Ligações societárias Portugal-Brasil
Cristina Bogado
Advogada em Portugal
e no Brasil - RSA LP
A partilha histórica, cultural e linguística entre Portugal e Brasil acabou por determinar, também, e naturalmente, a busca de oportunidades de expansão e de crescimento internacional do negócio por parte de empresas portuguesas e brasileiras, respetivamente, do outro lado e deste lado do Atlântico. Regra geral, o centro de decisões mantém-se no país de origem do investimento, seja ele Portugal ou Brasil, por aí se encontrar a sede do grupo empresarial internacional.
Ora, se, no plano da atividade industrial e comercial normal e estritamente de mercado, a “extraterritorialidade” se vem mostrando gerível e capaz de criar sinergias operacionais e valor para o grupo, já no plano jurídico, quando uma relação se torna litigiosa, a circunstância de as sociedades estarem subordinadas ao regime jurídico do país da sua sede agrava o risco e a subsequente dificuldade de sociedades do grupo com sede num país, credores ou qualquer outro interessado poderem fazer valer as suas pretensões e/ou direitos em sede judicial, perante sociedade do mesmo grupo, com sede no outro país, o que se traduz numa contingência (jurídica) decorrente da internacionalização dos grupos empresariais. É sobre este específico aspeto que se pretende aqui deixar breves notas.
Considerando os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, pode afirmar-se, regra geral, que a lei aplicável é a lei pessoal, ou seja, a do país da sede da sociedade(1). Acresce que uma decisão judicial proferida num dos países só produz efeitos no outro país, depois de submetida a um processo de revisão de sentença estrangeira(2). Há, porém, uma especificidade no ordenamento jurídico brasileiro que passa por impor aos quotistas ou acionistas com sede/domicílio no exterior que nomeiem e mantenham representante no Brasil com poderes para receber citação em ações contra eles propostas, que tenham por fundamento preceitos legais brasileiros.
O que vem de ser referido cria inúmeras dificuldades. Imagine-se que se pretende a responsabilização da sociedade de controlo sedeada no Brasil e de seus administradores devido à prática de atos lesivos à sociedade controlada sedeada em Portugal, ou de atos lesivos praticados por esta; imagine-se, ainda, a declaração de insolvência de sociedade de direito português integrante do grupo, que impacte na sociedade de direito brasileiro, e vice-versa. A resposta a estas questões não é imediata.
Isto porque, se excetuarmos v.g. os regimes especiais estabelecidos para os Estados-Membros na União Europeia, não existe regulação uniforme mínima a nível internacional, objeto de tratados internacionais multilaterais, aplicáveis aos grupos económicos e empresariais internacionais, reconhecendo-os como tal e estabelecendo, por exemplo, regras de responsabilização da sociedade controladora estrangeira e dos seus administradores, pelos atos que pratique no contexto do grupo, lesivos à sociedade controlada com sede em outra jurisdição, e por atos praticados por esta, que determine, ainda, o país onde as ações relativas à responsabilidade de cariz societário devem ser propostas e, bem assim, que a sentença proferida neste país pode ser executada no outro país, sem necessidade de prévio reconhecimento judicial da decisão estrangeira. De igual modo, não existe regulação internacional relativa à insolvência que envolva grupos societários internacionais.
Também não existe acordo bilateral entre Portugal e Brasil para tratar das referidas questões, quanto aos grupos societários integrados por sociedades portuguesas e brasileiras, nem acordo específico de cooperação judiciária entre os dois países para questões de direito civil e comercial; neste âmbito, os interessados têm, apenas, ao seu dispor a Convenção da Haia de 1965, de 15 de novembro, relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial e a Convenção da Haia de 1970, de 10 de março, sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, o que cria dificuldades e delongas desnecessárias no processamento das ações judiciais que envolvam sociedades do mesmo grupo empresarial com sede nos dois países.
Com efeito, no que tange especificamente à responsabilização da sociedade de controlo pelas suas decisões e pelos atos da sociedade controlada, verifica-se que nos ordenamentos jurídicos dos dois países existe previsão legal quanto às relações que se verifiquem entre sociedades que tenham sede no país respetivo. Esta realidade, que no caso de Portugal resulta evidente da 1.ª parte do n.º 2 do art. 481.º do CSC, mantém-se no caso do Brasil por interpretação sistemática do seu ordenamento jurídico, que entretanto contempla duas particularidades: (i) admite sistema de grupos societários dual, grupos de direito, constituídos através de convenção firmada pelas sociedades que o formam (arts. 265 a 277 da Lei n.º 6.404/1976 – Lei das Sociedade por Ações – “LSA”), e grupos de fato, que decorrem do mero exercício do poder de controle, pela controladora nas sociedades controladas (cuja disciplina está regulada nos arts 243 a 252 e 264 da LSA, aplicando-se, no mais, a disciplina comum às sociedades comerciais), os quais, na prática, predominam e têm estrutura de poder no qual o controlador (titular da maioria do capital votante) exerce o controle das sociedades controladas e influencia as respetivas administrações, seguindo uma estratégia unificada para o grupo a fim de atingir um resultado global; (ii) nos grupos de direito a sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve ser brasileira (art 265 da LSA).
Assim sendo, quando se está perante responsabilização com fundamento nas relações de grupo previstas na lei societária, as normas do ordenamento jurídico de um país que atribuam, de forma direta ou indireta, responsabilidade à sociedade acionista ou quotista com sede no outro país não são aplicáveis diretamente, sem integração com as normas internas do outro país; é o caso, por exemplo, do disposto na alínea c) do n.º 2 do art 481.º do CSC, que estabelece que uma sociedade dominante com sede no estrangeiro, no Brasil que seja, de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios; no art. 1.080 do Código Civil brasileiro aplicável às sociedades limitadas, que determina que as deliberações que infrinjam o contrato ou a lei tornam ilimitada a responsabilidade dos acionistas que as aprovaram, nos arts. 115 § 3.º, 117, 118 § 2.º e 246 da LSA, que determinam, respetivamente, que o acionista responde pelos danos causados pelo exercício abusivo do direito de voto, que o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder, que os acordos de acionistas não poderão ser invocados para eximir o acionista de responsabilidade e que a sociedade controladora será obrigada a reparar os danos que causar à sociedade controlada por atos praticados com abuso de poder, aplicáveis às sociedades por ações e, subsidiariamente, às sociedades limitadas.
Ademais, visando segregação de riscos, em ambos os ordenamentos jurídicos há uma regra comum no sentido de que a pessoa coletiva não se confunde com a dos seus sócios, sendo reconhecida autonomia patrimonial entre elas. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro contempla disposição legal que permite colmatar a separação patrimonial, quando se verifica uma situação de abuso da personalidade jurídica, conforme decorre do disposto no art. 50 do Código Civil brasileiro, nos termos do qual “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caraterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento (…), desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. Por via deste mecanismo, a completa independência e o tratamento jurídico autónomo das sociedades do grupo são afastados, reconhecendo-se, antes, a existência de uma unidade económica, patrimonial e organizacional entre elas.
A questão que se coloca é se um tribunal brasileiro poderá aplicar esta desconsideração da personalidade jurídica a sociedades de direito português, acionistas/quotistas de sociedades brasileiras e se, de igual modo, um tribunal português pode mobilizar este instituto para responsabilizar sociedade brasileira do mesmo grupo. Ora, não existindo norma semelhante em Portugal, e nem qualquer disposição legal que permita tal desconsideração da personalidade jurídica no contexto de sociedades em relação de grupo, em especial, no contexto de grupo internacional, vemos com muita dificuldade que um tribunal brasileiro possa desconsiderar a personalidade de sociedade portuguesa, e vice-versa. Ademais, se no Brasil o instituto é legalmente reconhecido, em Portugal, mantém-se ainda num plano meramente doutrinário e jurisprudencial, apoiado em princípios gerais consagrados na lei, como sejam o abuso de direito, a má fé e o intuito de prejudicar terceiros.
Não obstante o que se deixou exposto, deixamos duas notas relevantes: (i) não sendo possível imputar responsabilidade com fundamento na relação de grupo, nos termos da lei societária, será possível imputá-la com fundamento nas regras gerais de responsabilidade civil, desde que estejam preenchidos todos os respetivos pressupostos; (ii) a dificuldade de responsabilização da sociedade estrangeira integrante de um grupo não se verifica se tiver por fundamento uma obrigação assumida contratualmente (v.g., por prestação de garantia).
Por fim, no que tange à declaração de insolvência de uma das sociedades do grupo, com impacto em sociedade com sede no outro país, várias questões se podem colocar, desde logo o fato de uma sentença de declaração de insolvência proferida, por exemplo, em Portugal, não conferir poder ao administrador da insolvência para apreender participação social representativa do capital da sociedade brasileira detida pela insolvente, e muito menos para vendê-la com os efeitos aplicáveis a qualquer ativo sito em Portugal, sem que antes se promovam os procedimentos necessários no Brasil, incluindo o reconhecimento judicial daquela sentença, e vice-versa. Isto porque não existem regras aplicáveis internacionalmente que permitam colmatar as limitações decorrentes do princípio da territorialidade, que vigora em Portugal e no Brasil, nomeadamente em sede de insolvência.
Ora, o direito, que forma e conforma os negócios a montante e a jusante, não pode deixar de se adaptar à era da globalização multidimensional e da hiperaceleração das comunicações, afigurando-se indispensável dar passos determinados no sentido da criação de um corpo normativo e regulamentar único que fixe, com absoluta segurança, as regras e critérios internacionais no âmbito comercial, societário e da insolvência, simplificando as relações de grupo, o processo e a subsequente exequibilidade das decisões judiciais. Concluindo-se, assim, que, na falta de regulação internacional e/ou pelo menos bilateral entre Portugal e Brasil, mister se faz a apreciação casuística da situação concreta, tomando em consideração os ordenamentos jurídicos português e brasileiro (no plano do direito substantivo e do direito adjetivo) e a articulação entre eles, a fim de se encontrar a solução adequada ao caso concreto.
NOTAS:
1- Como se extrai do disposto, inter alia, nos arts 2.º, 3.º e 4.º do Código das Sociedades Comerciais Português (“CSC-PT”), 33.º e 34.º do Código Civil português (“CC-PT”), 11 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – “LINDB”), e 40, 44, inciso II 45 e 75, inciso IV e §§ 1.º e 2.º do Código Civil brasileiro (“CC-BR”).
2- Como se extrai do disposto nos arts 978.º a 985.º do Código de Processo Civil português (“CPC-PT”) e 960 a 965 do Código de Processo Civil brasileiro (“CPC-BR”).
Ora, se, no plano da atividade industrial e comercial normal e estritamente de mercado, a “extraterritorialidade” se vem mostrando gerível e capaz de criar sinergias operacionais e valor para o grupo, já no plano jurídico, quando uma relação se torna litigiosa, a circunstância de as sociedades estarem subordinadas ao regime jurídico do país da sua sede agrava o risco e a subsequente dificuldade de sociedades do grupo com sede num país, credores ou qualquer outro interessado poderem fazer valer as suas pretensões e/ou direitos em sede judicial, perante sociedade do mesmo grupo, com sede no outro país, o que se traduz numa contingência (jurídica) decorrente da internacionalização dos grupos empresariais. É sobre este específico aspeto que se pretende aqui deixar breves notas.
Considerando os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, pode afirmar-se, regra geral, que a lei aplicável é a lei pessoal, ou seja, a do país da sede da sociedade(1). Acresce que uma decisão judicial proferida num dos países só produz efeitos no outro país, depois de submetida a um processo de revisão de sentença estrangeira(2). Há, porém, uma especificidade no ordenamento jurídico brasileiro que passa por impor aos quotistas ou acionistas com sede/domicílio no exterior que nomeiem e mantenham representante no Brasil com poderes para receber citação em ações contra eles propostas, que tenham por fundamento preceitos legais brasileiros.
O que vem de ser referido cria inúmeras dificuldades. Imagine-se que se pretende a responsabilização da sociedade de controlo sedeada no Brasil e de seus administradores devido à prática de atos lesivos à sociedade controlada sedeada em Portugal, ou de atos lesivos praticados por esta; imagine-se, ainda, a declaração de insolvência de sociedade de direito português integrante do grupo, que impacte na sociedade de direito brasileiro, e vice-versa. A resposta a estas questões não é imediata.
Isto porque, se excetuarmos v.g. os regimes especiais estabelecidos para os Estados-Membros na União Europeia, não existe regulação uniforme mínima a nível internacional, objeto de tratados internacionais multilaterais, aplicáveis aos grupos económicos e empresariais internacionais, reconhecendo-os como tal e estabelecendo, por exemplo, regras de responsabilização da sociedade controladora estrangeira e dos seus administradores, pelos atos que pratique no contexto do grupo, lesivos à sociedade controlada com sede em outra jurisdição, e por atos praticados por esta, que determine, ainda, o país onde as ações relativas à responsabilidade de cariz societário devem ser propostas e, bem assim, que a sentença proferida neste país pode ser executada no outro país, sem necessidade de prévio reconhecimento judicial da decisão estrangeira. De igual modo, não existe regulação internacional relativa à insolvência que envolva grupos societários internacionais.
Também não existe acordo bilateral entre Portugal e Brasil para tratar das referidas questões, quanto aos grupos societários integrados por sociedades portuguesas e brasileiras, nem acordo específico de cooperação judiciária entre os dois países para questões de direito civil e comercial; neste âmbito, os interessados têm, apenas, ao seu dispor a Convenção da Haia de 1965, de 15 de novembro, relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial e a Convenção da Haia de 1970, de 10 de março, sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, o que cria dificuldades e delongas desnecessárias no processamento das ações judiciais que envolvam sociedades do mesmo grupo empresarial com sede nos dois países.
Com efeito, no que tange especificamente à responsabilização da sociedade de controlo pelas suas decisões e pelos atos da sociedade controlada, verifica-se que nos ordenamentos jurídicos dos dois países existe previsão legal quanto às relações que se verifiquem entre sociedades que tenham sede no país respetivo. Esta realidade, que no caso de Portugal resulta evidente da 1.ª parte do n.º 2 do art. 481.º do CSC, mantém-se no caso do Brasil por interpretação sistemática do seu ordenamento jurídico, que entretanto contempla duas particularidades: (i) admite sistema de grupos societários dual, grupos de direito, constituídos através de convenção firmada pelas sociedades que o formam (arts. 265 a 277 da Lei n.º 6.404/1976 – Lei das Sociedade por Ações – “LSA”), e grupos de fato, que decorrem do mero exercício do poder de controle, pela controladora nas sociedades controladas (cuja disciplina está regulada nos arts 243 a 252 e 264 da LSA, aplicando-se, no mais, a disciplina comum às sociedades comerciais), os quais, na prática, predominam e têm estrutura de poder no qual o controlador (titular da maioria do capital votante) exerce o controle das sociedades controladas e influencia as respetivas administrações, seguindo uma estratégia unificada para o grupo a fim de atingir um resultado global; (ii) nos grupos de direito a sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve ser brasileira (art 265 da LSA).
Assim sendo, quando se está perante responsabilização com fundamento nas relações de grupo previstas na lei societária, as normas do ordenamento jurídico de um país que atribuam, de forma direta ou indireta, responsabilidade à sociedade acionista ou quotista com sede no outro país não são aplicáveis diretamente, sem integração com as normas internas do outro país; é o caso, por exemplo, do disposto na alínea c) do n.º 2 do art 481.º do CSC, que estabelece que uma sociedade dominante com sede no estrangeiro, no Brasil que seja, de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios; no art. 1.080 do Código Civil brasileiro aplicável às sociedades limitadas, que determina que as deliberações que infrinjam o contrato ou a lei tornam ilimitada a responsabilidade dos acionistas que as aprovaram, nos arts. 115 § 3.º, 117, 118 § 2.º e 246 da LSA, que determinam, respetivamente, que o acionista responde pelos danos causados pelo exercício abusivo do direito de voto, que o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder, que os acordos de acionistas não poderão ser invocados para eximir o acionista de responsabilidade e que a sociedade controladora será obrigada a reparar os danos que causar à sociedade controlada por atos praticados com abuso de poder, aplicáveis às sociedades por ações e, subsidiariamente, às sociedades limitadas.
Ademais, visando segregação de riscos, em ambos os ordenamentos jurídicos há uma regra comum no sentido de que a pessoa coletiva não se confunde com a dos seus sócios, sendo reconhecida autonomia patrimonial entre elas. No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro contempla disposição legal que permite colmatar a separação patrimonial, quando se verifica uma situação de abuso da personalidade jurídica, conforme decorre do disposto no art. 50 do Código Civil brasileiro, nos termos do qual “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caraterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento (…), desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. Por via deste mecanismo, a completa independência e o tratamento jurídico autónomo das sociedades do grupo são afastados, reconhecendo-se, antes, a existência de uma unidade económica, patrimonial e organizacional entre elas.
A questão que se coloca é se um tribunal brasileiro poderá aplicar esta desconsideração da personalidade jurídica a sociedades de direito português, acionistas/quotistas de sociedades brasileiras e se, de igual modo, um tribunal português pode mobilizar este instituto para responsabilizar sociedade brasileira do mesmo grupo. Ora, não existindo norma semelhante em Portugal, e nem qualquer disposição legal que permita tal desconsideração da personalidade jurídica no contexto de sociedades em relação de grupo, em especial, no contexto de grupo internacional, vemos com muita dificuldade que um tribunal brasileiro possa desconsiderar a personalidade de sociedade portuguesa, e vice-versa. Ademais, se no Brasil o instituto é legalmente reconhecido, em Portugal, mantém-se ainda num plano meramente doutrinário e jurisprudencial, apoiado em princípios gerais consagrados na lei, como sejam o abuso de direito, a má fé e o intuito de prejudicar terceiros.
Não obstante o que se deixou exposto, deixamos duas notas relevantes: (i) não sendo possível imputar responsabilidade com fundamento na relação de grupo, nos termos da lei societária, será possível imputá-la com fundamento nas regras gerais de responsabilidade civil, desde que estejam preenchidos todos os respetivos pressupostos; (ii) a dificuldade de responsabilização da sociedade estrangeira integrante de um grupo não se verifica se tiver por fundamento uma obrigação assumida contratualmente (v.g., por prestação de garantia).
Por fim, no que tange à declaração de insolvência de uma das sociedades do grupo, com impacto em sociedade com sede no outro país, várias questões se podem colocar, desde logo o fato de uma sentença de declaração de insolvência proferida, por exemplo, em Portugal, não conferir poder ao administrador da insolvência para apreender participação social representativa do capital da sociedade brasileira detida pela insolvente, e muito menos para vendê-la com os efeitos aplicáveis a qualquer ativo sito em Portugal, sem que antes se promovam os procedimentos necessários no Brasil, incluindo o reconhecimento judicial daquela sentença, e vice-versa. Isto porque não existem regras aplicáveis internacionalmente que permitam colmatar as limitações decorrentes do princípio da territorialidade, que vigora em Portugal e no Brasil, nomeadamente em sede de insolvência.
Ora, o direito, que forma e conforma os negócios a montante e a jusante, não pode deixar de se adaptar à era da globalização multidimensional e da hiperaceleração das comunicações, afigurando-se indispensável dar passos determinados no sentido da criação de um corpo normativo e regulamentar único que fixe, com absoluta segurança, as regras e critérios internacionais no âmbito comercial, societário e da insolvência, simplificando as relações de grupo, o processo e a subsequente exequibilidade das decisões judiciais. Concluindo-se, assim, que, na falta de regulação internacional e/ou pelo menos bilateral entre Portugal e Brasil, mister se faz a apreciação casuística da situação concreta, tomando em consideração os ordenamentos jurídicos português e brasileiro (no plano do direito substantivo e do direito adjetivo) e a articulação entre eles, a fim de se encontrar a solução adequada ao caso concreto.
NOTAS:
1- Como se extrai do disposto, inter alia, nos arts 2.º, 3.º e 4.º do Código das Sociedades Comerciais Português (“CSC-PT”), 33.º e 34.º do Código Civil português (“CC-PT”), 11 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – “LINDB”), e 40, 44, inciso II 45 e 75, inciso IV e §§ 1.º e 2.º do Código Civil brasileiro (“CC-BR”).
2- Como se extrai do disposto nos arts 978.º a 985.º do Código de Processo Civil português (“CPC-PT”) e 960 a 965 do Código de Processo Civil brasileiro (“CPC-BR”).