“Estamos a perder a batalha da grande criminalidade fiscal e financeira”;

André Ventura, autor do livro “A Nova Justiça Internacional”, afirma
“Estamos a perder a batalha da grande criminalidade fiscal e financeira”
O livro “A Nova Justiça Internacional” não quer limitar-se a expor as grandes linhas em que se desenvolve a justiça internacional nos dias de hoje (nas áreas criminal, fiscal e comercial). Antes, “aponta caminhos alternativos e propostas de mudança”, nomeadamente em relação à fiscalidade internacional.
Em entrevista à “Vida Económica”, o autor da obra, André Ventura, professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, é, aliás, contundente neste tema. “A grande criminalidade fiscal e financeira está a atingir graus superiores de sofisticação”, diz. E “estamos a perder essa batalha”.
Vida Económica - Por que razão afirma que o grande crime financeiro transnacional continua, em grande medida, impune?
André Ventura -
Por várias razões. Por um lado, continua um crime extremamente difícil de monitorizar, devido ao contexto e aos bloqueios. O contexto é extremamente perturbador: um conjunto significativo de países continua a alocar escassos meios para a investigação dos crimes fiscais e financeiros, sobretudo quando o impacto se gera fora das suas fronteiras. Os bloqueios são notórios e de várias ordens: as amnistias políticas que continuam a ser aprovadas para este tipo de crimes em todo o mundo e a persistência de um conjunto de Estados que dá abrigo (direta ou indiretamente) a este tipo de criminosos que, por vezes, lhes são extremamente úteis e proveitosos, transferindo para esses territórios somas consideráveis de capital.
Por outro lado, falta uma estratégia de longo prazo, consolidada, multinacional, de combate a este tipo de ilícito. Investigar crimes de natureza fiscal ou financeira não é o mesmo que investigar homicídios ou violações. Apenas envolvendo várias entidades e um conjunto significativo de novas abordagens e metodologias, a luta contra o crime financeiro será eficaz.

VE - Estamos a melhorar, a algum nível, no combate à criminalidade internacional?
AV -
Procuro demonstrar neste livro que o combate a certos tipos de crimes sofreu uma considerável evolução, sobretudo após o 11 de setembro. O terrorismo e o seu financiamento, o tráfico de seres humanos e mesmo a falsificação de passaportes, entre outros, foram alvo de variados instrumentos jurídicos e convenções internacionais que melhoraram de forma evidente a abordagem a estes fenómenos. O forte levantamento popular, político, social e diplomático após as tragédias de 2001 nos Estados Unidos e 2004 em Espanha conseguiu pôr fim a muitas situações de impunidade que reinavam nesta matéria (por exemplo, muitos dirigentes terroristas conseguiam ter livremente o seu património financeiro em bancos europeus ao abrigo de um arcaico regime de segredo bancário). Esta situação ainda não se verificou em relação aos crimes financeiros e fiscais, com um considerável número de Estados a bloquearem permanentemente qualquer solução internacional conjunta para combater, por exemplo, a corrupção e o branqueamento de capitais de forma eficaz.

VE - Ao nível da fiscalidade internacional – outro dos domínios abordados no seu livro – as mudanças têm sido notórias?
AV -
Claramente. A este nível, os Estados têm uma preocupação evidente, que consiste em arrecadar receita para conseguir as finalidades eleitorais com que se comprometeram. Ao mesmo tempo, sobretudo na Europa após a crise de 2008, muitos países compreenderam que apenas com políticas fiscais competitivas conseguiriam atrair investimento produtivo, o que gerou uma certa sensibilidade global para a necessidade de instrumentos fiscais internacionais, sobretudo destinados a eliminar a dupla tributação jurídica e económica. Ainda há, no entanto, muito a fazer. Continua a faltar um instrumento global e consensual para a eliminação dos paraísos fiscais, em que muitos Governos aparentemente se empenham, mas, como é o caso do Reino Unido, continuam a acolhê-los em territórios sob sua jurisdição. O caso português na tributação dos automóveis importados continua, igualmente, a ser um exemplo do quanto falta fazer em matéria de eliminação da dupla tributação e da construção de mercados harmonizados e fiscalmente integrados, numa lógica de livre circulação de pessoas e capitais.

VE - O que é que “A Nova Justiça Internacional” pode trazer de novo a este debate?
AV -
Especificamente em relação à fiscalidade internacional, procurei traçar o quadro da situação atual e dos grandes desafios que enfrentamos, sobretudo na Europa, na construção de um mercado concorrencial integrado e assente na livre circulação. Ao mesmo tempo, procuro chamar a atenção para o facto de que a grande criminalidade fiscal e financeira está a atingir graus superiores de sofisticação e que estamos, de facto, a perder essa batalha. Em grande medida por inércia política e falta de coragem legislativa.
Por outro lado, chamo a atenção de um ponto que me parece decisivo: num momento em que nos empenhamos em facilitar e agilizar a globalização financeira e comercial (onde a OMC tem um papel decisivo), deixarmos de fora a importância de uma justiça penal internacional em matéria de crimes financeiros e fiscais (como a corrupção e a fraude fiscal transnacional) pode vir a traduzir-se, em não muitos anos, num prejuízo significativo. E esses custos afetarão, uma vez mais, as classes mais desfavorecidas.
TERESA SILVEIRA (teresasilveira@vidaeconomica.pt), 23/04/2015
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