Pandemia de Covid-19 “testou agilidade” do setor segurador
A pandemia de Covid-19 “testou a agilidade do setor” segurador e “permitiu às equipas testarem e aprenderem novas capacidades e métodos de trabalho”, de acordo com Cristina Gamito, partner e insurance leader da Deloitte Portugal, que realça o trabalho à distância e mais digital dos operadores. A especialista explica, numa entrevista à “Vida Económica” realizada a propósito do webinar Deloitte “Visões de Seguros em todo o mundo”, que também a relação da sociedade com o mercado segurador sairá diferente. “É expectável que esta situação provoque um aumento da sensibilidade da sociedade para o papel dos seguros, nomeadamente nos seguros de saúde e de vida risco para os particulares e ‘cyber risk’ e de interrupção de negócio para as empresas”, indica Cristina Gamito.
Vida Económica – Que impacto é que está a ter a pandemia nas empresas do setor segurador no curto prazo?
Cristina Gamito – A pandemia está a impactar o setor segurador ao nível operativo e ao nível de negócio. Ao nível operativo, destaca-se a extraordinária capacidade do setor na adoção do teletrabalho e na adaptação e lançamento de novos processos. Em poucas semanas o setor mobilizou quase 100% das suas equipas para o trabalho remoto. Por outro lado, conseguiu, com resiliência e de forma inovadora, lançar novos processos e adaptar os já existentes para garantir o funcionamento das operações. A resolução de sinistros à distância, recorrendo a soluções de videoperitagem, as soluções de telemedicina, ajuste de coberturas ou produtos para proteção de profissionais mais expostos ao riscos da pandemia, são os melhores exemplos desta capacidade do setor para se adaptar a uma nova realidade num curto espaço de tempo, reforçando o seu papel de proteção da sociedade.
Ao nível de negócio, há claramente diferenças entre o negócio Vida e Não Vida. O negócio de Vida apresentava uma tendência de redução, fruto da estratégia das seguradoras em reduzir a oferta de produtos de capital garantido que, combinadas com a deterioração do mercado de capitais verificada nas últimas semanas de março, provocou uma redução acentuada de cerca de 44% da produção no primeiro trimestre 2020 face ao período homólogo. Em sentido contrário, a oferta Não Vida apresenta um crescimento de cerca de 7% no primeiro trimestre face ao período homólogo. Este crescimento assenta na forte dinâmica que a oferta Não Vida tem vindo a registar. É expectável que o crescimento abrande no segundo trimestre, no entanto, estimamos uma resposta mais resiliente do que a registada na oferta Vida.
VE – Do ponto de vista dos riscos, houve aprendizagens com a pandemia e poderá haver cenários diferentes no futuro?
CG – Um evento disruptivo desta natureza comporta aprendizagens, quer para as seguradoras quer para a sociedade. As companhias de seguros tiveram oportunidade de testar o lançamento de novos processos e ofertas de forma muito ágil e num ambiente muito adverso. A reação rápida testou a agilidade do setor e permitiu às equipas testarem e aprenderem novas capacidades e métodos de trabalho. Para a sociedade, um evento como a pandemia de Covid-19 reforça que eventos extremos, ainda que raros, podem causar uma disrupção total da vida de cada um, e os seguros são uma excelente resposta para minimizar os impactos negativos destes eventos. É expectável que esta situação provoque um aumento da sensibilidade da sociedade para o papel dos seguros, nomeadamente nos seguros de saúde e de vida risco para os particulares e “cyber risk” e de interrupção de negócio para as empresas. Destacamos também que este momento apresenta uma grande oportunidade para o crescimento do canal digital das seguradoras e um desafio para a rede de agentes e corretores assumirem uma postura cada vez mais omnicanal, tanto na relação com a seguradora como na relação com os seus clientes.
VE – O teletrabalho poderá ser uma dessas alterações?
CG – O teletrabalho vai assumir um papel cada vez mais relevante no futuro. Haverá ajustes nas equipas, nos sistemas e métodos de trabalho para promover o trabalho remoto. No entanto, acreditamos que haverá diferenças em relação ao que se verificou durante o período de estado de emergência. As relações e contacto pessoal entre as equipas continuam a desempenhar um papel importante na cultura, formação e espírito de equipa das organizações, pelo que um retorno das equipas ao local de trabalho é expectável, ainda que com uma componente mais flexível.
VE – No ramo Vida pode haver alterações?
CG – O ramo Vida já tem vindo a trabalhar no desenvolvimento de novas soluções de produtos e serviços para responder ao desafio da falta de rentabilidade dos produtos de capital e taxa garantida, fruto do contexto de baixas taxas de juro. Temos visto lançamento de novos produtos e iniciativas para aumentar a literacia financeira dos consumidores com o objetivo de aumentar a disponibilidade de poupança e para poupar sem capital e taxas garantidas. É um caminho que vai ser intensificado no futuro. Esperamos o lançamento de novos produtos e a melhoria da proposta de valor com novos serviços incorporados (por exemplo, acesso a linhas de saúde e outros serviços em casa).
VE – Após notícias de contas elevadas em outros países e de encaminhamentos para o sistema público em outros, os seguros de saúde podem ter saído fragilizados da pandemia?
CG – Acreditamos que o ramo Saúde sai reforçado pela pandemia. As seguradoras de saúde assumiram um papel muito importante como parte da solução. A comparticipação a 100% dos testes de rastreio à Covid 19, o lançamento a custos muitos baixos e até gratuitos de soluções de telemedicina para responder às necessidades dos clientes foram dois aspetos que se destacaram na mobilização das seguradoras de saúde para responder aos desafios da pandemia. O ramo saúde regista um crescimento no primeiro trimestre de 9,6% face ao período homólogo, em linha com a tendência crescente que o segmento vinha a registar em 2019. Esperamos que, dada a natureza da pandemia, ocorra um aumento com a preocupação com os temas relacionados com saúde, e que, tendo por base a resposta robusta das seguradoras, a confiança da população aumente neste tipo de produtos.
VE – E nos seguros automóveis, a haver alterações de paradigmas de mobilidade urbana, poderá ter influência também?
CG – O setor tem vindo a trabalhar no desenvolvimento de nova oferta de serviços para endereçar os desafios da evolução do mercado da mobilidade. O surgimento de novos meios de deslocação, como as trotinetes elétricas ou as bicicletas, bem como o aluguer de carros com métodos “pay-per-use”, é um desafio ao nível de oferta que tem vindo a ser trabalhado. As preocupações das pessoas com a utilização de transportes públicos (autocarros, metro) pode provocar um aumento deste tipo de soluções para deslocações. Vimos que no Reino Unido o incremento da utilização de bicicletas como alternativa ao automóvel próprio e aos transportes públicos foi notável. Obviamente que temos ainda uma baixa utilização destes meios comparativamente com outros países, no entanto, é uma tendência que tem vindo a crescer e que a pandemia vem reforçar, sendo por isso um acelerador ao desafio colocado às seguradoras.