Impacto da pandemia nos procedimentos de contratação pública é inevitável
A pandemia terá um impacto significativo no que toca aos procedimentos da contratação pública. Mas a legislação prevê que pode ser excecionalmente adotado, na medida do necessário e devidamente fundamentado, o regime do procedimento de ajuste direto, no âmbito da celebração de contratos relacionados com a crise sanitária, explicam os responsáveis da Raposo Subtil Advogados (RSA).
VJ – Qual o impacto da presente pandemia nos procedimentos de contratação pública?
Rui Resende – O impacto da pandemia nos procedimentos de contratação pública é inevitável, tendo-se verificado o atraso de alguns concursos já anunciados e algumas alterações que visaram simplificar o regime da contratação pública, especialmente no que concerne a contratos relacionados com o combate à pandemia Covid-19.
A este propósito, o artigo 2.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, previu que poderia ser, excecionalmente, adotado, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa, devidamente fundamentada, e independentemente do preço contratual e até ao limite do cabimento orçamental, o regime do procedimento de ajuste direto simplificado previsto no artigo 128.º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, para a celebração de contratos cujo objeto consista na aquisição de equipamentos, bens e serviços necessários à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção por SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, ou com estas relacionados, designadamente equipamentos de proteção individual, bens necessários à realização de testes à Covid-19, equipamentos e material para unidades de cuidados intensivos, medicamentos, incluindo gases medicinais e outros dispositivos médicos, serviços de logística e transporte, incluindo aéreo, relacionados com as aquisições, a título oneroso ou gratuito, dos bens referidos nas alíneas anteriores, bem como com a sua distribuição a entidades sob tutela do membro do Governo responsável pela área da saúde ou a outras entidades públicas ou de interesse público às quais se destinem.
Tal impacto era inevitável, não podendo o Estado deixar de adquirir todos os materiais necessários para o combate à Covid-19 no mais curto espaço de tempo face à urgência imperiosa de combater a pandemia, nem deixar de proceder à celebração de contratos de empreitada de obras públicas, de contratos de locação ou aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa.
Não obstante, a simplificação do acesso a procedimentos de contratação mais fechados e afastados do regime do concurso não poderá significar qualquer quebra no caminho de redução da aplicabilidade dos procedimentos de contratação mais fechados que havia resultado da reforma do CCP de 2017.
VJ – E qual o impacto que a pandemia trouxe na execução dos contratos públicos?
Valéria Polska – O conjunto de medidas extraordinárias urgentes relativas aos contratos administrativos sujeitos à Parte II do Código dos Contratos Públicos não veio abranger a fase de execução dos contratos públicos. Contudo, a ausência de regulação extraordinária no que respeita às dificuldades de execução das obrigações contatuais causadas pela paralisação da maioria dos setores de atividade não se traduziu numa lacuna legal relativa à regulação do impacto da pandemia, cabendo às regras gerais constantes do Código dos Contratos Públicos solucionar as expectáveis perturbações e impedimentos no processo de execução dos contratos públicos.
A inexistência de condições necessárias ao cumprimento das obrigações contratualmente assumidas, maioritariamente causadas pela pandemia e/ou pelas medidas públicas adotadas pelo legislador nacional, veio resultar não apenas em atrasos na execução das prestações acordadas como também no seu incumprimento definitivo, limitado aos casos em que o contraente se vê privado de condições para realizar a sua prestação, salvo os obstáculos práticos colocados pela pandemia ou o agravamento de custos exigido pelo cumprimento moroso.
Como consequência menos gravosa, a impossibilidade temporária de cumprimento do contrato poderá fundamentar uma suspensão de um determinado contrato público, constituindo causa de exoneração da responsabilidade pelo atraso no cumprimento por parte do contratante responsável pela obrigação suspensa.
Caso as medidas de contenção da doença Covid-19 se traduzam numa impossibilidade absoluta e superveniente à celebração do contrato, não imputável ao contratante devedor, a consequência para o contrato público passará pela extinção das obrigações afetadas ou do contrato no seu todo, acompanhada da exoneração do contratante impossibilitado.
Assim, o normal processo da execução dos contratos públicos poderá não só ser perturbado por uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias da sua execução, resultando numa perda de interesse do contraente público nas prestações do contrato, como através de impossibilidades temporárias e definitivas causadas pela pandemia Covid-19.
VJ – Prevê-se um aumento da área de prática de Contratação Pública no atual contexto?
Rui Resende – No atual contexto, parece-me que tal aumento será inevitável, existindo já claros sinais do mesmo.
Ao estarmos perante uma pandemia, são, desde logo, criados diversos desafios na execução dos contratos, atendendo à alteração das circunstâncias, conduzindo a modificações aos contratos ou à impossibilidade temporária ou definitiva dos mesmos, o que conduz a um aumento das solicitações nesta área. O legislador tentou indicar alguns caminhos, nomeadamente, no que concerne ao reequilíbrio financeiro de contratos de execução duradoura em que o Estado ou outra entidade pública seja parte, através do Decreto-Lei n.º 19-A/2020, de 30.04, mas não creio que tal tenha constituído uma solução com maior aceitação junto dos cocontratantes ou que tal tenha simplificado as questões que nos são suscitadas pelos operadores de mercado.
As medidas excecionais adotadas no atual contexto pandémico, relativas à contratação pública (previstas no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, no Decreto-Lei n.º 10-E/2020, de 24.03, na Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, na Lei n.º 4-A/2020, de 06.04, no Decreto-Lei n.º 19-A/2020, de 30.04, no Decreto-Lei n.º 22/2020, de 16.05), também suscitaram, durante o ano 2020, diversas dúvidas junto dos operadores económicos que atuam nestas áreas, o que também obrigou a uma assessoria jurídica próxima aos clientes.
No entanto, o maior aumento desta área de prática sucederá certamente com a futura adoção de medidas especiais de contratação pública em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, bem como com as alterações ao Código dos Contratos Públicos, que resultam da Proposta de Lei n.º 41/XIV (Decreto n.º 95/XIV), a qual foi aprovada em Assembleia da República mas objeto de veto presidencial, não só pelas questões jurídicas controversas que tal proposta de lei contém, mas também considerando o tendencial incremento de investimento público nos tempos próximos.
Rui Resende: “O Estado não pode deixar de adquirir todos os materiais no mais curto espaço de tempo, face à urgência imperiosa de combater a pandemia.”
VJ – O pacote de medidas especiais de contratação pública contém as soluções necessárias e adequadas para o denominado Plano de Recuperação e Resiliência? O que mais poderia ser feito?
Rui Resende – Sinceramente, cremos que podia até ser feito menos, pois o Código dos Contratos Públicos atualmente em vigor já contém soluções adequadas para a concretização do Plano de Recuperação e Resiliência.
Numa análise breve ao Decreto n.º 95/XIV, diríamos que a vasta maioria das alterações propostas para o Código dos Contratos Públicos são adequadas e, no geral, resolvem algumas questões controversas que haviam resultado da revisão do CCP de 2017, concluindo mesmo que o ora proposto resultará numa melhoria do CCP em vigor.
No entanto, não vislumbro a necessidade de se criar um regime de consulta prévia simplificada para contratos até J750.000,00, porquanto o procedimento regra na contratação é (tem de ser) o regime do concurso.
A propósito das medidas adotadas pelos Estados para a área da contração pública no âmbito da presente pandemia de Covid-19, a OCDE, recordando que os procedimentos fechados são sempre desencorajados por aquela organização para qualquer dos seus membros, exemplifica com o caso do Instituto Mexicano de Segurança Social, que logrou obter uma redução de preço entre 11,2 e 11,9% em procedimentos contratuais com concurso, em comparação com procedimentos contratuais, sejam eles de ajuste direto ou de consulta prévia.
A OCDE reforça ainda que a cobertura de todas as necessidades atuais ou futuras que não tenham qualquer relação com a pandemia nunca poderão justificar o recurso ou o alargamento do recurso a procedimentos fechados, em detrimento do procedimento de concurso, a menos que exista uma fundada razão relacionada com qualquer questão de emergência.
Na mesma linha, e também a propósito da adoção de medidas excecionais em matéria de contratação pública no atual contexto de pandemia, a Comissão Europeia já se pronunciou no sentido de a adjudicação por ajuste direto a um operador económico pré-selecionado continuar a ser uma situação de exceção, aplicável se apenas uma empresa for capaz de cumprir os condicionalismos técnicos e de tempo impostos pela extrema urgência.
Sabendo-se atualmente que existirá um pacote de fundos europeus de valor significativo destinado a financiar as economias europeias para relançar as mesmas atendendo à crise provocada pela pandemia, cremos que era tempo de rever o CCP, assegurando que o mesmo continha as soluções adequadas para a correta aplicação de tais Fundos, mas sem que tal implique qualquer redução do controlo da legalidade e da regularidade dos contratos. Bem pelo contrário, atenta a importância daquele pacote de fundos europeus para o relançamento da economia, o controlo da legalidade e regularidade dos contratos deveria ser reforçado.
VJ – De entre as medidas previstas, encontra-se a previsão de as entidades adjudicantes deverem assegurar que os operadores económicos respeitem as normas aplicáveis em vigor, seja em matéria social, laboral, ambiental, de igualdade de género e de prevenção e combate à corrupção. As entidades adjudicantes estão preparadas para efetuar tal controlo?
Joana Mata – O art.º 1.º-A do Código dos Contratos Públicos veio prever que “as entidades adjudicantes devem assegurar, na formação e na execução dos contratos públicos, que os operadores económicos respeitam as normas aplicáveis em vigor em matéria social, laboral, ambiental e de igualdade de género, decorrentes do direito internacional, europeu, nacional ou regional”. Este artigo foi aditado ao Código dos Contratos Públicos através do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto, que procedeu à transposição da Diretiva n.º 2014/23/EU, relativa à adjudicação de contratos de concessão, Diretiva n.º 2014/24/UE, relativa aos contratos públicos em geral, Diretiva n.º 2014/25/UE, relativa a contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, energia, transportes e serviços postais e Diretiva n.º 2014/55/UE, relativa à faturação eletrónica nos contratos públicos.
Estas alterações ao Código dos Contratos Públicos vieram realçar a necessidade de as entidades públicas atuarem de forma socialmente responsável na formação e na execução de contratos, utilizando os concursos públicos de forma estratégica, não só como instrumento de políticas económicas, mas também laborais e sociais.
Tal não se aplica apenas aos contratos estabelecidos pelo Estado e pelas demais entidades adjudicantes, mas também aos contratos adjudicados pelos operadores dos setores especiais, que devem apoiar objetivos sociais comuns, como a proteção do ambiente, uma maior eficiência na utilização dos recursos e da energia, apoiar a luta contra as alterações climáticas, investir na promoção da inovação, procurar criar emprego, participar na inclusão social e na criação das melhores condições possíveis para a prestação de serviços públicos de elevada qualidade.
A título de exemplo, as entidades adjudicantes podem, através dos concursos públicos, adquirir bens e serviços que fomentem a inovação e adquirir bens que respeitem o ambiente, como promover a utilização de veículos de transporte rodoviário não poluentes e energeticamente eficientes, baseando as suas decisões de adjudicação nos custos ao longo do ciclo de vida dos produtos, serviços ou obras a adquirir. As entidades adjudicantes podem ainda, através das especificações técnicas e dos critérios de adjudicação, fazer referência aos aspetos relacionados com o processo de produção e fabrico dos produtos ou dos serviços a adquirir, garantindo a responsabilidade social dos operadores que concorrem. Da mesma forma, as entidades adjudicantes podem definir como critério no concurso que as obras, produtos ou serviços beneficiem de rótulos que certifiquem características ambientais, sociais ou outras, assegurando também desta forma o seu dever nas matérias e responsabilidades sociais.
Assim, em certa medida, parte do controlo do cumprimento das normas aplicáveis pelos operadores económicos é exigido numa primeira fase pela entidade adjudicante aquando a definição dos pressupostos para o concurso, através das especificações técnicas, dos critérios de adjudicação, da exigência de certificações do produto ou serviços, da indicação de métodos de produção e fabrico, sendo certo que a entidade adjudicante poderá sempre excluir quaisquer operadores económicos, no âmbito de um concurso, sempre que identifique infrações de obrigações, ou seja, sempre que verifique a existência de preterição das normas legais aplicáveis em matérias de natureza social, laboral, ambiental e de igualdade de género, decorrentes do direito internacional, europeu, nacional ou regional.
Não obstante, o controlo por parte das entidades adjudicantes, na fase de execução do contrato – também imposto pelo n.º 2 do art.º 1.º-A do CCP –, pode afigurar-se mais complexo, nomeadamente no que concerne ao texto resultante da Proposta de Lei n.º 41/XIV, que adita às obrigações de controlo medidas de prevenção e combate à corrupção, mas apenas no n.º 9 do artigo 81º do CCP na redação proposta por aquela proposta de lei se prevê que seja solicitada ao adjudicatário a apresentação de um plano de prevenção de corrupção e de infrações conexas mas apenas para os casos em que o valor do contrato a celebrar determine a sua sujeição a fiscalização.
Neste ponto, acreditamos que o legislador poderia ter alargado as obrigações dos adjudicatários em apresentar planos de prevenção de corrupção e infrações conexas, facilitando assim às entidades adjudicantes a sua missão de assegurar o respeito pelas normas aplicáveis à prevenção e combate à corrupção.
Joana Mata: “As alterações ao Código dos Contratos Públicos vieram realçar a necessidade de as entidades públicas atuarem de forma socialmente responsável na formação e na execução dos contratos.”
VJ – A associação da contratação pública a políticas sociais e ambientais parece vir a ser incrementada. O que poderá advir dessa tendência?
Joana Mata – A contratação pública tem legalmente previstos objetivos de eficiência, transparência, simplificação, rigor e inovação, estando igualmente previsto que na formação e na execução dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais decorrentes da Constituição da República Portuguesa, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, e designadamente os princípios da Sustentabilidade, Responsabilidade, Igualdade de Tratamento e Não-Discriminação.
A contratação pública é em si mesma um instrumento de políticas sociais e ambientais e cada vez mais se revela da maior importância e necessidade exigir das entidades públicas uma atuação que incentive o bem-estar social e as práticas amigas do ambiente.
Esta tendência, reforçada com as alterações ao Código dos Contratos Públicos através do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de Agosto, e agora com a Proposta de Lei que Estabelece Medidas Especiais de Contratação Pública e Altera o Código dos Contratos Públicos e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos vem obrigar as entidades públicas a prosseguirem outros objetivos para além da estrita relação qualidade/preço, e a definir critérios relacionados com o bem-estar social e com o ambiente.
Desta forma, e assim que se reforce verdadeiramente esta mentalidade na contratação pública e se priorize estes objetivos de bem-estar social e sustentabilidade, poderá, por um lado, observar-se uma maior competitividade na aquisição de bens e serviços com certificações ambientais, na utilização de produtos ecológicos, de tecnologias ecoconscientes, utilização de energias renováveis e em produção ecofriendly, da promoção da economia circular e por fim alcançar objetivos de preservação do ambiente e de maior sustentabilidade a longo prazo, tendo em conta que as entidades públicas estão entre os grandes consumidores a nível europeu. Estas políticas são um claro incentivo às empresas no sentido de estas investirem no desenvolvimento de te-cnologias pró-ambiente e com maior eficiência, obtendo certificações ambientais, e desta forma obterem, consequentemente, vantagens competitivas, diminuindo assim a concorrência por meio de uma diferenciação que é valorizada e que, por fim, contribui para um objetivo comum de tutela do ambiente e da qualidade de vida. Por outro lado, as preocupações de cariz social devem concretizar-se na criação de medidas que garantam o cumprimento das normas legais aplicáveis em matéria de direito social e laboral, bem como na definição de critérios de adjudicação relacionados com a promoção do emprego, igualdade no trabalho, igualdade de oportunidades e outras, alcançando assim o objetivo comum de maximização do bem-estar social e de realização dos direitos fundamentais.
VJ – O pacote de medidas previsto poderá ser uma oportunidade para novos players no mercado ou, ao invés, poderá conduzir até a uma redução dos players na contratação pública?
Joana Mata – A Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.ª, que Estabelece Medidas Especiais de Contratação Pública e Altera o Código dos Contratos Públicos e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vem proceder, no quadro do desenvolvimento de uma efetiva política de modernização administrativa, à criação de um pacote de medidas de simplificação da atividade administrativa, de desburocratização e flexibilização dos procedimentos de formação dos contratos públicos. Este pacote de medidas especiais tem por objetivo o aumento da eficiência da despesa pública, a promoção do acesso aos contratos públicos por parte de mais operadores económicos, pretendendo contribuir desta forma para a dinamização e retoma da economia, que se encontra em crise devido, em parte, à situação pandémica do Covid-19.
As medidas de simplificação e aceleração, que incluem um processo de formação e execução mais célere, com mais agilidade na utilização dos investimentos, prazos mais curtos, maior flexibilidade nas condições dos candidatos, diminuição do grau de exigência aplicável aos participantes nos procedimentos concursais em matéria de robustez contributiva, tributária e financeira, com aceitação de pedidos de pagamento em prestações a várias autoridades, dispensa de fundamentação em alguns casos, valores de concurso mais baixos, aliados a procedimentos simplificados, entre outras, parecem-nos ser medidas convidativas ao operador económico e à sua participação nos concursos públicos. Aliás, sem as regras de simplificação e aceleração, a verdade é que parte dos operadores poderão simplesmente não reunir as condições mínimas necessárias à apresentação de candidaturas em concursos públicos, uma vez que, tendo em conta a situação pandémica, se verifica uma maior dificuldade na apresentação de comprovativos de situações contributivas regularizadas e de declarações de não existência de dívidas à Autoridade Tributária e Segurança Social.
Contudo, cumpre referir que, para além das “facilidades” prometidas pela referida proposta de lei, a verdade é que não têm sido parcas as críticas aos procedimentos e medidas de simplificação e agilização, já que este novo pacote de medidas é acompanhado por uma não excessiva preocupação, pelo facto da simplificação e agilização dos concursos públicos poder contribuir para o aumento da corrupção e do crime económico, sendo esta preocupação partilhada por vários partidos políticos, pelo Tribunal de Contas, pelo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e inúmeras outras entidades.
Assim, há que tomar em conta que o pacote de medidas previsto poderá, por um lado, constituir uma oportunidade para novos players na contratação pública, seja pelo previsível aumento do investimento público nos próximos anos, seja pela maior agilização dos procedimentos contratuais, mas, por outro lado, há que manter com rigor o cumprimento dos princípios da transparência e da concorrência, de modo a evitar que os players mais experimentados na contratação pública não absorvam os demais potenciais adjudicatários, pois a agilidade e simplificação também poderá constituir um fator que beneficiará esses players do mercado.
VJ – A celeridade, a transparência e a concorrência têm vindo a ser reforçadas?
André Batoca – O princípio da transparência foi, conjuntamente com o princípio da concorrência, reconfigurado ao longo da evolução da técnica e do aperfeiçoamento dos processos através dos meios tecnológicos associados à contratação pública, procurando-se assegurar, assim, também uma maior celeridade na tramitação dos respetivos procedimentos.
Com efeito, os princípios da transparência e da concorrência apresentam-se como princípios basilares de qualquer procedimento concursal, sendo certo que no âmbito da contratação pública, tais princípios assumem uma maior acuidade, atento o interesse público que lhe está subjacente, como é expressivo o artigo 1.º-A, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos.
Estes princípios devem ser devidamente conciliados com o princípio da boa administração a que alude o artigo 5.º do Código de Procedimento Administrativo, segundo o qual os procedimentos devem pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade.
A criação do portal dos contratos públicos (base.gov.pt) constituiu um avanço significativo na concretização do princípio da transparência, por via do qual a concorrência também saiu reforçada, por permitir a divulgação da informação pública sobre os contratos públicos sujeitos ao regime do Código dos Contratos Públicos e, dessa forma, permitir um leque mais alargado de concorrentes, aplaudindo-se o alargamento dos contratos sujeitos a publicação obrigatória previsto na Proposta de Lei n.º 41/XIV.
Para permitir um controlo dos procedimentos concursais, a Autoridade da Concorrência tem acesso ao referido portal e as entidades adjudicantes são obrigadas a prestar-lhe colaboração na sequência de pedido no âmbito das suas competências para investigação de práticas anticoncorrenciais.
Atualmente, assistimos à compressão do princípio da concorrência e a um aumento da simplificação procedimental para assegurar uma maior celeridade no momento excecional que vivemos atualmente devido à pandemia, com a criação do regime legal excecional aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março.
Contudo, é de registar positivamente que o legislador teve o cuidado de definir regras para assegurar a transparência das adjudicações e contratos, estabelecendo a obrigatoriedade de publicação no portal dos contratos públicos e a respetiva remessa ao Tribunal de Contas para um controlo a posteriori.
André Batoca: “O princípio da transparência, conjuntamente com o da concorrência, foi reconfigurado ao longo da evolução da técnica e do aperfeiçoamento dos processos.”
VJ – Porque persistem ainda as insuficiências na publicidade dos contratos públicos?
André Batoca – Apesar da crescente exigência de publicidade no âmbito da contratação pública, mormente no portal dos contratos públicos, tendo em vista uma menor litigiosidade e uma maior transparência e concorrência, é possível constatar, ainda, uma franca insuficiência no rigor e controlo de cariz técnico por parte das entidades adjudicantes.
Tal situação motivou, aliás, a emissão de diversos alertas pelo Tribunal de Contas, nomeadamente no relatório elaborado o ano transato, referente ao acompanhamento dos contratos abrangidos pelo regime de exceção previsto na Lei n.º 1-A/2020, incluindo os Isentos de Fiscalização Prévia.
Importa, assim, que as entidades adjudicantes corrijam erros cometidos no âmbito dos procedimentos de contratação pública, nomeadamente através do reforço da formação e conhecimento dos seus técnicos, o que necessariamente exige uma maior atenção e rigor por parte dos interessados no âmbito dos procedimentos concursais.
Subsiste, ainda, uma lacuna no âmbito do regime da publicidade, na medida em que a lei não prevê qualquer sanção para o incumprimento da publicitação da informação relativa à formação e à execução dos contratos públicos sujeitos à parte ii do Código dos Contratos Públicos (artigo 465.º do Código dos Contratos Públicos).
Segundo o Tribunal de Contas, no seu Acórdão n.º 5/2017-21.MAR-1.S/PL, de 21 de Março, o escopo do artigo 465.º do Código dos Contratos Públicos “é essencialmente de transparência, eficiência e centralização de informação complementar e estatística da despesa pública, mas já não de tutela dos princípios da publicidade e da concorrência procedimental, que está ‘ex lege’ reservada aos jornais oficiais”.
Apesar daquele concreto escopo, a inobservância não deixa de constituir, imediatamente, uma grave distorção dos princípios da transparência e da concorrência, sem qualquer sanção que sirva de repressão para prática de novas condutas.
Aproveitando a alteração do Código dos Contratos Públicos em curso através do Decreto n.º 95/XIV, urge definir, definitivamente, qual a consequência da inobservância do cumprimento do artigo 465.º daquele código, o que se impõe por força do princípio da segurança jurídica e da salvaguarda do interesse público subjacente à contratação pública.
VJ – Quais as vantagens de um acompanhamento jurídico próximo na área de contratação pública?
André batoca – A assessoria jurídica revela-se essencial para auxiliar e antecipar riscos para as empresas ou qualquer tipo de organização que necessite de se adequar ou clarificar dúvidas interpretativas perante as constantes alterações ao Código dos Contratos Públicos, o qual foi alvo de 12 alterações em 12 anos, estando ainda em curso mais um processo legislativo de alteração e aprovação de medidas especiais de contratação pública.
Acresce que um acompanhamento jurídico especializado nesta área permite o planeamento da atividade das empresas ou das entidades administrativas neste tipo de procedimentos.
Os procedimentos inerentes à contratação pública, potenciadores de litígios, exigem respostas céleres perante os prazos processuais muito curtos em sede de contencioso pré-contratual e garantias de segurança e eficácia nos contratos públicos, o que se ergue como prioridade, atenta a complexidade e importância do objecto de determinados contratos para o interesse público, bem como os montantes elevados que, por vezes, estão em causa, nomeadamente em tempos de imprevisibilidade perante as consequências da anunciada crise económica motivada pela pandemia Covid-19.
No momento atual, em que foi aprovada em Assembleia da República, a Proposta de Lei n.º 14/XIV (entretanto objeto de veto presidencial), na qual se prevê uma redução dos já exíguos prazos de audição prévia e de impugnação judicial para 3 e 2 dias, respetivamente, para os procedimentos simplificados aí previstos, diríamos que o acompanhamento jurídico próximo se afigura como absolutamente essencial para os potenciais adjudicatários, sendo importante o domínio prévio do procedimento e da proposta para efeitos de assessoria jurídica no recurso daqueles meios com prazos tão exíguos em matérias muitas vezes complexas, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista técnico.
Valéria Polska: “As medidas extraordinárias relativas aos contratos administrativos sujeitos à parte II do CCP não abrangem a fase de execução dos contratos públicos.”
VJ – Quais os principais desafios que os V/ Clientes nesta área encontram?
Valéria Polska – O atual Código dos Contratos Públicos e as respetivas revisões permitiram, além do mais, uma simplificação, desburocratização e flexibilização dos procedimentos de formação de contratos públicos, resultando numa redução dos obstáculos e dificuldades sentidas pelas entidades privadas aquando da fase pré-contratual e da fase de execução do contrato público.
Numa realidade marcada por requisitos formais legalmente estabelecidos, que procuram garantir a proteção dos interesses públicos que motivaram a celebração do contrato em causa, os cocontratantes encontram-se limitados nos seus poderes contratuais, sujeitos a procedimentos de celebração e execução contratuais exigentes, justificados pela salvaguarda dos interesses da entidade pública em prejuízo da entidade privada.
Assim, e não obstante as tentativas legislativas no sentido de adaptar os contratos públicos a uma realidade contrária ao marcante peso burocrático e complexidade do cumprimento das soluções legais de formação da vontade contratual, os cocontratantes continuam a encontrar vários obstáculos a uma celebração e execução dos contratos públicos, sendo a maioria afastada por prazos de apresentação de propostas muito reduzidos, pela exigência desmedida de preparação técnica dos cocontratantes aquando da celebração dos contratos ou por uma realidade marcada pela ausência de mecanismos de renegociação que permitam um reequilíbrio financeiro das posições contatuais dos cocontratantes, realidades que não se enquadram com as consequências nefastas vividas pelas entidades empresariais na pandemia Covid-19 bem como com o mercado internacional.
Há que simplificar de modo a agilizar os procedimentos contratuais, privilegiando o concurso público, enquanto procedimento aberto, sobre todos os demais procedimentos fechados.
Nessa medida, a previsão de um novo modelo de concurso simplificado resultante da Proposta de Lei n.º 41/XIV será bem-vinda a este mercado, possibilitando um acesso facilitado à contratação pública por parte dos novos adjudicatários, evitando-se, deste modo, o recurso aos demais procedimentos contratuais que resultam em dificuldades de acesso dos clientes às potenciais oportunidades.
VJ – Como antevê o impacto da pandemia e das medidas previstas para a contratação pública junto das cocontratantes, especialmente, junto das PME?
Filipa Leal Barreto – Desde o início da pandemia em Portugal, há praticamente um ano, o Governo tem aprovado um conjunto de medidas excecionais e temporárias para dar resposta à epidemia Covid-19.
A verdade é que a pandemia tem tido um forte impacto em diversas áreas, nomeadamente no que respeita à contratação publica, tendo, necessariamente, contribuído para uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, operando modificações aos contratos, contribuindo para a reposição do equilíbrio contratual dos mesmos, seja através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou, até mesmo, da vigência do contrato, seja mediante a não aplicação de multas pelos atrasos resultantes de causa de força maior ou, ainda, através da revisão dos preços.
Neste sentido, é inevitável assumir que as Entidades Públicas e os cocontratantes privados estão a sentir grandes dificuldades e vêem-se obrigados a negociar, apesar de se depararem com algumas dificuldades, mais precisamente com o regime legal da modificação objetiva de contratos públicos, que acaba por restringir o poder de renegociação.
Acresce que a alteração prevista ao Código dos Contratos Públicos e a aprovação de medidas especiais de contratação pública pode vir a criar problemas aos cocontratantes, especialmente às PME.
A flexibilização e simplificação dos processos de contratação pública, tendo em vista a celeridade na atribuição de fundos europeus, facilita o afastamento dos procedimentos de concurso, permitindo ainda a adjudicação sucessiva de contratos às mesmas empresas.
Acresce que a referida simplificação e flexibilização dos concursos públicos pode contribuir para o aumento da corrupção nos negócios públicos, bem como para o crime económico, tratando-se de uma preocupação não só dos diversos agentes políticos como ainda do Tribunal de Contas, entre outras entidades.
Neste sentido, as PME podem vir a sentir grandes dificuldades, necessitando assim de apoio jurídico especializado.
Filipa Leal Barreto: “A alteração prevista ao CCP e a aprovação de medidas especiais de contratação pública pode criar problemas aos cocontratantes, especialmente às PME.”
VJ – Perante o veto presidencial do diploma que previa a alteração às regras de contratação em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, é expectável que a versão final destas medidas seja mais restrita nas alterações previstas?
Filipa Leal Barreto – O Presidente da República justificou o seu veto ao diploma que previa a alteração às regras de contratação em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, com o facto de considerar ser necessário um maior controlo da legalidade, como contrapartida para uma maior simplificação.
O decreto proposto pelo Parlamento previa uma extensa alteração, designadamente, ao Código dos Contratos Públicos, bem como ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, tendo em vista não só simplificar como agilizar procedimentos, com o objetivo de facilitar a contratação financiada por fundos europeus.
Apesar de considerar compreensível a simplificação e aperfeiçoamento de procedimentos em matéria de contratação pública, uma vez que permitem uma flexibilização não só da atribuição, como ainda da alocação dos referidos fundos europeus, ainda mais, no contexto pandémico que o mundo atualmente enfrenta, o Presidente da República considera que deve haver um maior controlo da legalidade e da regularidade dos contratos, exigida pela transparência administrativa.
Os princípios da concorrência e transparência jamais podem ser esquecidos ou sacrificados numa tentativa de tornar os processos mais céleres.
O Chefe de Estado pretende assim que a revisão da contração pública seja feita com a exigência de um maior controlo da legalidade, como contrapartida para uma maior simplificação.
O objetivo geral deste diploma passa por diminuir prazos, tornando os processos mais céleres e menos burocráticos, apostando assim numa fiscalização “a posteriori”. Não há dúvidas que, quanto mais detalhados e escrutinados forem os processos “a priori”, mais lentos se tornam, o que dificulta a alocação de fundos europeus, tendo em conta a janela de aplicação muito reduzida em que se prevê sejam aplicados os respetivos regulamentos.
Entre as alterações ao diploma é expectável que passe a ser o Parlamento a nomear o presidente da comissão independente para vigiar novas regras e ainda uma maior atuação do Tribunal de Contas.
Por fim, do diploma devem constar objetivos de celeridade devidamente ponderados com os princípios da concorrência e da transparência – interesses e valores subjacentes à Contratação Pública –, o que não parece ter sido efetivamente alcançado pelo diploma vetado.
Pelo exposto, prevê-se um maior controlo da legalidade e da regularidade dos contratos, exigida pela transparência administrativa.
VJ – É provável assistir-se a um aumento dos litígios nesta área?
Valéria Polska – As medidas extraordinárias urgentes de contenção da pandemia Covid-19 vieram paralisar a maioria dos setores de atividade, dando origem a elevados danos económicos espoletados pela impossibilidade de atuação dos contraentes no sentido de cumprimento dos contratos celebrados.
Resulta do Código dos Contratos Públicos o poder de modificação contatual dos contratantes quando as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal e imprevisível, resultando num direito do cocontratante de modificação do contrato ou a uma compensação financeira, segundo critérios de equidade.
Ora, as medidas excecionais de resposta à pandemia resultaram, na maior parte dos casos, numa alteração dos pressupostos com base nos quais os cocontratantes determinaram o valor das prestações a que se obrigaram, sendo de esperar um aumento exponencial de litígios nesta área em nome dos contratantes que procuram evitar suportar o aumento inesperado e significativo dos custos que o contratante está obrigado a suportar para executar o contrato.
Sucede que o Decreto-Lei n.º 19-A/2020 veio, relativamente aos contratos de execução duradoura em que o Estado ou outra entidade pública sejam parte, limitar os direitos à reposição do equilíbrio financeiro das partes, estabelecendo que nos contratos em que a ocorrência de uma pandemia constitua fundamento passível de originar uma pretensão de reposição do equilíbrio financeiro, esta só possa ser realizada através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato, não dando lugar, independentemente de disposição legal ou estipulação contratual, à revisão de preços ou assunção, por parte do contraente ou parceiro público, de um dever de prestar à contraparte.
A aprovação de um diploma que procurou limitar os efeitos negativos que decorreriam para o Estado do acionamento, em simultâneo, do exercício de eventuais direitos compensatórios pelos contraentes privados sem qualquer restrição não logrou prevenir um aumento de litígios, inevitável tanto no caso dos contratos de execução duradoura como nos restantes contratos públicos, quer devido às dificuldades de aplicação do regime excecional constante do Decreto-Lei n.º 19-A/2020 quer às expectáveis dificuldades na fixação de uma justa compensação pelo investimento malogrado dos cocontratantes.
VJ – A regulação da resolução alternativa de litígios no CCP é adequada ao momento atual?
Filipa Leal Barreto – Nos termos do artigo 476º do Código dos Contratos Públicos (CCP), “o recurso à arbitragem ou a outros meios de resolução alternativa de litígios é permitido, nos termos da lei, para a resolução de litígios emergentes de procedimentos ou contratos aos quais se aplique o presente Código”.
O considerando (24) da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE, prevê o seguinte: “convém recordar que os serviços de arbitragem e de conciliação, e outras formas semelhantes de resolução alternativa de litígios, são habitualmente prestados por pessoas ou organismos designados ou selecionados de um modo que não pode estar sujeito às regras de contratação pública. Importa esclarecer que a presente diretiva não se aplica aos contratos que tenham por objeto a prestação de tais serviços, seja qual for a sua designação na legislação nacional”.
Atentas as medidas especiais de contratação pública previstas na Proposta de Lei n.º 41/XIV, a flexibilização e agilização pretendidas na referida proposta seriam uma boa oportunidade para alargar a lista de entidades pré-vinculadas ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em matéria de contratação pública, podendo ter-se previsto a sujeição dos contratos celebrados ao abrigo daquelas medidas de valor inferior a J750.000,00 à Arbitragem Administrativa
Para além das vantagens associadas à Arbitragem Administrativa, como sejam a celeridade e a especialização, é mais uma oportunidade de se regular o direito à outorga do compromisso arbitral, previsto no artigo 182.º do CPTA, o qual encerra uma solução insatisfatória e de difícil concretização para o interessado na referida outorga do compromisso arbitral.
Quanto ao regime atualmente estatuído no art.º 476º do CCP, seria também adequado impor-se a previsão de recurso para quaisquer litígios dirimidos ao abrigo das medidas de simplificação de procedimentos em matéria de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, sempre que exista a previsão de Tribunal Arbitral, alargando-se, para tais casos, o previsto no n.º 5 do art.º 476º do CCP para processos de valor superior a €500.000,00.
VJ – A justiça administrativa (dos Tribunais estatais) constitui uma garantia cabal dos direitos dos cocontratantes?
Rui Resende – Num Estado de Direito, a Justiça dos Tribunais tem de representar sempre uma garantia dos direitos dos cocontratantes.
No entanto, a Justiça Administrativa em Portugal peca por tempos de decisão muito acima do razoável.
Em 2018 – último ano consultado –, Portugal era o 2º país com a jurisdição administrativa mais lenta da Europa. O prazo médio para prolação de uma decisão em 1ª instância nos tribunais administrativos portugueses era de 928 dias, enquanto a média europeia se cifrava em 323 dias.
Ou seja, enquanto um cidadão europeu comum tem a legitima expetativa de ver o seu caso decidido, em 1ª instância, em menos de um ano, em Portugal tal expetativa encontra-se mais próxima dos três anos.
O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, atencipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão.
Em Portugal existem 16 Tribunais Administrativos. Ou seja, na jurisdição administrativa, existem menos Tribunais do que o número total de comarcas na jurisdição dos tribunais judiciais, as quais se desdobram em mais de 300 tribunais.
Sucede que, ao longo da última década, temos assistido a um aumento significativo das matérias que (agora) competem à jurisdição administrativa e fiscal, desde matérias relacionadas com contraordenações, a cobranças de dívidas de portagens, de contribuições para regimes privados de assistência social e outros, o que aumenta consideravelmente o número de ações pendentes nesta jurisdição.
Apenas recentemente entraram em vigor parte dos juízos de competência especializada na jurisdição administrativa, o que é uma inovação importante mas que, ainda assim, peca por muito tardia, pois a evolução do Direito Público dos últimos 40 anos já muito impunha tal divisão de competências.
Ainda assim, uma das matérias mais específicas e de maior relevo no Direito Público, como é o Direito do Urbanismo, do Ambiente e do Ordenamento Território, continua órfã de um juízo especializado.
A justiça administrativa dos tribunais estatais encontra-se repleta de magistradas e magistrados da mais elevada competência e dedicação, bem como de funcionárias e funcionários que se aplicam com o mais elevado empenho.
No entanto, os meios da jurisdição administrativa são demasiado escassos para um Estado de Direito, em pleno século XXI, integrado na União Europeia. São precisos mais tribunais, mais magistrados, mais funcionários, para que a pendência e o tempo de decisão dos tribunais administrativos seja reduzido e, em consequência, assegurar que a justiça administrativa constitui uma garantia cabal dos direitos dos cocontratantes, pois esse é ainda o grande obstáculo à tutela dos seus direitos.