PRR quer limitar poderes das Ordens e facilitar acesso às profissões reguladas;

Bastonários admitem ajustamentos mas contestam sentido da reforma
PRR quer limitar poderes das Ordens e facilitar acesso às profissões reguladas
A troika regressa de novo a Portugal através do Plano de Recuperação e Resiliência.A redução das restrições às profissões reguladas é uma das contrapartidas, até aqui pouco conhecidas, das ajudas económicas. As ordens profissionais contactadas pela “Vida Económica” admitem corrigir o que está mal mas não querem o mesmo Programa da Troika.
A Comissão Europeia e a OCDE continuam a defender que em Portugal há demasiadas restrições no acesso às atividades profissionais e que isso é negativo para a atividade económica. E, depois da “troika”, agora o PRR traz de novo a “fatura” da desregulamentação das ordens profissionais, incluindo a sua fiscalizaçãopor entidades exteriores, também em matéria disciplinar, e o fim do acesso reservado da atividade a profissionais inscritos nas mesmas, como médicos, advogados, engenheiros, economistas, psicólogos, contabilistas.É a chamada  “Reforma RE-r16”, intitulada “Redução das restrições nas profissões altamente reguladas”.
Recorde-se que no Memorando de Entendimento com a “troika” assinado a 17 de maio de 2011 já constavam medidas destinadas a rever e reduzir o número de profissões reguladas e liberalizar o acesso e o exercício de profissões reguladas.
Medidas que contemplavam a eliminação das restrições ao uso de comunicação comercial (publicidade) em profissões reguladas, a revisão e reduçãodo número de profissões reguladas e, em especial, eliminação das reservas deatividades em profissões reguladas que deixaram de se justificar, a adoção de medidas destinadas a liberalizar o acesso e o exercício de profissões reguladas desempenhadas por profissionais qualificados e estabelecidos na União Europeia. Exigiam também o melhoramentodo funcionamento do sector das profissões reguladas (tais como técnicos oficiais de contas, advogados, notários) levando a cabo uma análise aprofundada dos requisitos que afectam o exercício da atividade e eliminando os que não sejam justificados ou proporcionais.
Segundo o CNOP – Conselho Nacional das Ordens Profissionais, existem hoje em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.
Para Carlos Mineiro Aires, presidente do Conselho Geral do CNOP, a questão do aumento do número de Ordens profissionais pode ser vista sob dois aspetos: “ou correspondem ao que a Lei nº 2/2013 [que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais e que está em processo de revisão] contempla e, dessa forma, os cidadãos ficarão mais bem protegidos, ou trata-se de uma tendência que visa a banalização e a progressiva desconsideração das ordens profissionais, o que já seria mais preocupante”.
“Num quadro de resgate financeiro de um país pobre cujo primeiro problema é a economia, considerar que as ordens profissionais são um entrave ao crescimento económico e que até acarretam custos para o Estado, quando o modelo é exatamente o inverso, pois as associações profissionais são sustentáveis e não usufruem de subsídios públicos, só pode ser visto como a mais libertina das visões liberais”, acrescenta.

Medidas protecionistas podem prejudicar interesse da comunidade
A “troika” entendia que a existência das ordens profissionais era um obstáculo à livre concorrência e ao livre mercado. Paula Franco, bastonária da OCC – Ordem dos Contabilistas Certificado, entende o contrário e considera fundamental “que as Ordens defendam o interesse público e não caiam na tentação de adotar medidas protecionistas dos seus membros que sejam contrárias ao interesse da comunidade”.

Imposições do programa da “troika” não foram aplicadas
“Durante o período da ‘troika’, erradamente, entidades externas desconhecedores do funcionamento da sociedade e da economia portuguesas, pretenderam implementar, cegamente, práticas de desregulação da economia e consequentemente das profissões, promovendo crescimento anómalo do número de profissionais”, afirma Miguel Pavão, bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas. “As imposições do programa da ‘troika’ não foram aplicadas, mas não deixa de ser curioso que o atual Governo que se vangloria incessantemente de ter posto fim à “troika” em Portugal, copie agora estas mesmas medidas e as tente aplicar no seu programa de Governo e no PRR”, acrescenta.

Desregulamentação não é aceite
Para Virgílio Macedo, bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, “um eventual caminho de desregulamentação que estava previsto aquando do programa da ‘troika’ nunca poderá ser o caminho a seguir pois não vai ao encontro quer do interesse da atividade económica, quer do próprio interesse dos cidadãos em geral. Prova disso é que tal desregulamentação nunca foi implementada e por isso é de estranhar que essa matéria volte a estar em discussão.
Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Adogados, considera que “as mudanças propostas são muito preocupantes. No extremo poderiam levar a que os advogados deixassem de ter uma adequada formação, que outros profissionais praticassem os seus actos próprios, ou que a sua regulação fosse feita por pessoas estranhas à Ordem dos Advogados. Nem no tempo do Estado Novo existiu alguma vez uma proposta semelhante.
Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, considera zexistido consistência nos processos de avaliação para a constituição de novas Ordens e isso é um problema que não deve ser ignorado”. E lembra que  “os Estatutos das diversas ordens profissionais já foram alterados, desde o memorando da ‘troika’, e algumas das alterações foram até no sentido proposto, mas devo realçar que não posso concordar com algumas propostas que ignoram completamente a realidade nacional e, como por exemplo acontece no último relatório da OCDE, padecem de erros grosseiros sobre os regimes jurídicos em vigor”.
“Se o objetivo é servir o interesse público e ajudar Portugal a progredir, as entidades nacionais e estrangeiras devem emitir documentos rigorosos e, antes da sua publicação, o mínimo que devem fazer é ouvir as entidades que representam os profissionais sobre os quais pretendem opinar. A título de exemplo, posso recordar que era proposto eliminar as restrições ao uso de comunicação comercial (publicidade) em profissões reguladas, como se o país ganhasse alguma coisa com anúncios publicitários nos quais se vendiam notários como detergentes ou médicos como lenços de papel.”

Fiscalização externa rejeitada
Uma das facetas que a reforma das Associações Públicas Profissionais, agora proposta pelo Governo português a Bruxelas, inclui é a intenção de serem criados órgãos novos, maioritariamente compostos por membros externos à respetiva associação pública profissional, com competências, designadamente, sobre matérias disciplinares, acesso à profissão, em especial a determinação das regras de estágio, e reconhecimento de habilitações e competências obtida nos estrangeiros.
“À exceção da matéria disciplinar onde até será salutar uma visão exterior, desde que tenha qualificações, perspetiva-se a possibilidade de uma intervenção vinculativa de quem não sabe e nem conhece, o que rejeitamos, restando saber se estes cargos terão de ser remunerados através das quotas das associações profissionais”, afirma Carlos Mineiro Aires, na qualidade de bastonário da Ordem dos Engenheiros.
A OCDE, em cooperação com a Autoridade da Concorrência (AdC), realizou uma avaliação de impacto concorrencial de um conjunto de profissões autorreguladas, entre as quais a de despachante oficial. “Da avaliação efetuada, consideramos algumas das recomendações como positivas, nomeadamente no que concerne ao acesso à profissão, tendo em vista a eliminação de barreiras que podem ser desproporcionais e poderão contribuir para uma justa concorrência”, afirma Mário Jorge, bastonário da Ordem dos Despachantes Oficais.
“Sugerem-se outras alterações relativamente aos estágios profissionais e à prática multidisciplinar em sociedades profissionais, que estamos a estudar e a avaliar as suas implicações, mas que na sua essência, não acarretam alterações relevantes. Já a recomendação efetuada, que vai no sentido da separação das funções de autorregulação e de representação das ordens profissionais, é a que nos suscita mais reservas, não pela separação das funções, mas essencialmente porque desconhecemos qual será em concreto, o âmbito das competências do órgão de supervisão. Como é sabido, a existência das ordens profissionais nunca foi consensual, existem alterações estatutárias que podem e devem ser efetuadas, mas é necessário conhecer-se em pormenor a estrutura e a realidade de cada uma das ordens profissionais, para ser ajuizada com rigor a atividade regulatória”, conclui Mário Jorge.

VIRGÍLIO FERREIRA (virgilio@vidaeconomica.pt), 27/05/2021
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