Governo procura dar resposta aos desafios colocados em termos de direito do consumidor
O Governo tem procurado dar respostas concretas e assertivas no que toca às questões relacionadas com o direito do consumidor. O que se traduz num elevado nível de concretização de programas e medidas, referiu à “Vida Judiciária” João Torres, secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor. Com a pandemia surgiram novos desafios, especialmente no que respeita aos direitos do consumidor, tendo havido um esforço de adequação das normas e da legislação à nova realidade.
Como caracteriza a resposta do actual Governo às questões suscitadas no âmbito do direito do consumidor? Quais os objectivos centrais do plano do Governo neste âmbito?
Estou em crer que a resposta do atual Governo às questões do direito do consumidor tem sido positiva e pautada por um elevado nível de concretização de programas e medidas. A política de consumidores apresenta uma dimensão social e uma dimensão de justiça, mas deve afigurar-se, primeiramente, como uma política económica, que nos conduz à análise do mercado pelo lado da procura. Essencialmente, os objetivos têm estado focados em duas perspetivas: a concretização de oportunidades de melhoria e inovação no sistema de defesa do consumidor, designadamente no que concerne à sua acessibilidade, e o acompanhamento atento da evolução dos padrões de consumo, em particular com as transições verde e digital. O Governo tem procedido à transposição de todas as diretivas que versam sobre temas de direito do consumidor, de uma forma sólida, procurando, numa dialética de equilíbrio económico e social, reforçar a proteção dos consumidores nas áreas em que o direito europeu confere aos Estados-Membros uma margem de conformação das soluções. E temos procurado ativamente, com estes atos legislativos, ir muito além do que é meramente exigido pelo direito europeu, encontrando soluções mais avançadas que reforcem o posicionamento de Portugal na linha da frente destas políticas. A defesa do consumidor deve ser cada vez mais encarada como um pilar do Mercado Único e, nesse sentido, temos contribuído para os diálogos e discussões europeias que colocam o consumidor no cerne da recuperação económica e social. Por outro lado, o Governo tem procurado dar resposta a um conjunto de questões com uma tónica essencialmente doméstica, como é o caso da melhoria e aperfeiçoamento do Livro de Reclamações, nos seus formatos físico e eletrónico, da dinamização e financiamento da rede de centros de arbitragem de conflitos de consumo ou da aprovação de regimes setoriais com impacto nas relações de consumo, como o relativo à disponibilização e divulgação de linhas de atendimento telefónico para o consumidor. Como balanço destes dois anos de governação, posso afirmar que muitas das medidas que constavam no Programa de Governo em matéria de proteção do consumidor foram cumpridas.
Face aos direitos dos consumidores já estabelecidos, qual considera ser o principal problema que esta crise nos trouxe? Ao invés, quais são os direitos que, na sua perspetiva, carecem ainda de previsão legal ou de melhoria substancial?
Acredito que a pandemia que enfrentamos nos permitiu concluir que muitas das respostas necessárias num contexto totalmente inesperado e excecional encontraram respaldo na nossa legislação, no que à proteção do consumidor diz respeito. No entanto, na minha ótica, o contexto pandémico que atravessamos colocou duas ordens essenciais de desafios aos consumidores: em primeiro lugar, assistiu-se a um aumento do comércio digital, o que levantou questões práticas novas com as quais os consumidores não contavam, por exemplo, ao nível da entrega dos produtos; em segundo lugar, o encerramento das lojas em espaço físico levou a alguns constrangimentos no que respeita ao exercício dos direitos dos consumidores – penso, por exemplo, no exercício do direito à reparação de um determinado bem ou à respetiva troca ou devolução. Quanto a estes novos desafios, o Governo soube estar atento ao seu surgimento, em muitos casos antecipando-o, tendo sido aprovados diversos diplomas ou conjuntos de normas destinados a regular questões típicas de direito do consumidor. Posso salientar as normas aprovadas em matérias como a suspensão dos prazos para exercícios de direitos ou o estabelecimento de regras especiais em matéria de saldos, a fim de facilitar o escoamento de existências após períodos alargados de encerramento ou suspensão da atividade. Em todo o caso, a acelerada digitalização dos canais de interação com o consumidor, por parte dos operadores económicos, é o aspeto que necessitará de um maior envolvimento, acompanhamento e intervenção por parte dos poderes e autoridades públicos no curto prazo.
Desenvolvimento tecnológico e digital
Quais são os principais desafios do consumidor de hoje, face a este crescente desenvolvimento tecnológico e digital?
Entendo que o desenvolvimento tecnológico e digital trouxe desafios ao consumidor em três matérias essenciais: informação, transparência e segurança. Ao nível da informação, tornou-se latente que a digitalização exige um reforço dos deveres de informação a prestar pelos operadores económicos, quer ao nível dos direitos do consumidor, quer ao nível das informações sobre os próprios bens e serviços transacionados que, em muitos casos, tendem a ser cumpridos de forma deficitária comparativamente aos mesmos bens e serviços transacionados em espaço físico – pense-se, por exemplo, no detalhe dos rótulos dos produtos, que nem sempre se verifica nos produtos transacionados em plataformas digitais. No plano da transparência,creio ter ficado visível que o consumidor necessita de ver reforçado o seu conhecimento sobre a forma como determinadas operaçõe – de venda ou disponibilização de bens ou serviços – se processam ou como determinados mecanismos funcionam na sua experiência de compra. Por exemplo, o consumidor deve ser capaz de perceber como é que os resultados das suas pesquisas por bens ou serviços são disponibilizados, nomeadamente, em termos de hierarquização dos resultados; deve poder compreender porque é que, numa segunda pesquisa efetuada em plataforma eletrónica, o preço do bem ou serviço sofreu oscilações sem justificação aparente. No que respeita à segurança, o contexto revelou que o consumidor está exposto a um conjunto de riscos que são novos e para os quais nem sempre está desperto ou para os quais nem sempre é oferecida a melhor resposta. Todas estas matérias são essenciais à criação de um ambiente de comércio seguro para o consumidor e, se é verdade que o ordenamento jurídico tem mostrado ser capaz de lhe responder, não é menos verdade que as mesmas merecem contínua e vigilante monitorização, a fim de permitir a sua melhoria.
No período anterior à pandemia discutia-se, com especial ênfase, o tema da contratação à distância e do comércio eletrónico. Contudo, a pandemia veio acelerar exponencialmente esse processo. Nesse sentido, questiono como analisa a evolução desse sector específico e quais as estratégias legislativas necessárias para acompanhar esse desenvolvimento?
A contratação à distância e o comércio eletrónico são, de facto, temas candentes no contexto atual, que vinham assumindo importância crescente, mas que se afirmaram, perentoriamente, durante o contexto pandémico que atravessamos, em virtude do encerramento temporário dos estabelecimentos em espaço físico e, mesmo quando não encerrados, da preferência dos consumidores em efetuar aquisições por meios que implicassem um menor contacto interpessoal. Apesar do incremento do recurso a estes meios, creio, como salientei anteriormente, que a pandemia demonstrou que a generalidade dos regimes jurídicos vigentes conseguia oferecer resposta adequada à proteção do consumidor, não se tendo percecionado que o consumidor estivesse verdadeiramente desprotegido quando recorria ao comércio eletrónico ou a outras formas de contratação à distância. Sem prejuízo, houve um conjunto de aspetos que foram recentemente melhorados, ainda que – verdade seja dita – já estivesse programada a intervenção normativa antes do contexto pandémico atual. Reporto-me às soluções introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, o qual regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo duas diretivas comunitárias. Este diploma vem, designadamente, estabelecer um regime de proteção dos consumidores nos contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, instituir a responsabilidade direta do produtor em caso de falta de conformidade dos bens, conteúdos ou serviços digitais e prever a responsabilidade dos prestadores de mercado em linha – neste último caso, ilustrando-se bem a ambição do legislador nacional. Como se pode aferir, com este pacote legislativo, reforça-se a proteção do consumidor ao nível do comércio eletrónico, dando resposta a algumas insuficiências que o ordenamento jurídico vinha apresentando.
Maior proteção dos consumidores
Quais as medidas que, na sua óptica, necessitam de ser implementadas para uma maior proteção dos consumidores menos familiarizados com o actual domínio tecnológico?
Antes de mais, creio que, como em qualquer fenómeno revestido de novidade, a principal medida é o tempo: o tempo de adaptação dos consumidores às novas realidades. A literacia digital requer tempo de aprendizagem e de assimilação, no entanto, é seguro que a mesma contribui decisivamente para que ocorram menos incidentes em contexto eletrónico. Temos sido proativos e demonstrado capacidade de iniciativa e antecipação. De um ponto de vista menos retórico, entendo que as principais medidas que é necessário implementar conduzem-nos ao reforço de campanhas de informação, sensibilização e capacitação, as quais habilitam o consumidor no agir e no reagir, o mesmo é dizer na prevenção e na reação. Independentemente da legislação que seja aprovada para proteção do consumidor, sem desconsiderar a sua importância, a melhor defesa que o mesmo pode ter é dispor de conhecimento e consciencialização bastantes que não permitam que seja persuadido a adotar comportamentos de risco. O segundo nível de defesa está na capacidade de este reagir e de, imediata e facilmente, ter acesso a meios que lhe permitam solucionar os problemas.
Ao serem consagrados extensos deveres de informação pré-contratual, designadamente daqueles que se encontram estabelecidos no DL n.º 95/2006, de 29 de Maio, no âmbito de contratos à distância relativos a serviços financeiros celebrados com consumidores, de que modo é que tal consagração legal veio contribuir para uma crescente transparência global?
Consigo salientar duas vantagens, de imediato: a imposição de deveres de informação pré-contratual vincula os prestadores de serviços ao seu cumprimento, sancionando o seu incumprimento, o que contribui para a regulação do mercado, logo, para a sua transparência. Por outro lado, determina uma difusão massiva de práticas e condições contratuais, que passam a ter de ser comunicadas a todos e a cada um dos consumidores, o que aumenta a consciência sobre os mesmos e permite a sua extensa divulgação, promovendo o escrutínio e a transparência. O direito à informação é, na minha visão, um dos mais significativos direitos do consumidor, pois é o mesmo que permite uma tomada de conhecimento daquilo que está a ser adquirido e que, por conseguinte, permite uma melhor tomada de decisões. Ainda que não disponha de dados rigorosos que o comprovem, acredito que grande parte dos litígios emergentes no âmbito das relações de consumo decorrem de um desconhecimento da parte do consumidor, quer em relação aos bens ou serviços que está a adquirir, quer em relação aos termos contratuais a que se vincula.
Automação de processos
A sociedade tem caminhado no sentido de emergirem os consultores automáticos, centrados em robôs e em algoritmos com reduzida intervenção humana ou, em alguns casos, sem intervenção humana. Acha que tal evolução pode aumentar a qualidade da informação prestada, quer em termos formais, quer em termos materiais, centrando-se no que é mais importante para a contraparte?
A automação de processos e de mecanismos, seja em que domínio for, carreia sempre consigo vantagens e desvantagens. No entanto, acredito que, quando a automação é colocada ao serviço dos cidadãos e apresenta um nível de desenvolvimento e sofisticação que a torna eficaz e fidedigna, o resultado final é sempre o da melhoria da intervenção. Pensando na aplicação dessa automação ao cumprimento de deveres de informação ao consumidor, como sugerido, consigo vislumbrar-lhe vantagens, caso a mesma seja utilizada em benefício do consumidor. Na verdade, se for possível perceber, de forma automatizada, o perfil do consumidor e quais as lacunas que o mesmo tem vindo a apresentar em matéria de acesso à informação, será vantajoso que a informação seja selecionada e que aquela que lhe for prestada vá ao encontro das suas reais dúvidas ou necessidades. Para que tal seja bem sucedido, é necessário garantir que a construção de um determinado perfil de consumidor seja efetuada com o seu conhecimento e o seu consentimento e que a informação que lhe seja direcionada em face desse perfil seja, efetivamente, aquela de que ele necessite ou que o protejaou beneficie. Não há dúvida de que, atualmente, um dos grandes desafios que enfrentamos é a profusão de informação, de tal modo que mais informação não significa, necessariamente, melhor informação. Por isso, se existisse um mecanismo que selecionasse a informação mais relevante para cada consumidor em concreto e o fizesse de forma legal, transparente e consentida, creio que os consumidores poderiam sair beneficiados. Posso, em sentido próximo, partilhar que, na área da fiscalização das atividades económicas, que é uma forma indireta, mas muito relevante, de proteção dos direitos e interesses dos consumidores, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) está, em parceria com a Universidade do Porto, a desenvolver um instrumento de inteligência artificial que, recorrendo a diversas variáveis e a processos automatizados, mostrar-se-á capaz de identificar áreas e setores mais necessitados de fiscalização em determinada matéria, o que permitirá planear operações mais orientadas e eficazes.
Numa altura em que cada vez mais se discute sobre a problemática da proteção/privacidade de dados digitais, que caminho considera viável se tomar para que o consumidor se torne menos vulnerável? Quais os contributos legislativos possíveis neste sentido?
A União Europeia e Portugal adotaram legislação muito protetora dos cidadãos nesta matéria, como o sobejamente conhecido RGPD e a legislação que o veio regulamentar ou complementar. Nesta medida, penso que, em primeiro lugar, é necessário garantir que o regime aprovado é efetivamente cumprido pelas entidades que ao mesmo se encontram obrigadas. Simultaneamente, parece-me necessário deixar estabilizar os regimes jurídicos aprovados e perceber, a partir da dinâmica económica e social e da experiência na respetiva aplicação, onde possa ser necessário introduzir melhorias. Não se pode pretender que, a cada dificuldade ou dúvida, se responda com a aprovação de mais legislação, não apenas porque, na generalidade dos casos, não é necessária, como também porque o tempo de adaptação à mesma e os custos de contexto para os operadores económicos são elevados. Tal não significa que não haja sempre espaço para melhorias, estando, naturalmente, comprometidos com todos os avanços positivos nesse domínio.
Regresso à normalidade
No período pós-pandemia, considera que o direito do consumo irá sofrer alterações substanciais, nomeadamente com uma extensão do seu âmbito de atuação?
Creio que não assistiremos a alterações profundas estritamente por via do fim da pandemia, pelo seguinte: o período pós-pandemia representa um regresso à normalidade, à normalidade possível. Ou seja, ainda que não possamos ignorar que o mundo não ficará igual depois do fenómeno pandémico que atravessamos e mesmo que não possamos olvidar que existem práticas e comportamentos novos que se radicaram, a verdade é que os cidadãos tenderão a retomar, em grande medida, os hábitos que tinham antes da pandemia. Podemos questionar: passará a haver mais recurso ao teletrabalho e daí decorrerão alterações como as mudanças comportamentais ou urbanísticas? Seguramente. O comércio digital saiu reforçado e irá expandir-se ainda mais? Sem dúvida. No entanto, o mundo que teremos depois da pandemia não será um mundo radicalmente novo, não constituirá um lugar profundamente diferente daquele que tínhamos antes e, por isso, creio que também as relações de consumo e as relações jurídicas, em geral, voltarão a um padrão próximo do que tínhamos anteriormente. É evidente que a pandemia expôs algumas dificuldades de resposta em certas áreas, que talvez obriguem a que a legislação passe a contemplar as situações excecionais como parte integrante dos respetivos regimes jurídicos.
Tendo em consideração as novas regras estabelecidas no DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro, que entram em vigor no dia 01/01/2022, segundo o qual o prazo de garantia dos bens móveis foi alargado para três anos e em relação a defeitos que afetem elementos construtivos estruturais de bens imóveis passou para 10 anos, considera que foram dados passos importantes no sentido de reforçar os direitos dos consumidores?
Claramente. Deve, aliás, ser realçado que, nesta matéria, Portugal foi além do mínimo exigido pelas diretivas comunitárias, ainda que dentro do aceitável ou permitido pelas mesmas. Tal não foi feito de forma arbitrária ou irresponsável, antes se tendo entendido que a matéria das garantias relativas à falta de conformidade dos bens imóveis era uma das que exigia reforço em benefício dos consumidores. No caso da garantia de bens imóveis, entendeu-se que o alargamento, para 10 anos, da garantia relativa a defeitos que afetem elementos construtivos estruturais de bens imóveis era não apenas uma forma de responsabilizar os produtores e fornecedores de bens como também de conferir uma proteção merecida e justificada ao consumidor. Pensemos no caso dos bens imóveis: na generalidade dos casos, o consumidor que adquire um imóvel para habitação faz um investimento que o vincula durante a quase totalidade da sua vida útil, sendo bastante provável que esse seja o único imóvel que venha a adquirir durante o seu ciclo de vida. Acresce que um consumidor dificilmente tem conhecimentos técnicos que lhe permitam, em face de um defeito de construção, reagir sem ser com recurso a apoio jurídico e pericial, logo, incorrendo em custos que pode não estar em condições de suportar. Neste contexto, pareceu-nos ser justo, após a consulta do Conselho Nacional de Consumo, que a garantia relativa a defeitos que afetem elementos construtivos estruturais dos bens imóveis fosse alargada. Quanto ao alargamento do prazo de garantia de bens móveis, cumpre assinalar que Portugal já dispunha do período máximo permitido pelo direito europeu quanto à presunção de desconformidade – de dois anos, que se mantém –, dando-se agora um passo no sentido do alargamento da garantia após esse período, por um ano. Esta disposição, amplamente positiva para os consumidores, está alinhada com alguns dos princípios basilares da sustentabilidade ambiental, no sentido de promover uma maior durabilidade dos bens.
Sustentabilidade ambiental
Como estão a ser trabalhados os pontos orientadores da sua política de digitalização, sustentabilidade ambiental e garantia da aplicação da legislação no âmbito da União Europeia? Como se faz a concertação entre os vários países e a ponte com o interesse nacional?
As políticas de digitalização, sustentabilidade ambiental e garantia da aplicação da legislação no âmbito da União Europeia não são trabalhadas, em exclusivo, pela área governativa da Economia e da Transição Digital, antes implicando uma cooperação entre várias áreas governativas. Partindo de um exemplo expressivo, a questão das telecomunicações é uma matéria que tem uma componente robusta de defesa do consumidor, mas que não deixa de ser também, fortemente, uma área de intervenção da área governativa que tutela o setor das comunicações. Assim, nas várias temáticas multissetoriais ou multidisciplinares existe, em diversas circunstâncias, uma área governativa que assume a liderança do tratamento do tema, ou várias em coliderança, sendo as políticas ou medidas construídas em diálogo com as demais áreas governativas. Quanto à concertação entre os vários países em matéria de legislação europeia, a questão é, de facto, relevante. A este propósito, começo por salientar – porque nem sempre tal se revela evidente – que, quando as diretivas são aprovadas e entram no período de transposição pelos Estados-Membros, estamos já na fase final do procedimento, na qual a margem de atuação ou de intervenção dos Estados é já limitada ou reduzida. Por esse motivo, o grande contributo que os Estados-Membros podem firmar não é na fase da transposição, mas na fase de negociação e redação dos atos normativos da União. É neste momento que os governos devem acompanhar com particular interesse e cuidado as discussões das temáticas europeias. Creio que Portugal tem vindo a apresentar expressivos resultados, quer quanto ao número, quer quanto à qualidade das suas posições e intervenções, no que respeita à proteção dos consumidores.
O Parlamento Europeu está a trabalhar na estratégia da nova agenda do consumidor para 2020--2025. A seu ver, é uma estratégia promissora, tendo em conta as áreas-chave em que incide?
A designada «Nova Agenda do Consumidor» éum marco importante que se sedimentou para os próximos anos de implementação de políticas públicas de defesa do consumidor, cobrindo temas verdadeiramente atuais. Recorde-se que a mesma fixa cinco domínios prioritários: transição ecológica; transformação digital; reparação e aplicação dos direitos dos consumidores; necessidades específicas de determinados grupos de consumidores; e cooperação internacional. O grande desafio de documentos estruturais e programáticos é o de oferecer linhas de orientação que respondam às necessidades reais e concretas dos seus beneficiários, só assim se podendo afirmar como orientadores e modeladores de atuações no respetivo domínio. Penso que esta agenda reúne esses requisitos e revelar-se-á um elemento de trabalho essencial na definição de políticas públicas de defesa do consumidor, não apenas ao nível comunitário, como também ao nível doméstico de cada um dos Estados-Membros. A propósito desta «Nova Agenda do Consumidor», não posso deixar de realçar o papel que a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia desempenhou, porquanto, no respetivo âmbito, foram aprovadas algumas conclusões e selados alguns compromissos, no sentido de oferecer orientações políticas claras sobre os conteúdos nela vertidos. Portugal tem vindo a ter uma atuação política reconhecida em matéria de defesa do consumidor, sendo visto como um dos países mais desenvolvidos no que à proteção do consumidor diz respeito.
O objetivo de neutralidade climática até 2050 é uma grande prioridade da União Europeia. De que modo é que o direito do consumidor pode contribuir para o alcance desse mesmo objetivo?
O direito do consumidor pode contribuir de forma relevante para os desafios ambientais. Assim acontecerá a partir do momento em que, nas suas opções de compra e nas suas relações com os operadores económicos, o consumidor o possa fazer orientado por questões ambientais e possa exigir do vendedor de bens ou do prestador de serviços, no âmbito da relação de consumo, determinados comportamentos ambientalmente sustentáveis. Concretizando, entendo que um dos direitos do consumidor, que podemos qualificar de direitos de nova geração, é o direito à sustentabilidade e ao ambiente através das opções de consumo. Este direito não tem ainda consagração legal expressa, mas começa já a conhecer alguns desenvolvimentos e concretização através de diversos regimes jurídicos. Ainda no âmbito do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, ao qual anteriormente aludi, consagrou-se a obrigatoriedade de o produtor disponibilizar as peças necessárias à reparação dos bens adquiridos pelo consumidor, durante o prazo de 10 anos após a colocação em mercado da última unidade do respetivo bem, a fim de assegurar maior longevidade aos equipamentos adquiridos, passando o consumidor a poder exigir a disponibilização de tais peças. Exemplos como este demonstram que o direito do consumidor pode contribuir, decisivamente, para o cumprimento de metas ambientais, permitindo que cada um de nós, enquanto consumidores, passemos a ser agentes de mudança de comportamentos. As preocupações ambientais podem, portanto, deixar de ser apenas prerrogativas dos cidadãos enquanto habitantes do nosso planeta, passando outrossim a ser também direitos dos cidadãos enquanto consumidores, sendo que essa é uma realidade que já está a acontecer.