Arrendamento sobrevive a venda de imóvel hipotecado;

Arrendamento sobrevive a venda de imóvel hipotecado
Foi recentemente publicado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) n.º 2/2021, cujo sumário preceitua: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário, de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.”
Estamos perante um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, cujo desiderato assumido é estabilizar uma longa querela que, em termos práticos, se podia resumir ao seguinte: saber se a venda de um imóvel, no decurso de um processo de insolvência, sobre o qual incidia hipoteca, determinava o fim de qualquer contrato de arrendamento que sobre o mesmo incidisse, desde que este tivesse sido celebrado posteriormente à constituição da hipoteca.
A resposta oferecida pelo pleno das secções cíveis do STJ foi num sentido de algum modo inverso ao que maioritariamente vinha sendo seguido pelas instâncias superiores, culminando por ser proferida decisão uniformizadora no sentido em que o contrato de arrendamento se mantém válido e se transmite para o adquirente do imóvel, assumindo este a veste de senhorio, com todos os direitos e deveres que daí resultam.
Ora, tratando-se de um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, estamos perante uma decisão que, apesar de não assumir contornos de lei, vai desempenhar um papel fundamental em termos de apreciação nas tomadas de decisão vindouras dos demais Tribunais hierarquicamente inferiores.
A este respeito importa salientar que estamos perante uma decisão longe da unanimidade da totalidade dos Juízes, pelo que, neste caso em concreto, se revela de particular importância tomar conhecimento das declarações de vencido contra a decisão que se pretende pacificadora.
Não nos atrevemos a pronunciar sobre os argumentos e fundamentos oferecidos em qualquer um dos sentidos, mas sentimos a necessidade de aflorar dois aspetos que poderão ter repercussões após a prolação desta decisão.
Em primeiro lugar, apesar de o segmento uniformizador versar particularmente a alienação em processos de insolvência, ao dissecar os argumentos oferecidos para justificar a manutenção plena dos contratos de arrendamentos celebrados posteriormente à hipoteca, é fácil antecipar um potencial efeito sistémico, extensível à generalidade das vendas em processos executivos cíveis.
Naturalmente que as normas excecionais constantes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – mormente o art. 109.º – assumem papel fundamental no raciocínio levado a cabo pelos decisores, mas, se escalpelizarmos alguns dos fundamentos oferecidos na decisão – em particular o de que o aumento das rendas inverteu o carácter depreciativo do instituto do arrendamento –, é legítimo equacionar que em futuras vendas judiciais em processos de execução este mesmo argumento venha a ser esgrimido.
Num segundo plano, precisamente por se tratar de uma venda inserida num processo de insolvência, cremos que o entendimento que acabou por merecer acolhimento pode não ser o que melhor acautela a generalidade dos credores, para além do credor garantido.
Com efeito, um processo de insolvência visa satisfazer os interesses da generalidade dos credores de um dado devedor. Desde logo entendemos que num possível confronto de interesses, entre arrendatário e credor, este último deveria merecer especial ponderação.
Depois, qualquer processo de insolvência pretende-se célere – não esquecer que é o próprio CIRE que estimula o encerramento da liquidação do activo –, pelo que, sem prejuízo dos incentivos decorrentes da Lei n.º 75/2020, de 27/11, e da obrigatoriedade da realização de rateios parciais em determinadas circunstâncias, o que a prática judiciária tem vindo a evidenciar é que a existência de contratos de arrendamento incidentes sobre os imóveis a alienar tem invariavelmente funcionado como ónus que afastam potenciais interessados na aquisição dos bens.
O que faz com que, na maioria das vezes, surja o credor hipotecário a apresentar proposta de adjudicação do ativo como último reduto, esgotadas múltiplas tentativas venda, volvidos meses e anos desde o início do processo de insolvência.
Ora, este entendimento do STJ provavelmente determinará uma acentuada perda de interesse destes mesmos credores hipotecários, pelo que aquuilo a que se assistirá é, na prática, ao protelar das diligências de liquidação e correlativos atrasos na realização de rateios finais e pagamentos à generalidade dos credores.
Vale isto por dizer que uma decisão que se pretende uniformizadora – e cuja pertinência não se discute e se subscreve na íntegra – pode, afinal de contas, acabar por se revelar dissuasora de potenciais interessados operadores no comércio jurídico.
Pedro Barbosa Morais, Advogado da Cerejeira Namora, Marinho Falcão, 07/10/2021
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