As Autoridades Europeias de Supervisão e o Direito Administrativo Europeu
Em linhas gerais, qual a importância e vantagens para os países integrantes da União de ter sido criado e regulamentado um Sistema Europeu de Supervisão Financeira (SESF)? Que Organismos e Autoridades integram o SESF?
Em linhas gerais, que atribuições e competências estão reservadas às Autoridades Europeias de Supervisão?
Historicamente, o direito administrativo foi sempre compreendido, explícita ou implicitamente, como um ramo do direito público do Estado. No entanto, o processo de integração europeia, em que Portugal participa desde 1986, veio a dar origem a um direito público para além do Estado.
Efetivamente, é hoje inquestionável que o direito da União Europeia tem exercido uma profunda influência quer no direito administrativo geral – pense-se na contratação pública – quer em inúmeros ramos do direito administrativo especial, desde o direito do ambiente ao da segurança alimentar; e desde a regulação económica até ao direito da energia.
Na última década, o setor financeiro em particular originou alguns dos mais importantes desenvolvimentos no direito europeu de um ponto de vista jurídico-administrativo – sendo, aliás, relativamente pacífico que a União Bancária representa a forma mais integrada de administração na história da União Europeia.
É crescente, portanto, a relevância prática do direito administrativo europeu, como começa aliás a ser cada vez mais claro na jurisprudência portuguesa. Nele se inclui não apenas o direito administrativo aplicável à administração própria da União Europeia (à Comissão, ao Banco Central Europeu e às Agências Europeias) mas também o conjunto de regras e princípios gerais de direito administrativo, de origem legislativa ou jurisprudencial, que vinculam as entidades públicas nacionais sempre que exerçam a função administrativa no âmbito do direito europeu. No direito administrativo europeu incluem-se, também, as inúmeras normas em legislação setorial que exigem a cooperação entre entidades administrativas nacionais e europeias, e que as podem obrigar a trocar informações, a constituir órgãos ad hoc para a tomada de decisões comuns, ou mesmo a contribuir, no quadro de um mesmo procedimento administrativo, para a formação de uma decisão.
Um dos fenómenos mais importantes no desenvolvimento do direito administrativo europeu tem sido a proliferação de agências europeias que se tem verificado desde o início dos anos 1990. A esse processo dá-se o nome, talvez menos elegante em português, de agencificação. As razões para a criação de agências são variadas. Todas elas visam promover a cooperação entre autoridades nacionais que exerçam os seus poderes em determinados setores (como a energia, o ambiente ou a proteção de dados) e agregar a elevada especialização e conhecimentos técnico-científicos de que essas autoridades dispõem. Por congregarem delegações de agências homólogas nacionais, as Agências Europeias permitem às Instituições Europeias e às agências nacionais o desenvolvimento de uma visão panorâmica relativamente aos problemas que se suscitam na aplicação do Direito da União de modo transversal aos Estados-Membros. Algumas Agências Europeias foram criadas para despolitizar questões de interesse público na sequência de crises (por exemplo, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos) ou para isolar o exercício de funções regulatórias de home bias, ou seja, de um viés de favoritismo, ou maior lassidão em matéria de fiscalização, derivado de potenciais pressões políticas ou económicas domésticas (como se diz ter sido o caso, por exemplo, do Conselho Único de Resolução).
A criação das Autoridades Europeias de Supervisão (European Supervisory Authorities – ESAs) representou um momento quase tão importante no desenvolvimento histórico do direito administrativo europeu como para a integração dos mercados financeiros na União Europeia. Em conjunto com o Comité Europeu de Risco Sistémico e com as autoridades nacionais de supervisão, as ESAs formam o Sistema Europeu de Supervisão Financeira (European System of Financial Supervision – ESFS).
O ESFS foi criado na sequência da crise financeira que atingiu a Zona Euro há uma década. Criou as condições institucionais e administrativas necessárias para garantir a aplicação efetiva de standards regulatórios do setor financeiro com a finalidade de prevenir novas crises financeiras que possam surgir no futuro. Esse fim é realizado pelo Comité Europeu de Risco Sistémico no que diz respeito à supervisão macroprudencial, ou seja, à deteção e avaliação de potenciais ameaças à estabilidade financeira emergentes de desenvolvimentos macroeconómicos e no sistema financeiro enquanto um todo. As ESAs, por outro lado, exercem conjuntamente funções de supervisão microprudencial – isto é, exercem funções que visam salvaguardar a robustez financeira ao nível de instituições financeiras individuais e proteger consumidores de serviços financeiros.
As ESAs são três: a Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority – EBA), a Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (European Insurance and Occupational Pensions Authority – EIOPA) e a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (European Securities and Markets Authority – ESMA). A sua criação justificou-se, em primeira linha, na necessidade de se prevenirem inconsistências na aplicação de standards de regulação financeira entre Estados-Membros. Dado o elevado grau de integração dos mercados financeiros no contexto do mercado interno europeu, as ESAs desempenham um papel fulcral na prossecução do objetivo da estabilidade financeira. Os respetivos regulamentos salvaguardam a sua independência e vinculam-nas a atuar de modo objetivo e apenas no interesse da União. Dito de outro modo, os Estados-Membros estão coletivamente protegidos de instabilidade financeira pela circunstância de a atividade de supervisão das ESAs, por não poder ser sequestrada pelos interesses parcelares de nenhum Estado-Membro ou da sua indústria financeira, poder ser exercida de modo eficaz.
No que diz respeito às atribuições e competências das ESAs, há desde logo que ter presente que as reais diferenças entre as duas noções não são tão claras no direito administrativo europeu como no direito administrativo português (o que, acrescente-se, tem levado a dúvidas doutrinárias relevantes). No entanto, o que se pode certamente afirmar é que, dentro dos respetivos setores – o da atividade seguradora (EIOPA), o da atividade bancária (EBA) e o dos mercados financeiros e de valores mobiliários (ESMA) –, as ESAs exercem um conjunto de poderes comuns.
Em geral, as ESAs dispõem de poderes para a emissão de recomendações e diretrizes técnicas não vinculativas. Também têm competência para a preparação de regulamentações setoriais, ainda que a sua transformação em atos normativos (vinculativos) dependa sempre de aprovação pela Comissão Europeia.
Ainda que, nalgumas situações, as ESAs assumam poderes de supervisão direta (por exemplo, a ESMA é a supervisora exclusiva de agências de rating), são as autoridades nacionais competentes que geralmente exercem esses poderes. Contudo, as ESAs exercem também poderes de intervenção em certos casos: se as autoridades nacionais competentes tiverem violado o direito da União; se houver desacordo entre essas autoridades quanto ao conteúdo de medidas que essas visem adotar; ou se for necessário facilitar e coordenar a atuação dessas autoridades em situações de emergência. No limite, as ESAs podem emitir, elas próprias, as decisões reclamadas por essas situações de emergência se tal se tornar imprescindível devido à inércia das autoridades nacionais (determinando, por exemplo, a proibição ou restrição temporária de certas atividades financeiras).
As ESAs representaram inequivocamente uma mudança de paradigma no domínio da organização administrativa da União Europeia e, em particular, no que diz respeito aos poderes que as Agências Europeias poderão exercer. Com efeito, as Agências Europeias historicamente exerciam funções de simples coordenação ou de promoção de troca de informações entre autoridades nacionais. A nova geração de Agências iniciada pelas ESAs carateriza-se pela robustez dos seus poderes.
Esses poderes são tão extensos, aliás, que talvez pudessem inicialmente ter sido considerados incompatíveis com limites que, de acordo com a jurisprudência histórica do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), os Tratados traçam à criação de Agências Europeias. Contudo, na sequência de um recurso de anulação interposto pelo Reino Unido contra o Regulamento que estabelece a ESMA, o próprio TJUE veio a esclarecer que não existe uma tal incompatibilidade. Trata-se de apenas um exemplo – a par da recente e algo surpreendente jurisprudência que admite a fiscalização da validade de soft law da EBA – de como a jurisprudência europeia relativa às ESAs terá um papel fundamental nos anos vindouros no que diz respeito ao desenvolvimento do direito administrativo europeu no seu conjunto.
Em linhas gerais, que atribuições e competências estão reservadas às Autoridades Europeias de Supervisão?
Historicamente, o direito administrativo foi sempre compreendido, explícita ou implicitamente, como um ramo do direito público do Estado. No entanto, o processo de integração europeia, em que Portugal participa desde 1986, veio a dar origem a um direito público para além do Estado.
Efetivamente, é hoje inquestionável que o direito da União Europeia tem exercido uma profunda influência quer no direito administrativo geral – pense-se na contratação pública – quer em inúmeros ramos do direito administrativo especial, desde o direito do ambiente ao da segurança alimentar; e desde a regulação económica até ao direito da energia.
Na última década, o setor financeiro em particular originou alguns dos mais importantes desenvolvimentos no direito europeu de um ponto de vista jurídico-administrativo – sendo, aliás, relativamente pacífico que a União Bancária representa a forma mais integrada de administração na história da União Europeia.
É crescente, portanto, a relevância prática do direito administrativo europeu, como começa aliás a ser cada vez mais claro na jurisprudência portuguesa. Nele se inclui não apenas o direito administrativo aplicável à administração própria da União Europeia (à Comissão, ao Banco Central Europeu e às Agências Europeias) mas também o conjunto de regras e princípios gerais de direito administrativo, de origem legislativa ou jurisprudencial, que vinculam as entidades públicas nacionais sempre que exerçam a função administrativa no âmbito do direito europeu. No direito administrativo europeu incluem-se, também, as inúmeras normas em legislação setorial que exigem a cooperação entre entidades administrativas nacionais e europeias, e que as podem obrigar a trocar informações, a constituir órgãos ad hoc para a tomada de decisões comuns, ou mesmo a contribuir, no quadro de um mesmo procedimento administrativo, para a formação de uma decisão.
Um dos fenómenos mais importantes no desenvolvimento do direito administrativo europeu tem sido a proliferação de agências europeias que se tem verificado desde o início dos anos 1990. A esse processo dá-se o nome, talvez menos elegante em português, de agencificação. As razões para a criação de agências são variadas. Todas elas visam promover a cooperação entre autoridades nacionais que exerçam os seus poderes em determinados setores (como a energia, o ambiente ou a proteção de dados) e agregar a elevada especialização e conhecimentos técnico-científicos de que essas autoridades dispõem. Por congregarem delegações de agências homólogas nacionais, as Agências Europeias permitem às Instituições Europeias e às agências nacionais o desenvolvimento de uma visão panorâmica relativamente aos problemas que se suscitam na aplicação do Direito da União de modo transversal aos Estados-Membros. Algumas Agências Europeias foram criadas para despolitizar questões de interesse público na sequência de crises (por exemplo, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos) ou para isolar o exercício de funções regulatórias de home bias, ou seja, de um viés de favoritismo, ou maior lassidão em matéria de fiscalização, derivado de potenciais pressões políticas ou económicas domésticas (como se diz ter sido o caso, por exemplo, do Conselho Único de Resolução).
A criação das Autoridades Europeias de Supervisão (European Supervisory Authorities – ESAs) representou um momento quase tão importante no desenvolvimento histórico do direito administrativo europeu como para a integração dos mercados financeiros na União Europeia. Em conjunto com o Comité Europeu de Risco Sistémico e com as autoridades nacionais de supervisão, as ESAs formam o Sistema Europeu de Supervisão Financeira (European System of Financial Supervision – ESFS).
O ESFS foi criado na sequência da crise financeira que atingiu a Zona Euro há uma década. Criou as condições institucionais e administrativas necessárias para garantir a aplicação efetiva de standards regulatórios do setor financeiro com a finalidade de prevenir novas crises financeiras que possam surgir no futuro. Esse fim é realizado pelo Comité Europeu de Risco Sistémico no que diz respeito à supervisão macroprudencial, ou seja, à deteção e avaliação de potenciais ameaças à estabilidade financeira emergentes de desenvolvimentos macroeconómicos e no sistema financeiro enquanto um todo. As ESAs, por outro lado, exercem conjuntamente funções de supervisão microprudencial – isto é, exercem funções que visam salvaguardar a robustez financeira ao nível de instituições financeiras individuais e proteger consumidores de serviços financeiros.
As ESAs são três: a Autoridade Bancária Europeia (European Banking Authority – EBA), a Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (European Insurance and Occupational Pensions Authority – EIOPA) e a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (European Securities and Markets Authority – ESMA). A sua criação justificou-se, em primeira linha, na necessidade de se prevenirem inconsistências na aplicação de standards de regulação financeira entre Estados-Membros. Dado o elevado grau de integração dos mercados financeiros no contexto do mercado interno europeu, as ESAs desempenham um papel fulcral na prossecução do objetivo da estabilidade financeira. Os respetivos regulamentos salvaguardam a sua independência e vinculam-nas a atuar de modo objetivo e apenas no interesse da União. Dito de outro modo, os Estados-Membros estão coletivamente protegidos de instabilidade financeira pela circunstância de a atividade de supervisão das ESAs, por não poder ser sequestrada pelos interesses parcelares de nenhum Estado-Membro ou da sua indústria financeira, poder ser exercida de modo eficaz.
No que diz respeito às atribuições e competências das ESAs, há desde logo que ter presente que as reais diferenças entre as duas noções não são tão claras no direito administrativo europeu como no direito administrativo português (o que, acrescente-se, tem levado a dúvidas doutrinárias relevantes). No entanto, o que se pode certamente afirmar é que, dentro dos respetivos setores – o da atividade seguradora (EIOPA), o da atividade bancária (EBA) e o dos mercados financeiros e de valores mobiliários (ESMA) –, as ESAs exercem um conjunto de poderes comuns.
Em geral, as ESAs dispõem de poderes para a emissão de recomendações e diretrizes técnicas não vinculativas. Também têm competência para a preparação de regulamentações setoriais, ainda que a sua transformação em atos normativos (vinculativos) dependa sempre de aprovação pela Comissão Europeia.
Ainda que, nalgumas situações, as ESAs assumam poderes de supervisão direta (por exemplo, a ESMA é a supervisora exclusiva de agências de rating), são as autoridades nacionais competentes que geralmente exercem esses poderes. Contudo, as ESAs exercem também poderes de intervenção em certos casos: se as autoridades nacionais competentes tiverem violado o direito da União; se houver desacordo entre essas autoridades quanto ao conteúdo de medidas que essas visem adotar; ou se for necessário facilitar e coordenar a atuação dessas autoridades em situações de emergência. No limite, as ESAs podem emitir, elas próprias, as decisões reclamadas por essas situações de emergência se tal se tornar imprescindível devido à inércia das autoridades nacionais (determinando, por exemplo, a proibição ou restrição temporária de certas atividades financeiras).
As ESAs representaram inequivocamente uma mudança de paradigma no domínio da organização administrativa da União Europeia e, em particular, no que diz respeito aos poderes que as Agências Europeias poderão exercer. Com efeito, as Agências Europeias historicamente exerciam funções de simples coordenação ou de promoção de troca de informações entre autoridades nacionais. A nova geração de Agências iniciada pelas ESAs carateriza-se pela robustez dos seus poderes.
Esses poderes são tão extensos, aliás, que talvez pudessem inicialmente ter sido considerados incompatíveis com limites que, de acordo com a jurisprudência histórica do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), os Tratados traçam à criação de Agências Europeias. Contudo, na sequência de um recurso de anulação interposto pelo Reino Unido contra o Regulamento que estabelece a ESMA, o próprio TJUE veio a esclarecer que não existe uma tal incompatibilidade. Trata-se de apenas um exemplo – a par da recente e algo surpreendente jurisprudência que admite a fiscalização da validade de soft law da EBA – de como a jurisprudência europeia relativa às ESAs terá um papel fundamental nos anos vindouros no que diz respeito ao desenvolvimento do direito administrativo europeu no seu conjunto.