As medidas especiais de contratação pública e de alteração ao CCP e ao CPTA: uma breve reflexão;

As medidas especiais de contratação pública e de alteração ao CCP e ao CPTA: uma breve reflexão


Rui Moreira de Resende

Sócio da RSA
Coordenador do Departamento de Público e Arbitragem
No dia 16.11.2020 foi aprovado, na Assembleia da República, o Decreto n.º 95/XIV, o qual aprovava medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e o Decreto-Lei n.º 200/2008, de 9 de outubro.
Sucede que, em 09.12.2020, Sua Excelência, o Presidente da República, devolveu, sem promulgação, à Assembleia da República aquele Decreto n.º 95/XIV, solicitando que a Assembleia da República pondere:
• Os efeitos quanto ao adjudicante e ao adjudicatário do controlo a posteriori de ilegalidades e de irregularidades detetadas pelo Tribunal de Contas e, bem assim,
• A garantia da presidência da comissão independente de acompanhamento e fiscalização por membro designado pela Assembleia da República, a previsão do alargamento da incompatibilidade de todos os membros com o desempenho de cargos em parceiros económicos e sociais e a substanciação adicional do papel da comissão, em termos de articulação com o Tribunal de Contas e do conhecimento público da sua atividade.
Conforme bem refere Sua Excelência, o Presidente da República, é desejável a simplificação e aperfeiçoamento de procedimento em matéria de contratação pública que possam flexibilizar e alocar os fundos europeus dentro dos prazos muito limitados que estão previstos nos respetivos regulamentos, mas tal simplificação e aperfeiçoamento supõe sempre uma atenta preocupação com o controlo da legalidade e da regularidade dos contratos, exigido pela transparência administrativa.
Concordamos com o entendimento de Sua Excelência, o Presidente da República, no que concerne às suas doutas preocupações com o controlo da legalidade e da regularidade dos contratos, exigido pela transparência administrativa, pois, se é verdade que é útil proceder-se a uma simplificação e aperfeiçoamento de procedimentos em matéria de contratação pública, especialmente no momento atual, tal não poderá ser efetuado com qualquer prejuízo, seja do controlo da legalidade e da regularidade dos contratos, exigido pela transparência administrativa, seja pela redução das garantias dos particulares.
Conforme resulta do título do Decreto n.º 95/XIV, este divide-se em três partes: (i.) a previsão de medidas especiais de contratação pública, vocacionado para projetos cofinanciados por fundos europeus, de habitação e descentralização, de tecnologias de informação e conhecimento, de saúde e apoio social, de execução do Programa de Estabilização Económica e Social e do Plano de Recuperação e Resiliência, de gestão de combustíveis no âmbito do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais e, ainda, de bens agroalimentares; (ii.) a revisão de vários normativos do Código dos Contratos Públicos e (iii.) a alteração do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Naquela proposta de lei existem soluções positivas e soluções menos positivas e soluções mais ou menos adequadas aos princípios aplicáveis à contratação pública, nomeadamente, o princípio da igualdade, o princípio da concorrência, o princípio da transparência, o princípio da boa-fé, o princípio da colaboração recíproca e o princípio da conexão material e da proporcionalidade das prestações contratuais.
Não sendo possível, nesta sede, proceder à análise detalhada de todos os pontos de relevo que aquele Decreto n.º 95/XIV comporta, cumpre-nos assinalar com sentido crítico alguns exemplos de soluções que nos parecem trazer melhoria e inovação normativa e de outras soluções que deveriam ser repensadas pelo legislador.
No artigo 2.º daquele Decreto n.º 95/XIV prevê-se que nos procedimentos pré-contratuais relativos à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus, seja possível iniciar e tramitar procedimentos de consulta prévia simplificada, com convite a pelo menos cinco entidades, nos termos da presente lei, quando o valor do contrato for, simultaneamente, inferior aos limiares referidos nos n.os 2, 3 ou 4 do artigo 474º do CCO, consoante o caso, e inferior a €750.000.
Quanto à primeira parte, recordamos que a OCDE e a Comissão Europeia já se pronunciaram no sentido de “a adjudicação por ajuste direto a um operador económico pré-selecionado continua a ser uma situação de exceção, aplicável se apenas uma empresa for capaz de cumprir os condicionalismos técnicos e de tempo impostos pela extrema urgência(1)”.
Sem prejuízo de se reconhecer ser necessário agilizar e flexibilizar os procedimentos em matéria de contratação pública para alocar os fundos europeus dentro dos prazos muito limitados que estão previstos nos respetivos regulamentos, a presente solução normativa não será a mais adequada, sendo uma opção simplista e que coloca em xeque as garantias de imparcialidade, transparência, igualdade, não discriminação, concorrência e ponderação de custo benefício.
Aliás, não se compreende a necessidade de introdução da alteração ao limite máximo para um procedimento fechado, como o de consulta prévia a entidades selecionadas pela própria entidade adjudicante, com as perdas de garantias inerentes, quando é certo que, para concursos públicos que não tenham de ser publicados no Jornal Oficial da União Europeia, o prazo para apresentação de propostas atualmente previsto no CCP pode ser reduzido a seis dias (art.º 135.º do CCP), o que corresponderá seguramente a celeridade e flexibilidade suficientes para os fins pretendidos.
Não se poderá ainda deixar de realçar a redução dos prazos para audiência prévia (de três dias, na consulta prévia simplificada, e de cinco dias, no concurso público e no concurso limitado por prévia qualificação simplificados – art.º 14.º/1 do Decreto n.º 95/XIV – e de três dias para a pronúncia de contrainteressados e de decisão de impugnações administrativas – art.º 16º do Decreto n.º 95/XIV), crendo que o prazo de cinco dias previsto nos artigos 270º, 273º e 274º do atual CCP assegurará uma melhor tutela dos direitos dos particulares, sem prejudicar gravemente a agilidade e flexibilidade do procedimento de contratação.
Por seu turno, há que deixar uma nota positiva quanto à maioria das alterações pretendidas para o Código dos Códigos dos Contratos Públicos, destacando-se aqui alguns breves exemplos.
Ao abrigo daquelas alterações, impõe-se agora às entidades adjudicantes que assegurem, na formação e na execução dos contratos públicos, que os operadores económicos respeitam as normas aplicáveis em vigor em matéria social, laboral, ambiental, de igualdade de género e de prevenção e combate à corrupção (n.º 2 do art.º 1º-A), exigindo-se ainda que o adjudicatário apresente um plano de prevenção de corrupção e infrações conexas quando o valor do contrato determine a sujeição a fiscalização prévia do Tribunal de Contas, reforçando-se assim a prevenção e controlo da corrupção na contratação pública.
Nota positiva também para as alterações a introduzir ao artigo 24º do CCP, designadamente no que concerne ao esclarecimento do disposto na subalínea i.) da alínea e) do n.º 1 daquele artigo, que permitia a adoção do procedimento de ajuste direito quando o objeto do procedimento fosse a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico, especificando-se agora, na proposta em análise (n.º 6 do art.º 24.º), que, para efeitos do disposto na subalínea i) da alínea e) do n.º 1, incluem-se todos os bens, serviços ou obras conexos com a obra ou o espetáculo a adquirir, designadamente:
a) A criação, execução e interpretação de obras;
b) Os materiais, equipamentos, transporte e processos produtivos de suporte às artes do espetáculo ou do audiovisual;
c) A produção, realização e divulgação de artes do espetáculo ou do audiovisual, incluindo de valorização e divulgação das obras e dos artistas.
Atentas as dificuldades interpretativas que se suscitavam anteriormente a propósito do disposto na subalínea i.) da alínea e) do n.º 1 do art.º 24.º do CCP, cremos que a alteração proposta facilitará as dúvidas interpretativas de adjudicantes e de adjudicatários.
Com especial relevância também a alteração ao n.º 1 do artigo 465.º do CCP, o qual passará a prever que a informação relativa à formação e à execução dos contratos públicos é obrigatoriamente publicitada no portal dos contratos públicos, deixando tal obrigatoriedade de estar restrita aos contratos públicos sujeitos à parte II, o que se traduz num claro contributo para a transparência na contratação pública.
Neste momento, aguarda-se que o diploma seja reapreciado pela Assembleia da República, permitindo-nos sugerir que toda a matéria relativa ao alargamento do critério para as entidades adjudicantes adotarem procedimentos fechados seja reconsiderada, pois o procedimento de concurso simplificado assegurará certamente a necessária e adequada agilidade sem qualquer prejuízo para os princípios e garantias da contratação pública.

Nota:
1. Vd. EUR-Lex - 52020XC0401(05) - EN - EUR-Lex (europa.eu)
01/03/2021
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