Portugal é dos países que mais empregos perdem com a inteligência artificial
A governação digital assume uma importância crescente na sociedade. Portugal não foge à regra e a digitalização é um processo irreversível. Um dos grandes problemas é que a nossa mão de obra ainda é pouco qualificada, facto que vai trazer problemas adicionais. O impacto será muito forte no que toca à inteligência artificial e à robotização em contexto laboral, alerta Miguel Poiares Maduro. “Os problemas de hoje exigem uma resposta integrada, articulada, entre diferentes políticas e áreas da administração que é o contrário da lógica de silos em que a administração e os governos classicamente funcionam.”
O que é a governança digital?
É um termo que abrange um conjunto alargado de questões relativas quer aos modelos de governo no espaço digital, tais como as escolhas institucionais relevantes para a atribuição de domínios na internet ou a regulação da liberdade de expressão nas redes sociais, quer relativas à forma como a transformação digital altera processos e temas de governo, tais como a fiscalidade ou a participação política.
Quais são os desafios específicos da Governança Digital em Portugal?
A grande maioria são semelhantes aos de outros Estados, questões como a dimensão ética da inteligência artificial, a responsabilização pelos algoritmos, o combate à desinformação etc. Mas há desafios que assumem uma dimensão especial em Portugal. Por exemplo, a natureza da nossa economia, muito assente em mão de obra pouco qualificada, torna-nos particularmente vulneráveis ao impacto da inteligência artificial e robotização no trabalho. Os estudos internacionais indicam que Portugal é um dos países que perderão mais emprego em virtude da inteligência artificial. Embora devamos ter cautela na leitura das conclusões destes estudos, porque é algo difícil de medir e porque esta transformação também trará novos empregos, eles tendem a indicar que podemos perder metade dos postos de trabalho existentes nos próximos vinte anos. Mesmo que sejam substituídos por outros, não será fácil essa transferência e terá consequências redistributivas e sociais significativas.
Como é que a governança digital pode ser um fator estratégico para gerar conhecimento e inovação por meio de tecnologias que proporcionam melhorias na qualidade de vida da sociedade?
É a transformação tecnológica que pode gerar conhecimento e inovação. O papel da governança digital é aquele de potenciar esse papel da digitalização ao mesmo tempo que mitiga e regula os seus riscos. A transformação digital permite uma aceleração e disseminação de informação que só tem paralelo histórico com a invenção da impressão. O impacto é semelhante em termos do potencial de promoção do conhecimento e cooperação e são estes processos que trazem desenvolvimento à sociedade. Mas tal como a impressão, ao mesmo tempo que divulgava e promovia conhecimento, também foi utilizada para promover falsidades. O mesmo ocorre agora com a internet por exemplo. O papel da governança digital é aquele de potenciar o que de melhor nos pode trazer e limitar os riscos que também comporta.
Na administração pública, que princípios devem ser seguidos para que haja mais governabilidade por meio de práticas relacionadas à digitalização dos serviços?
Há vários, mas darei dois exemplos: a integração da governação e o acesso aberto e transparência. A digitalização depende e promove uma governação mais integrada. Os problemas de hoje exigem uma resposta integrada, articulada, entre diferentes políticas e áreas da administração que é o contrário da lógica de silos em que a administração e os governos classicamente funcionam. A digitalização da administração simultaneamente exige e promove uma lógica de governação integrada. O segundo exemplo diz respeito à transparência e acesso aos dados. A digitalização permite uma disponibilização de dados que, se bem organizada, facilita os processos de escrutínio da atividade pública, trazendo mais transparência, mas também os processos de conhecimento e cooperação resultantes desses dados, na medida em que eles sejam acessíveis a uma comunidade de cientistas, por exemplo, mais ampla.
Como é que a sedimentação dos princípios de governança digital pode contribuir para o surgimento de um novo conceito de democracia?
Direi que altera a prática da democracia. Isso é assim de duas formas fundamentais. Primeiro, porque facilitam o acesso à informação sem os intermediários habituais. Se isto pode ter aspetos positivos, também tem riscos. É que informação e conhecimento não são a mesma coisa, mas as pessoas tendem a confundi-los. Para conhecer é preciso ter competências para avaliar essa informação. Ora o acesso generalizado a informação começa a levar as pessoas, erradamente, a presumir que conhecem. Também torna mais fácil a desinformação, na medida em que se perdem referentes de credibilidade quanto à informação. Não se sabe o que é falso e verdadeiro sem esses referentes que antes mediavam o acesso a essa informação. Em segundo lugar, a participação política organiza-se de forma diferente no espaço público digital. Se por um lado ela é facilitada, por outro lado, a forma direta como ocorre e a organização de bolhas informativas, uma vez que os algoritmos digitais repetem o que queremos ouvir e não nos sujeitam a ideias diferentes, tendem a promover uma política mais polarizada e radicalizada. Isto está a trazer problemas para a democracia e a sua capacidade de reconciliar interesses diferentes na procura do bem comum.
O conceito de governança digital no setor público, para ser eficaz, não tem que ser acompanhado de um igual esforço de introdução desses mecanismos no setor privado e empresarial?
Uma das dificuldades é saber o que é e deve ser público ou privado neste contexto. Uma rede social que é dominante num certo mercado está a fornecer meramente um serviço privado ou está na prática a regular a liberdade de expressão no espaço público digital? São questões difíceis, mas fundamentais, que temos de enfrentar. A boa governação tem de existir em ambos, mas a natureza das obrigações depende da natureza da função que o próprio setor privado exerce em diferentes contextos.
A assunção de um processo de conceção digital (digital by design) e a assunção da abertura de acesso à informação (open by default) são essenciais no processo de implementação desta revolução da governança digital? Porquê?
Como já referi, são princípios que estão associados à cooperação, governação integrada, disseminação de informação que são algumas das vantagens trazidas pela digitalização. Para tirar partido dessas vantagens é importante que esses sejam princípios estruturantes da governação digital.
Quais os próximos passos de implementação da metodologia de governança digital em Portugal? Considera que existe permeabilidade do setor público para essas mudanças?
Não tenho conhecimento específico da estratégia atual do Governo nesta matéria. Em geral, nós somos um país que tem evoluído bastante neste domínio, acima da média europeia. Ainda há muito para fazer, naturalmente. Acho que a principal dificuldade no setor público passa pela lógica de silos no funcionamento da administração pública. Superar isto não é fácil. É uma cultura de mais de um século. Mas é fundamental para a qualidade das políticas públicas e dos serviços prestados aos cidadãos.
Quem beneficia com essas mudanças? Qual o impacto concreto para o quotidiano do comum cidadão?
A mais relevante tem precisamente a ver com o funcionamento da administração em função do cidadão e não, como até agora, impondo ao cidadão que se adeque à organização da administração. Uma segunda vantagem muito importante é a promoção de mais transparência e o escrutínio sobre a atividade pública que esta traz.
Quais são os objetivos da Cátedra VDA nessa revolução digital?
Como mencionei, a transformação digital traz um conjunto de desafios cujo nosso sucesso em afrontá-los vai depender das formas de governação adotadas, em que questões que vão desde o escrutínio e “accountability” dos algoritmos à regulação da informação e liberdade de expressão nas redes sociais. A cátedra estudará estas questões com um foco muito grande nas que se relacionem mais diretamente com a qualidade das nossas democracias.
E, mais importante, qual o contributo?
O desejo é que possamos contribuir para uma digitalização da sociedade e economia que potencie os seus benefícios e mitigue os seus riscos. O foco, como disse, está nas questões democráticas. Aliás, acabo de publicar um livro com um colega americano (“Democracy in Times of Pandemic”) que já aborda algumas destas questões.
O relatório ‘Digital Government Index 2019’ da OCDE, que avalia como estão a progredir os países em matéria de governança digital, coloca Portugal na 9.ª posição. Qual a importância deste ranking e como se compara Portugal com os outros países?
Como já mencionei, acho que nos comparamos bem com outros Estados. Mas ainda temos muito para fazer e há desafios enormes pela frente. Espero que tiremos ainda mais partido das oportunidades que esta transformação nos oferece e saibamos abordar de forma correta os desafios que nos traz.