento, enquanto titular da SAD. Acrescento ainda que seria também muito importante garantir-se que a livre transmissibilidade de acções não põe em causa os princípios da verdade desportiva e a integridade das competições, ao mesmo tempo que é imperioso encontrarem-se ferramentas de articulação com as entidades policiais no sentido de ser feito um maior rastreio sobre os fluxos financeiros das SAD.
É vantajosa a criação do Tribunal Arbitral do Desporto para a discussão de matérias desportivas?
O TAD, que iniciou funções no dia 1 de Outubro de 2015, foi idealizado com o objetivo de assegurar a realização da justiça desportiva através da universalidade, autonomia e especialização, e, entre as suas atribuições, destacam-se a competência exclusiva para apreciação dos litígios emergentes de sanções aplicadas pelos órgãos disciplinares das federações desportivas e ligas profissionais, e para a apreciação da justa causa de resolução do contrato de trabalho que assim sai da alçada da Comissão Arbitral Paritária. E portanto, em tese, a criação do TAD é vantajosa e constitui uma evolução se acreditarmos que os conflitos do desporto, e do futebol português em particular, vão ser objecto de decisões mais céleres e mais justas com esta especialização da justiça desportiva. Só o decorrer do tempo poderá trazer a resposta a esta questão, sem que desde já tenha que se colocar a questão dos preços do acesso a esta nova justiça desportiva, uma vez que, para já, as taxas de arbitragem e encargos com os processos arbitrais são absolutamente proibitivos para a generalidade dos potenciais interessados, o que pode impedir o acesso à justiça desportiva que em tese deve ser universal.
Faria sentido um tribunal deste tipo de âmbito exclusivamente lusófono?
Podia fazer sentido surgir algo dentro dessa matriz no âmbito da lusofonia, reforçando-se a importância da língua portuguesa, que se afirma cada vez mais como um instrumento de comunicação com dimensão global. Ou seja, é inquestionável a existência de uma zona de conforto afectiva e cultural entre os falantes do português e, portanto, esse é um fenómeno natural que se poderia aprofundar também na vertente do direito desportivo.
Encontra-se devidamente regulada a matéria respeitante às compensações a clubes formadores, nomeadamente por via dos direitos de formação e mecanismos de compensação?
Ambas as situações estão, na minha opinião, devidamente reguladas, entendendo-se genericamente que os clubes que participem na formação do jogador têm direito a uma compensação de natureza financeira, quando o mesmo celebre o primeiro contrato de trabalho desportivo até ao final da época em que complete 23 anos de idade, sendo certo que o pagamento da compensação de formação deve ser efectuado pelo clube que profissionalizou o jogador, considerando-se inquestionável que é o acto de celebração de contrato, e não o seu registo, que determina o pagamento dessa compensação de natureza financeira. Por seu turno, o mecanismo de solidariedade internacional existe para premiar e motivar os clubes/sociedades desportivas que treinam jovens jogadores, para além de estimular a solidariedade no seio do mundo do futebol, encontrando-se plasmado no artigo 21.º do Regulations on the Status and Transfer of Players da FIFA nos seguintes termos: “se um jogador profissional é transferido antes do termo do seu contrato, o clube ou os clubes formadores que contribuíram para a sua educação e formação receberão uma parte da indemnização paga ao clube anterior.” Os beneficiários destes institutos são os clubes/sociedades desportivas que tenham formado o jogador entre os 12 e os 23 anos de idade. Existem, portanto, suficientes mecanismos de protecção para os clubes e sociedades desportivas formadoras sendo que, de resto, no plano nacional é regularmente vedado ao clube formador ceder os seus direitos de compensação a terceiros.
Existe um número adequado de juristas com conhecimento em direito desportivo para as necessidades do mercado nacional? E na lusofonia?
Não possuo dados concretos que me permitam responder a esta questão mas é inegável que tem havido um aumento muito significativo da oferta curricular nas mais diversas universidades nesta área específica do direito e, portanto, é natural que vão surgindo cada vez mais juristas “especialistas” em direito desportivo. Acredito que é uma área com um largo futuro, sendo necessário que os jovens percebam que terão que ter a capacidade de pensar, raciocinar, articular e contraditar em três ou quatro línguas estrangeiras, sob pena de iniciarem um processo em Portugal e depois, em sede de recurso, terem que entregar o seu trabalho a um colega estrangeiro para que seja esse outro a fazer a defesa da sua causa.
Tem-se assistido a um fenómeno de aquisições de jogadores cada vez mais novos para as escolas de formação dos grandes clubes mundiais. É possível regulamentar esta matéria respeitando o direito dos menores e o investimento dos clubes?
Esta é uma matéria muito sensível e para a qual a FIFA tem estado particularmente atenta, pois a barreira que separa a aquisição de jovens jogadores oriundos de diferentes latitudes e o “tráfico humano com fins futebolísticos” é muito ténue. Existe regulamentação suficiente sobre esta matéria, o que acontece é que vão chegando notícias de fenómenos de falsificação de passaportes e de subornos que inviabilizam que situações de abandono e de infâncias perdidas se vão multiplicando por esse mundo fora.
Concorda com a proibição de os direitos desportivos serem detidos por partes terceiras?
O comité executivo da FIFA decidiu proibir que investidores externos pudessem comprar a totalidade ou uma parte dos direitos económicos de um jogador para mais tarde receberam as mais-valias de uma futura transferência do atleta. Segundo a FIFA, a sua decisão tomada em 2015 visou “preservar a independência dos clubes e dos jogadores e garantir a integridade dos jogos e das competições”. Mais tarde, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) confirmou a interdição da propriedade por parte de terceiros (TPO) dos passes dos futebolistas decretada pela FIFA e esta medida, na minha opinião, é apropriada embora em termos objectivos reduza substancialmente a capacidade de financiamento dos clubes / sociedades desportivas. Mas entendo que é o preço a pagar para termos um futebol mais expurgado de capitais que não interessam ao desporto-rei.
A existência de um bom departamento jurídico ou de uma boa assessoria jurídica externa é hoje essencial para uma boa gestão de um clube e para se alcançarem bons resultados desportivos?
O fenómeno desportivo exige um conhecimento transversal, mas simultaneamente especializado, e a sua dimensão jurídica tem vindo a assumir uma relevância crescente ao ponto de se poder dizer que hoje “tudo é jurídico”. Portanto, hoje é impensável que uma organização desportiva profissional não trabalhe diariamente com especialistas na área jurídica.
Considera que deveria haver uma revisão da Lei 10/2013, de 25 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico das sociedades desportivas? Em que pontos e porquê?
Atenta a minha situação particular, entendo que não devo responder a esta questão.