Atividades autorizadas e proibidas no investimento em capital de risco e consequências da realização de atividades proibidas
Madalena Perestrelo de Oliveira
Assistente convidada da Faculdade de Direito de Lisboa
Investigadora do Centro de Investigação de Direito Privado
O Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (RJCR – Lei n.º 18/2015, de 4 de março) –define o investimento em capital de risco como a aquisição de instrumentos de capital próprio e alheio em sociedades com elevado potencial de desenvolvimento, como forma de beneficiar da respetiva valorização. O conceito deve ser lido de forma combinada com o elenco de operações autorizadas e proibidas, constante dos artigos 9.º e 10.º, o que, não raras vezes, levanta problemas interpretativos, dos quais destacamos dois:
(i) Para que um investimento seja considerado como capital de risco basta um investimento em capitais alheios? O elenco de operações autorizadas e proibidas é taxativo ou meramente indicativo?
(ii) Qual a consequência da realização de uma atividade proibida por um fundo de capital de risco (FCR)?
1. Operações autorizadas e proibidas aos FCR
A private equity apresenta uma longa tradição de encetar operações de buyout, nas quais não existe verdadeiramente um financiamento à sociedade: um investidor adquire participações a um sócio já existente ou, tratando-se de um management buyout (MBO), confere apoio financeiro à administração para a aquisição de controlo. No caso de um institucional buyout (IBO), é a própria sociedade de capital de risco a adquirir a sociedade-alvo. Nestes casos, não existe um investimento em instrumentos de capital próprio porque nunca chega a entrar financiamento na sociedade; existe simplesmente uma mudança de titularidade de participações da sociedade-alvo, por via de uma compra e venda.
Embora, de uma perspetiva formal, estas operações não se enquadrem no conceito de investimento em capital de risco, não deve uma definição sobrepor-se ao regime e à sua ratio. A atividade de capital de risco, especialmente na modalidade de private equity, sempre foi marcada por estas transações, que, tipicamente, são acompanhadas pela aquisição de dívida da empresa-alvo, o que, por si, será suficiente para se encontrar preenchida a definição do artigo 3.º/1.
Em geral, julgamos que a legitimidade dos FCR para celebrarem qualquer negócio jurídico depende da sua natureza jurídica. Os FCR são patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica, que pertencem aos participantes no regime geral de comunhão regulado na lei (artigo 2.º, u)). Mais especificamente, podem ser qualificados como organismos de investimento alternativo fechados, ou seja, são considerados organismos de investimento coletivo (artigos 1.º/2, a), 2.º, aa), (ii), e 3.º/2, do RGOIC). A circunstância específica de os fundos de capital de risco não serem dotados de personalidade jurídica justifica que, quando “se imponham deveres ou imputem atuações a organismos de investimento coletivo, devem entender-se como sujeitos do dever as entidades responsáveis pela gestão, salvo se outro sentido resultar da disposição em causa” (artigo 1.º/6). Assim, todas as operações autorizadas pela lei – ainda que imputadas ao fundo de capital de risco – deverão ser realizadas pela sua entidade gestora.
Uma interpretação sistemática e teleológica do regime de capital de risco determina que as operações autorizadas elencadas no artigo 9.º/1 não são taxativas. O artigo 10.º elenca um conjunto de operações vedadas aos fundos de capital de risco. Se o elenco de atividades autorizadas fosse taxativo, não haveria necessidade de explicitar quais as atividades proibidas, uma vez que todas as restantes o seriam. Aliás, esta é a solução exigida pelo sistema: o direito comercial e, em particular, o regime dos fundos de investimento é, ainda, direito privado, dominado pelo vetor estrutural da autonomia privada. Por isso, não basta a constatação que o artigo 9.º do RJCR não autoriza um determinado investimento (v.g., o investimento isolado em direitos de crédito) para se concluir, liminar e genericamente, pela sua proibição em absoluto. Também a nível europeu não existe qualquer elenco de operações proibidas aos fundos de capital de risco e na Alemanha prevê-se, de forma expressa, a admissibilidade de outras transações não elencadas na lei, desde que se relacionem com o objeto social da SCR ou do FCR (o § 8 I WKBG elenca um conjunto de operações que as sociedades de capital de risco podem realizar e o § 8 VI admite expressamente outras transações para além das elencadas na lei, desde que relacionadas com o objeto social). Se o legislador português pretendesse diferente solução, tê-lo-ia tornado claro, com recurso, por exemplo, a uma norma paralela à da lei espanhola (artigo 10.º/2 da Ley 22/2014, de 12 de noviembre).
2. Consequências da realização de uma operação proibida por um FCR
Em abstrato, duas alternativas poderiam ser ponderadas: (i) ou se considera que vigora no RJCR um princípio da especialidade (aferido pelo objeto) que levaria a que os negócios jurídicos que se enquadrem numa operação proibida sejam nulos (294.º e 280.º do CC) ou (ii) os negócios serão válidos por aplicação do CSC.
Somos da opinião que se deve aplicar o regime societário segundo o qual a capacidade não é limitada pelo objeto social.
1. As SCR são sociedades anónimas (artigo 11.º). Os ICR são sociedades unipessoais por quotas. Os FCR não têm personalidade jurídica, mas os seus direitos e obrigações são imputados à sociedade gestora, que, por seu turno, é, regra geral, uma SA. Não existindo regra expressa aplicável à consequência de um negócio jurídico celebrado fora do objeto do fundo, há que recorrer ao único regime diretamente aplicável: o CSC. Naturalmente, nem a lei nem qualquer intérprete poderiam admitir – sob pena de violação do princípio da igualdade – uma solução bicéfala em que se aplicasse às SCR as regras do CSC, que admitem a prossecução de atos necessários ou convenientes ao seu fim social, e aos FCR uma solução em que apenas se admitisse a prática dos atos previstos na sua política de investimento, excluindo todos aqueles que fossem instrumentais ou convenientes para a atingir.
2. Hoje em dia, como se sabe, o objeto não limita a capacidade da sociedade comercial: um negócio jurídico fora do objeto social é válido e, salvo situações excecionais, vincula a sociedade.
3. O artigo 2.º/1 esclarece que o investimento em capital de risco não é uma atividade financeira e, de facto, notam-se diferenças entre os dois regimes. O artigo 7.º RGIC determina que “as sociedades financeiras só podem efetuar as operações permitidas pelas normas legais e regulamentares que regem a respetiva atividade”, ao passo que o artigo 10.º/1 a) RJCR esclarece que “é vedada a realização de operações não relacionadas com a prossecução do seu objeto social ou com a respetiva política de investimento”. Trata-se de redações diferentes. O RGIC consagra uma proibição claramente absoluta de efetuar operações que não constem de normas legais, ao passo que o RJCR consagra um princípio societário geral (cf. 6.º/4 CSC): uma SCR não pode exceder o seu objeto.
Se o RJCR esclarece que as SCR não são intermediários financeiros, parece despropositado procurar semelhanças entre a norma do RJCR e do RGIC para se aproximarem as duas realidades. Aliás, admitir que o objeto limita a capacidade seria um retrocesso no domínio das sociedades comerciais e contraria toda a doutrina consolidada sobre o tema.
4. Julgamos, por isso, que a questão deve ser recolocada, tendo em atenção os valores que se pretende tutelar. A solução societária visa proteger os terceiros (de boa fé) que contratam com a sociedade e que não podiam razoavelmente esperar a nulidade do negócio celebrado. Já uma solução no sentido da invalidade dos negócios jurídicos fora do objeto social visa tutelar os acionistas e participantes do fundo.
Consideramos que quem investe em unidades de participação não se encontra em situação de fragilidade paralela à dos clientes bancários, protegidos pelo princípio da especialidade do RGIC. Os investidores em organismos de investimento em capital de risco assumem um grau de risco que tipicamente não é querido pelos depositantes. Logo, devem ser tratados como qualquer outro sócio investidor: o negócio vale e a sua tutela é assegurada por via da responsabilidade civil dos administradores (da sociedade gestora) ou pela existência de uma justa causa de destituição.
No fundo, os terceiros que negoceiem com uma SCR merecem tutela equivalente àqueles que negoceiem com uma comum SA. Apenas no caso das instituições financeiras o enquadramento deve ser considerado diferente: há valores especiais que se sobrepõem à tutela da confiança e boa fé de terceiros.
(i) Para que um investimento seja considerado como capital de risco basta um investimento em capitais alheios? O elenco de operações autorizadas e proibidas é taxativo ou meramente indicativo?
(ii) Qual a consequência da realização de uma atividade proibida por um fundo de capital de risco (FCR)?
1. Operações autorizadas e proibidas aos FCR
A private equity apresenta uma longa tradição de encetar operações de buyout, nas quais não existe verdadeiramente um financiamento à sociedade: um investidor adquire participações a um sócio já existente ou, tratando-se de um management buyout (MBO), confere apoio financeiro à administração para a aquisição de controlo. No caso de um institucional buyout (IBO), é a própria sociedade de capital de risco a adquirir a sociedade-alvo. Nestes casos, não existe um investimento em instrumentos de capital próprio porque nunca chega a entrar financiamento na sociedade; existe simplesmente uma mudança de titularidade de participações da sociedade-alvo, por via de uma compra e venda.
Embora, de uma perspetiva formal, estas operações não se enquadrem no conceito de investimento em capital de risco, não deve uma definição sobrepor-se ao regime e à sua ratio. A atividade de capital de risco, especialmente na modalidade de private equity, sempre foi marcada por estas transações, que, tipicamente, são acompanhadas pela aquisição de dívida da empresa-alvo, o que, por si, será suficiente para se encontrar preenchida a definição do artigo 3.º/1.
Em geral, julgamos que a legitimidade dos FCR para celebrarem qualquer negócio jurídico depende da sua natureza jurídica. Os FCR são patrimónios autónomos, sem personalidade jurídica, que pertencem aos participantes no regime geral de comunhão regulado na lei (artigo 2.º, u)). Mais especificamente, podem ser qualificados como organismos de investimento alternativo fechados, ou seja, são considerados organismos de investimento coletivo (artigos 1.º/2, a), 2.º, aa), (ii), e 3.º/2, do RGOIC). A circunstância específica de os fundos de capital de risco não serem dotados de personalidade jurídica justifica que, quando “se imponham deveres ou imputem atuações a organismos de investimento coletivo, devem entender-se como sujeitos do dever as entidades responsáveis pela gestão, salvo se outro sentido resultar da disposição em causa” (artigo 1.º/6). Assim, todas as operações autorizadas pela lei – ainda que imputadas ao fundo de capital de risco – deverão ser realizadas pela sua entidade gestora.
Uma interpretação sistemática e teleológica do regime de capital de risco determina que as operações autorizadas elencadas no artigo 9.º/1 não são taxativas. O artigo 10.º elenca um conjunto de operações vedadas aos fundos de capital de risco. Se o elenco de atividades autorizadas fosse taxativo, não haveria necessidade de explicitar quais as atividades proibidas, uma vez que todas as restantes o seriam. Aliás, esta é a solução exigida pelo sistema: o direito comercial e, em particular, o regime dos fundos de investimento é, ainda, direito privado, dominado pelo vetor estrutural da autonomia privada. Por isso, não basta a constatação que o artigo 9.º do RJCR não autoriza um determinado investimento (v.g., o investimento isolado em direitos de crédito) para se concluir, liminar e genericamente, pela sua proibição em absoluto. Também a nível europeu não existe qualquer elenco de operações proibidas aos fundos de capital de risco e na Alemanha prevê-se, de forma expressa, a admissibilidade de outras transações não elencadas na lei, desde que se relacionem com o objeto social da SCR ou do FCR (o § 8 I WKBG elenca um conjunto de operações que as sociedades de capital de risco podem realizar e o § 8 VI admite expressamente outras transações para além das elencadas na lei, desde que relacionadas com o objeto social). Se o legislador português pretendesse diferente solução, tê-lo-ia tornado claro, com recurso, por exemplo, a uma norma paralela à da lei espanhola (artigo 10.º/2 da Ley 22/2014, de 12 de noviembre).
2. Consequências da realização de uma operação proibida por um FCR
Em abstrato, duas alternativas poderiam ser ponderadas: (i) ou se considera que vigora no RJCR um princípio da especialidade (aferido pelo objeto) que levaria a que os negócios jurídicos que se enquadrem numa operação proibida sejam nulos (294.º e 280.º do CC) ou (ii) os negócios serão válidos por aplicação do CSC.
Somos da opinião que se deve aplicar o regime societário segundo o qual a capacidade não é limitada pelo objeto social.
1. As SCR são sociedades anónimas (artigo 11.º). Os ICR são sociedades unipessoais por quotas. Os FCR não têm personalidade jurídica, mas os seus direitos e obrigações são imputados à sociedade gestora, que, por seu turno, é, regra geral, uma SA. Não existindo regra expressa aplicável à consequência de um negócio jurídico celebrado fora do objeto do fundo, há que recorrer ao único regime diretamente aplicável: o CSC. Naturalmente, nem a lei nem qualquer intérprete poderiam admitir – sob pena de violação do princípio da igualdade – uma solução bicéfala em que se aplicasse às SCR as regras do CSC, que admitem a prossecução de atos necessários ou convenientes ao seu fim social, e aos FCR uma solução em que apenas se admitisse a prática dos atos previstos na sua política de investimento, excluindo todos aqueles que fossem instrumentais ou convenientes para a atingir.
2. Hoje em dia, como se sabe, o objeto não limita a capacidade da sociedade comercial: um negócio jurídico fora do objeto social é válido e, salvo situações excecionais, vincula a sociedade.
3. O artigo 2.º/1 esclarece que o investimento em capital de risco não é uma atividade financeira e, de facto, notam-se diferenças entre os dois regimes. O artigo 7.º RGIC determina que “as sociedades financeiras só podem efetuar as operações permitidas pelas normas legais e regulamentares que regem a respetiva atividade”, ao passo que o artigo 10.º/1 a) RJCR esclarece que “é vedada a realização de operações não relacionadas com a prossecução do seu objeto social ou com a respetiva política de investimento”. Trata-se de redações diferentes. O RGIC consagra uma proibição claramente absoluta de efetuar operações que não constem de normas legais, ao passo que o RJCR consagra um princípio societário geral (cf. 6.º/4 CSC): uma SCR não pode exceder o seu objeto.
Se o RJCR esclarece que as SCR não são intermediários financeiros, parece despropositado procurar semelhanças entre a norma do RJCR e do RGIC para se aproximarem as duas realidades. Aliás, admitir que o objeto limita a capacidade seria um retrocesso no domínio das sociedades comerciais e contraria toda a doutrina consolidada sobre o tema.
4. Julgamos, por isso, que a questão deve ser recolocada, tendo em atenção os valores que se pretende tutelar. A solução societária visa proteger os terceiros (de boa fé) que contratam com a sociedade e que não podiam razoavelmente esperar a nulidade do negócio celebrado. Já uma solução no sentido da invalidade dos negócios jurídicos fora do objeto social visa tutelar os acionistas e participantes do fundo.
Consideramos que quem investe em unidades de participação não se encontra em situação de fragilidade paralela à dos clientes bancários, protegidos pelo princípio da especialidade do RGIC. Os investidores em organismos de investimento em capital de risco assumem um grau de risco que tipicamente não é querido pelos depositantes. Logo, devem ser tratados como qualquer outro sócio investidor: o negócio vale e a sua tutela é assegurada por via da responsabilidade civil dos administradores (da sociedade gestora) ou pela existência de uma justa causa de destituição.
No fundo, os terceiros que negoceiem com uma SCR merecem tutela equivalente àqueles que negoceiem com uma comum SA. Apenas no caso das instituições financeiras o enquadramento deve ser considerado diferente: há valores especiais que se sobrepõem à tutela da confiança e boa fé de terceiros.