“Verifico que a desconfiança dos destinatários da justiça nesta área e jurisdição é cada vez maior”
Advogado e 1.º Vice-Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Luís Silva é um dos nomes mais reconhecidos na advocacia na área de Família, Crianças e Jovens. Muito crítico da legislação mais recente que enquadra os temas da família, assim como da falta de preparação de muitos advogados e magistrados, o causídico é claro quando afirma: “é profundamente alarmante do ponto de vista social e do sentimento de justiça que o cidadão alimenta quando recorre a estes tribunais”. Critica ainda o regime por ser demasiado tolerante com o infrator
Qual a avaliação que faz da implementação do novo Regime Geral do Processo Tutelar Civil?
O novo regime, entenda-se “novo” em apenas alguns aspectos. Se é certo que contém inovações relevantes, refira-se que, em termos de aplicação pelas magistraturas, pouco evoluiu. Porque o novo regime, naquilo que inovou, apesar de tudo, não sendo embora de grande monta, no entanto, não tem tido grande implementação no dia a dia por parte das magistraturas, que continuam, de um modo geral, salvo honrosas exceções, centradas num certo formalismo, no comodismo de uma “estética” decisão. Decisão que tarda a produzir efeitos. Demorada e, por vezes, inútil. Com todo o respeito por quem administra a justiça. Na verdade, não se conseguiram alterar mentalidades algo fixistas através de um “novo regime” ou nova “Lei”, tendo assim permanecido a implementação desejada algo aquém das expectativas. É uma questão de vocações. Vocação de quem administra a justiça. Não existe nem uma formação especializada nem a avaliação de sensibilidade especial relativamente ao julgador que deveria ter uma vocação especial para lidar com estes processos complexos e delicados. A vocação ou a falta dela, a vontade de decidir ou a falta dela, pode condicionar o sucesso das alterações que se pretendiam implementar. Quanto à aplicação do “novo regime” ou das novas oportunidades instrumentais criadas com o mesmo, diria que falta a vontade para a bem sucedida implementação do mesmo, faltando a mão de obra. Existem diversos mecanismos ao dispor das magistraturas, nesta jurisdição, que conduzem, não sendo aplicados / utilizados, ao quase naufrágio das pretensões e finalidades deste “novo” regime.
Veio a nova legislação resolver a falta de enquadramento legal da “alienação parental” (aquele que priva o outro do contacto parental nas suas múltiplas formas), crítica que fez em 2015, ainda antes da publicação da nova Lei?
Sem dúvida. Mas não fazia parte das finalidades do novo diploma legal, que é um diploma adjetivo, processual. Do ponto de vista substantivo, falta um diploma que regule ou regularize situações que, em número crescente, constituem um verdadeiro flagelo social. Aquelas situações em que um dos progenitores, de modo por vezes aberto, ostensivo, desrespeita a norma e com a maior indiferença e impunidade (sublinhe-se a impunidade), sabendo que o sistema de aplicação da justiça, que quem administra a justiça, passará ao lado de uma análise profunda e consequente de comportamentos menos próprios. Não diria serem “alienantes”, expressão sem conteúdo nesta jurisdição de família e de menores, mas que se traduzem pela sua reiteração e intensidade de comportamentos que na prática impedem, privam, separam, que afastam a criança do outro progenitor ou da sua família alargada, reduzindo ou cortando os laços afectivos positivos anteriormente existentes, o que continua a acontecer até com maior subtileza e refinamento perante a inércia e ausência de tomada de medidas atempadas e consequentes por parte das magistraturas. Salvo algumas exceções, naturalmente. Mas continua a acontecer e de modo impune, ou em linguagem corrente… “em benefício do infrator…”, perante uma quase absoluta impunidade.
No ordenamento jurídico português existe norma ou previsão para de alguma forma acautelar ou combater a muito comentada e difundida ideia da “alienação parental”?
Não: apenas por via muito indirecta, a partir de diversas normas entre si dispersas, algumas de natureza penal, mas não sistematizadas, que não asseguram nem procedimentos nem critérios uniformes, sendo aplicadas de modos bastante diversos consoante o entendimento de cada julgador.
Estão os Tribunais e respetivos Juízes/as preparados para julgar bem as matérias relacionadas com Família, Crianças e Jovens?
De um modo geral, não. Os magistrados judiciais e do Ministério Público não têm uma suficiente formação nem uma especialização (para esta jurisdição especializada), nem uma avaliação direcionada em termos de competência, vocação ou outra que assegure uma dedicação e um desempenho que satisfaça os destinatários desta justiça. Existe, sobejamente conhecido, um descontentamento generalizado por parte dos destinatários da justiça. De outro modo, pergunto: porque não está a grande parte dos destinatários desta justiça e jurisdição especializada satisfeita com a justiça que lhe é no final aplicada? Estamos ainda longe de atingir o resultado desejado, sendo conhecida a ténue capacidade de resposta e as condições reais da Justiça.
E quanto aos advogados/as, encontra Colegas bem preparados nestas matérias?
O advogado também não dispõe de nenhuma formação especializada ou especial para aceder a esta área. Depende de cada um. Esta é uma área onde o maior investimento e aquisição de competências depende do investimento em pesquisa e formação por parte do advogado. O advogado que trabalhe predominantemente ou em exclusivo esta área adquire competências e uma elevada sensibilidade até em diversas áreas do conhecimento humano que se relacionam com as temáticas e casos concretos que encontra no dia a dia. Porém, depende de cada um o trabalho humilde, de pesquisa e estudo, de aquisição de conhecimentos numa área extraordinariamente dinâmica onde o saber nunca surge como um estado atingido. Quem trabalha esta área seguramente que trabalha sábados e domingos, não tendo tempos mortos nem espaço para lazer. Porque os problemas da nossa sociedade são muitos e diversificados e cada vez mais sofisticados, sendo que cada caso, cada problema humano, que se nos apresenta é um caso absolutamente diferente do anterior e, como tal, merece a nossa maior atenção e dedicação. O advogado procura incessante e incansavelmente estar à altura da situação que esta área altamente especializada nos traz no dia a dia.
Quais os mecanismos que a Lei apresenta para evitar que um Menor seja manipulado por um ou ambos os pais e de que forma são aplicados na prática?
Esta pergunta envolveria uma longa, muito longa resposta que não cabe formalizar neste espaço, nem neste contexto. Porém, diria que, mesmo perante a existência de “matéria-prima”, de diploma legal, de norma, ainda assim, mesmo que existisse, não existirá, talvez salvo algumas exceções, uma “mão de obra” que se revele adequada por parte da administração da justiça. Com todo o respeito, o Judiciário não se adaptou: tem mais dúvidas que certezas. E ao longo de trinta anos de profissão, verifico que a desconfiança dos destinatários da justiça nesta área e jurisdição é cada vez maior. O que é profundamente alarmante do ponto de vista social e do sentimento de justiça que o cidadão alimenta quando recorre a estes tribunais.
Qual o papel da audição das crianças no processo de regulação parental?
Fundamental e decisivo. Porém, está muito longe, mas muito longe, de se mostrar satisfatório, pelas mais diversas razões, a aprofundar em sede própria. Mas continua a ser muito preocupante não apenas a profunda diversidade de critérios e procedimentos pelos magistrados que presidem a tais audições com alguns duvidosos resultados alcançados. Neste momento, digamos que constitui apenas mais um elemento a ser considerado pelo Juiz do processo.
Na maioria das vezes, o acordo entre os pais é o mais desejável?
Será o mais desejável quando se encontram devidamente esclarecidos e com os problemas emocionais e conflitos conjugais bem resolvidos. Quando tenham consciência de que o conflito conjugal não pode interferir nos assuntos parentais e separem com clareza e voluntária aceitação os dois níveis, por forma a não regressar aos estados de espirito que inicialmente os moveram, designadamente conflitos pessoais que nenhuma relação tem com a criança envolvida no mesmo.
Face ao Novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), a intervenção do Advogado é importante? É obrigatória? Não, porquê?
A intervenção do advogado no RGPTC não é obrigatória, exceto em fase de recurso ou quando a criança o solicitar ou quando os interesses da criança e os dos seus pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto, sejam conflituantes, e ainda quando a criança com maturidade adequada o solicitar ao tribunal. Apenas e tão só. Porém, a assistência por advogado nesta jurisdição é decisiva, é fundamental. Desde logo, porque existe uma elevada emotividade e necessidade de resolver conflitos por parte dos envolvidos associados a uma evidente falta de preparação em matérias técnicas dos próprios interessados, neste tipo de processo. Muitas vezes as partes trazem ideias pré-formadas transmitidas pelo exemplo do vizinho “que teve um caso igual” e complicam ainda mais. Mas não existem dois processos iguais: aqui, cada caso é diferente do anterior e será diferente do próximo. Especialmente quando o conflito parental está instalado, e terá consequências mais ou menos graves na vida dos filhos. Para esclarecer, simplificar procedimentos e ultrapassar conflitos é indispensável a presença do advogado, necessitando os destinatários do apoio técnico antes, durante e no final das sessões, após decisão, mesmo que provisória, para conhecer e escolher os meios adequados e no final de tornar efectiva a decisão obtida (que muitas vezes fica letra morta), com as mais complexas implicações na vida dos destinatários. De resto, resulta da Constituição (CRP) que a “todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…). Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado”. E o art. 208º CRP reconhece o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. Também o advogado participa na administração da justiça, competindo-lhe exercer o patrocínio das partes e sendo o patrocínio forense elemento essencial à administração da justiça. Se o advogado é indispensável à administração da justiça mal se compreende que continue arredado de tão importante sector.
Considera essencial a constituição de advogado nos processos desta natureza?
Reitero ser fundamental e decisiva. Porém, apenas é obrigatória a nomeação de advogado nas condições suprarreferidas. O que é um lapso evidente desta legislação mais recente.
O incumprimento, das responsabilidades parentais designadamente de alimentos ou de visitas, tem, na prática, consequências relevantes para os incumpridores? Ou, pelo contrário, assiste-se a um sentimento geral de impunidade, qualquer que seja o grau ou intensidade do incumprimento?
Na prática, pouca ou nenhuma relevância tem. Existe uma convicção geral de impunidade. Temos tribunais a julgar incumprimentos de alimentos anteriormente estabelecidos por sentença após muito mais do que um ano. Existem casos em que o primeiro despacho dirigido ao “incumpridor” de alimentos é proferido após mais de seis meses. Em casos muito graves, como por exemplo em que se verifica a privação de convívio da criança com um dos progenitores apenas pela “soberana” vontade do outro, injustificadamente, o que é muito frequente, a punição do incumpridor quase não existe – não é aplicada na prática. O incumpridor de alimentos acaba-o, até por ser bem tratado pelo tribunal que raramente condena ou aplica uma sanção pedagógica e exemplar. Estamos num regime muito tolerante com o infrator.