“Benefícios fiscais são arma de arremesso de marketing político”
“O regime dos benefícios fiscais é complexo e pouco compreensível. Além do mais, está-se perante um sistema que é pouco transparente e prejudicial, em particular, para as PME. Acresce que os benefícios fiscais são também uma arma de arremesso político para o marketing político”, lamenta o fiscalista Tiago Caiado Guerreiro, em entrevista à Contabilidade & Empresas.
Contabilidade & Empresas – Em termos gerais, como vê o regime dos benefícios fiscais vigente no nosso país?
Tiago Caiado Guerreiro - O regime dos benefícios fiscais vigente é particularmente complexo, pouco compreensível, obrigando ao recurso a um consultor/fiscalista para a compreensão do mesmo. Isto prejudica, naturalmente, as pequenas e médias empresas, que representam 95% do emprego em Portugal. Muitos dos benefícios fiscais criados são para empresas que produzem bens intransacionáveis (não exportáveis) e que, ainda por cima, são monopólios de facto ou naturais. Isto é, os benefícios fiscais acabam por não existir para estimular uma determinada estratégia económica, de emprego e social, pois são permeáveis a outro tipo de influências.
Arriscando-me a antecipar algumas questões, parece-me que o atual regime dos benefícios fiscais, além de prejudicial às PME, é pouco transparente. Basta pensar que existem mais de quinhentos benefícios fiscais, sendo que, desse número mais de uma centena, além de não terem objetivos extrafiscais rigorosamente definidos, o impacto pretendido também não é claro. Acresce que um regime de benefícios fiscais é uma arma muito importante para captar investimento estrangeiro altamente disputado entre os países. O facto de ser pouco claro, não sistemático e não transparente leva a que a nossa fotografia como país captador de investimento estrangeiro seja má. O regime dos Residentes não Habituais, que é simples e transparente, tem captado muitos recursos para Portugal. O mesmo devia ser feito para as empresas.
CE - Como se justifica existirem centenas de benefícios?
TCG - A enorme vastidão dos benefícios fiscais deriva da incapacidade de sistematização legislativa e do facto de os partidos políticos serem muito prolíferos na produção legal. Os benefícios fiscais são também uma arma de arremesso para o marketing político. Todos nos lembramos das permanentes promessas de benefícios fiscais nos Orçamentos de Estado e noutras épocas do ano, feitas pelos consecutivos governos. De facto, tentam “enganar” os contribuintes, sejam empresas ou pessoas singulares, com promessas de benefícios que, na maioria das vezes, como não querem aumentar a despesa fiscal, de nada servem. Por outro lado, não há nada como fazer desaparecer no meio da enorme quantidade de leis alguns benefícios fiscais, que, embora legais, não visam os interesses do país, nem dos contribuintes, mas normalmente de uma ou algumas empresas que têm muito “lobby” político em Portugal.
Custos fiscais são essenciais para a competitividade
CE - Quais são aqueles que considera particularmente perniciosos para a economia?
TCG - São aqueles que são criados e desenhados não para beneficiar uma atividade em geral, ou uma determinada estratégia económica de médio longo prazo, mas para beneficiar uma ou algumas empresas. Os custos fiscais são hoje determinantes para a competitividade para qualquer empresa. Se algumas empresas têm acesso a benefícios fiscais e as outras diretamente concorrentes não têm, gera-se uma distorção na concorrência em que se desenvolvem e crescem aqueles que conseguiram acesso a estes instrumentos e desaparecem outros, muitas vezes mais eficientes e competentes. Este é um dos fatores explicativos da nossa falta de desenvolvimento económico. Uns beneficiam de vantagens fiscais e outros não, sendo, em determinados casos, até perseguidos.
CE - Considera que há, efetivamente, falta de transparência?
TCG - Sim. A lei fiscal perdeu as suas características técnicas e atualmente é eminentemente política. A legislação devia ser simples e respeitadora dos princípios da legalidade e da tipicidade e compreensível para qualquer pessoa ou empresa. Tal não se passa. Os diplomas legais, que deveriam conter um preâmbulo explicativo, capítulos simples e estanques, sem remissões e artigos com frases curtas, parecem hoje resultar de conversa coloquial sobre um assunto técnico feito na descontração do café. Assim, ninguém se consegue entender?!...
Muitas empresas violam a lei ou não a aplicam corretamente porque não percebem qual o seu âmbito. Na verdade, quem produz estas leis “enviesadas” e incompreensíveis não sabe claramente o que está a fazer, nem o âmbito que quer atingir e muito menos a articulação entre essa lei e o sistema fiscal. Basta ver a qualidade e transparência das normas há quarenta ou cinquenta anos, por exemplo os códigos de IMI, IMT, imposto de selo (sem as alterações recentes que lhes introduziram) e os atuais códigos do IRS ou IRC, em que alguns artigos, interpretá-los é só uma questão de sorte, pois nem sequer apresentam um enredo cartesiano e silogístico.
CE – Significa que muito tem de mudar…
TCG - Tem de mudar todo o processo legislativo e os políticos têm de compreender que a produção da norma tem um carácter técnico e jurídico complexo, pelo que não “pode” ser alterada/elaborada. O processo político, que nos representa a todos, deve definir aquilo que quer obter da lei fiscal, mas não poderá elaborar a norma. Foi assim no passado e a lei era compreensível, interpretável, sistemática e silogística.
Produzir leis é particularmente complexo e exige um conhecimento profundo da realidade socioeconómica, das normas existentes, da aplicação prática e do impacto que tem na vida das pessoas e empresas. A burocracia é um exemplo disso. Vê-se claramente que não existe uma pessoa ou pessoas responsáveis pelo sistema burocrático, contabilístico e fiscal que consigam agregar ideias e evitar a duplicação de tarefas. Na verdade, a degeneração que observamos na lei é consequência da degradação do nosso sistema político e em geral da administração pública.
Transformaram o Estado e Administração Pública em agências de emprego e de “jobs for the boys” e não numa entidade supremamente importante que assegura a segurança, defesa e saúde, etc. ao povo português. Na verdade, o sistema político não tem tido a capacidade de se regenerar nem melhorar e adaptar ao mundo em mudança. Pior, viola permanentemente direitos, liberdades e garantias, direitos da personalidade e direito à vida privada das pessoas e empresas, com o beneplácito da presidência, procuradorias e tribunais, que deveriam assegurar a solidez do sistema democrático e os direitos do indivíduo. Os grupos sociais/económicos beneficiados são aqueles que estão próximos do poder político e do Estado ou que agem para defender a popularidade do Governo do momento.
CE – Pelo que refere, continua a não haver vontade política para alterar o atual regime?
TCG - Não. Não existe qualquer vontade para alterar o regime atual que alimenta uma elite e clientela que vive extraordinariamente bem com a situação atual. É preciso referir que, no resto da União Europeia, o conceito utilizado não é exatamente igual ao nosso. A maioria dos países recorre ao conceito de “Tax expenditures”, que se reconduz ao conceito de despesa fiscal – diretamente – e não de benefício fiscal, ainda que sejam igualmente reduções nas receitas governamentais, através do tratamento fiscal preferencial de determinados grupos de pagadores de impostos ou atividades específicas.
Portugal é um país extraordinário, com um território dotado de uma fabulosa diversidade ecológica, de uma imensa beleza e com uma cultura rica e complexa. É um milagre conseguirmos ser tão subdesenvolvidos economicamente. Os pequenos poderes, a estultícia, as invejas e a corrupção matam todas as oportunidades de nos desenvolvermos. Fomos bem governados e extremamente cosmopolitas no reinado de D. João II e pelo Marquês de Pombal. Infelizmente,1 não vislumbro ninguém assim no horizonte.
Tiago Caiado Guerreiro - O regime dos benefícios fiscais vigente é particularmente complexo, pouco compreensível, obrigando ao recurso a um consultor/fiscalista para a compreensão do mesmo. Isto prejudica, naturalmente, as pequenas e médias empresas, que representam 95% do emprego em Portugal. Muitos dos benefícios fiscais criados são para empresas que produzem bens intransacionáveis (não exportáveis) e que, ainda por cima, são monopólios de facto ou naturais. Isto é, os benefícios fiscais acabam por não existir para estimular uma determinada estratégia económica, de emprego e social, pois são permeáveis a outro tipo de influências.
Arriscando-me a antecipar algumas questões, parece-me que o atual regime dos benefícios fiscais, além de prejudicial às PME, é pouco transparente. Basta pensar que existem mais de quinhentos benefícios fiscais, sendo que, desse número mais de uma centena, além de não terem objetivos extrafiscais rigorosamente definidos, o impacto pretendido também não é claro. Acresce que um regime de benefícios fiscais é uma arma muito importante para captar investimento estrangeiro altamente disputado entre os países. O facto de ser pouco claro, não sistemático e não transparente leva a que a nossa fotografia como país captador de investimento estrangeiro seja má. O regime dos Residentes não Habituais, que é simples e transparente, tem captado muitos recursos para Portugal. O mesmo devia ser feito para as empresas.
CE - Como se justifica existirem centenas de benefícios?
TCG - A enorme vastidão dos benefícios fiscais deriva da incapacidade de sistematização legislativa e do facto de os partidos políticos serem muito prolíferos na produção legal. Os benefícios fiscais são também uma arma de arremesso para o marketing político. Todos nos lembramos das permanentes promessas de benefícios fiscais nos Orçamentos de Estado e noutras épocas do ano, feitas pelos consecutivos governos. De facto, tentam “enganar” os contribuintes, sejam empresas ou pessoas singulares, com promessas de benefícios que, na maioria das vezes, como não querem aumentar a despesa fiscal, de nada servem. Por outro lado, não há nada como fazer desaparecer no meio da enorme quantidade de leis alguns benefícios fiscais, que, embora legais, não visam os interesses do país, nem dos contribuintes, mas normalmente de uma ou algumas empresas que têm muito “lobby” político em Portugal.
Custos fiscais são essenciais para a competitividade
CE - Quais são aqueles que considera particularmente perniciosos para a economia?
TCG - São aqueles que são criados e desenhados não para beneficiar uma atividade em geral, ou uma determinada estratégia económica de médio longo prazo, mas para beneficiar uma ou algumas empresas. Os custos fiscais são hoje determinantes para a competitividade para qualquer empresa. Se algumas empresas têm acesso a benefícios fiscais e as outras diretamente concorrentes não têm, gera-se uma distorção na concorrência em que se desenvolvem e crescem aqueles que conseguiram acesso a estes instrumentos e desaparecem outros, muitas vezes mais eficientes e competentes. Este é um dos fatores explicativos da nossa falta de desenvolvimento económico. Uns beneficiam de vantagens fiscais e outros não, sendo, em determinados casos, até perseguidos.
CE - Considera que há, efetivamente, falta de transparência?
TCG - Sim. A lei fiscal perdeu as suas características técnicas e atualmente é eminentemente política. A legislação devia ser simples e respeitadora dos princípios da legalidade e da tipicidade e compreensível para qualquer pessoa ou empresa. Tal não se passa. Os diplomas legais, que deveriam conter um preâmbulo explicativo, capítulos simples e estanques, sem remissões e artigos com frases curtas, parecem hoje resultar de conversa coloquial sobre um assunto técnico feito na descontração do café. Assim, ninguém se consegue entender?!...
Muitas empresas violam a lei ou não a aplicam corretamente porque não percebem qual o seu âmbito. Na verdade, quem produz estas leis “enviesadas” e incompreensíveis não sabe claramente o que está a fazer, nem o âmbito que quer atingir e muito menos a articulação entre essa lei e o sistema fiscal. Basta ver a qualidade e transparência das normas há quarenta ou cinquenta anos, por exemplo os códigos de IMI, IMT, imposto de selo (sem as alterações recentes que lhes introduziram) e os atuais códigos do IRS ou IRC, em que alguns artigos, interpretá-los é só uma questão de sorte, pois nem sequer apresentam um enredo cartesiano e silogístico.
CE – Significa que muito tem de mudar…
TCG - Tem de mudar todo o processo legislativo e os políticos têm de compreender que a produção da norma tem um carácter técnico e jurídico complexo, pelo que não “pode” ser alterada/elaborada. O processo político, que nos representa a todos, deve definir aquilo que quer obter da lei fiscal, mas não poderá elaborar a norma. Foi assim no passado e a lei era compreensível, interpretável, sistemática e silogística.
Produzir leis é particularmente complexo e exige um conhecimento profundo da realidade socioeconómica, das normas existentes, da aplicação prática e do impacto que tem na vida das pessoas e empresas. A burocracia é um exemplo disso. Vê-se claramente que não existe uma pessoa ou pessoas responsáveis pelo sistema burocrático, contabilístico e fiscal que consigam agregar ideias e evitar a duplicação de tarefas. Na verdade, a degeneração que observamos na lei é consequência da degradação do nosso sistema político e em geral da administração pública.
Transformaram o Estado e Administração Pública em agências de emprego e de “jobs for the boys” e não numa entidade supremamente importante que assegura a segurança, defesa e saúde, etc. ao povo português. Na verdade, o sistema político não tem tido a capacidade de se regenerar nem melhorar e adaptar ao mundo em mudança. Pior, viola permanentemente direitos, liberdades e garantias, direitos da personalidade e direito à vida privada das pessoas e empresas, com o beneplácito da presidência, procuradorias e tribunais, que deveriam assegurar a solidez do sistema democrático e os direitos do indivíduo. Os grupos sociais/económicos beneficiados são aqueles que estão próximos do poder político e do Estado ou que agem para defender a popularidade do Governo do momento.
CE – Pelo que refere, continua a não haver vontade política para alterar o atual regime?
TCG - Não. Não existe qualquer vontade para alterar o regime atual que alimenta uma elite e clientela que vive extraordinariamente bem com a situação atual. É preciso referir que, no resto da União Europeia, o conceito utilizado não é exatamente igual ao nosso. A maioria dos países recorre ao conceito de “Tax expenditures”, que se reconduz ao conceito de despesa fiscal – diretamente – e não de benefício fiscal, ainda que sejam igualmente reduções nas receitas governamentais, através do tratamento fiscal preferencial de determinados grupos de pagadores de impostos ou atividades específicas.
Portugal é um país extraordinário, com um território dotado de uma fabulosa diversidade ecológica, de uma imensa beleza e com uma cultura rica e complexa. É um milagre conseguirmos ser tão subdesenvolvidos economicamente. Os pequenos poderes, a estultícia, as invejas e a corrupção matam todas as oportunidades de nos desenvolvermos. Fomos bem governados e extremamente cosmopolitas no reinado de D. João II e pelo Marquês de Pombal. Infelizmente,1 não vislumbro ninguém assim no horizonte.