O ambiente e sustentabilidade; o princípio da precaução no Direito Administrativo do Ambiente;

O ambiente e sustentabilidade; o princípio da precaução no Direito Administrativo do Ambiente


Lourenço Vilhena de Freitas

Advogado, sócio co-coordenador da área de Público da Cuatrecasas
O ambiente e a sustentabilidade estão atualmente no centro do Direito. É normal que assim aconteça, o Direito regula as preocupações sociais, e de forma crescente o ambiente adquiriu essa centralidade nas preocupações europeias e mundiais.
O aumento da poluição, as alterações climáticas, a redução da biodiversidade, a redução das terras aráveis, a contaminação das águas, os perigos da energia nuclear, são tudo fatores que contribuíram para que os riscos para a humanidade daí advenientes se destacassem nas preocupações e na consciência coletiva, e ganhassem terreno nos fora de debate científico, político e social a nível mundial.
E a relevância do ambiente no Direito não é apenas ecologista, mas centra-se também na qualidade de vida e adquire assim uma dimensão complementar antropocêntrica.
Nesse quadro assistiu-se a um multiplicar de instrumentos internacionais, europeus e nacionais no quadro da proteção do ambiente.
Em Portugal em 1971 foi timidamente criada uma Comissão Nacional do Ambiente integrada na Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. A partir daí um longo caminho foi percorrido.
Atualmente, o Direito do Ambiente assume uma larga dimensão no universo jurídico, estende-se da Constituição ao Direito Penal, do Direito Civil Ambiental, até mesmo ao Direito Laboral Ambiental.
Assume, contudo, particular importância neste complexo normativo o Direito Administrativo do Ambiente, por ser aquele que está mais intimamente ligado à concretização das políticas públicas, aquelas que, por natureza, podem assumir maior impacto no âmbito ambiental.

É assim que encontramos normas de:
i) 
direito da organização administrativa do ambiente (APA, ARH do Norte, Comissão Consultiva para a Prevenção e Controlo Integrado da Poluição),
ii)
prevenção e correção das poluições (sejam procedimentais, como as relativas ao Estudo de Avaliação de Impacto Ambiental, sejam materiais, como licença de poluição, contratos de adaptação ambiental, comércio de licenças de emissão),
iii) 
regras sobre o direito da conservação dos recursos naturais:

  • a) no domínio da proteção da água - rede nacional das áreas protegidas e conservação da natureza e biodiversidade, (Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24.07 e Rede Natura 2000, Decreto-Lei n.º 93/90, de 19.03, na redação atual do Decreto-Lei n.º 180/2006, de 06.09 e 73/2009, de 31.03, para além das áreas protegidas transfronteiriças; Lei da Água, Plano Nacional da Água, Decreto-Lei n.º 243/2001, de 05.09, que aprova regras sobre qualidade da água, e normas relativas à qualidade da água – Decreto-Lei n.º 236/98, de 01.08, Programas de Intervenção em Situação de Seca – art.º 41 LA).
  • b) no domínio da proteção do ar e do solo (Decreto-Lei sobre a avaliação e gestão da qualidade do ar, nomeadamente no Decreto-Lei n.º 102/2010, de 23.09, ou o Regulamento Geral do Ruído, constante do Decreto-Lei n.º 972007, de 17.01 e a avaliação e gestão do ruído ambiente constante do Decreto-lei n.º 146/2006, de 31.07),

iv) direito ambiental de regulação da atividade económica (regime da licença ambiental, Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30.08 que transpõe a diretiva sobre prevenção e controlo integrado da poluição, eco etiqueta),
v)
regras de gestão de resíduos (Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10.12, que aprova o Regime Geral da Gestão de Resíduos, devendo ainda considerar-se o Decreto-Lei n.º 85/2005, de 28.04, na sua atual redação, relativo ao regime de inceneração e coincineração e o Decreto-Lei n.º 152/2002, também alterado, sobre o regime dos aterros),
vi)
regras sobre planeamento ambiental, regras procedimentais de participação procedimental e de acesso à informação ambiental,
vii)
regras sancionatórias
viii)
regras de acesso à jurisdição ambiental.

Dois aspetos/tendências do Direito do Ambiente, merecem, contudo, particular reflexão.
Um aspeto relacionado com uma mutação do modo de proteção do Direito do Ambiente, que deixa de ter um enfoque apenas de controlo, seja preventivo, por meio de limites de planeamento e autorizativos, seja repressivo, por via da determinação de invalidades e de contraordenações, mas que passa a ter no domínio da contratação pública uma dimensão estratégica.

Na esteira do acórdão do Tribunal de Justiça, Concordia Bus Finland Oy Ab, anteriormente Stagecoach Finland Oy Ab, contra Helsingin kaupunki e HKL-Bussiliikenne, processo C-513/99, de 17 de setembro de 2002, depois reafirmado pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, EVN AG e Wienstrom GmbH contra Republik Österreich, processo C-448/01, de 4 dezembro de 2013,  o artigo 70.º da Diretiva 2014/24/UE prevê que as autoridades adjudicantes podem fixar condições especiais de execução de um contrato e que podem incluir considerações de natureza ambiental.
Em consquência, o artigo 1.º-A do CCP estabeleceu o princípio da sustentabilidade e a obrigação de as entidades adjudicantes assegurarem, na formação e na execução dos contratos públicos, que os operadores económicos respeitam as normas aplicáveis em vigor, nomeadamente em direito ambiental, decorrentes do direito internacional, europeu, nacional e regional.
No preâmbulo do CCP encontra-se consagrado que “tanto para efeitos de admissão e exclusão de candidaturas e de propostas, quanto para efeitos da sua avaliação e classificação, confere-se especial importância aos respetivos aspetos que relevem dos âmbitos social e ambiental…”
Ademais, nos termos do artigo 42.º. n.º 6 do CCP: “[o]s aspetos da execução do contrato, constantes das cláusulas do caderno de encargos, podem dizer respeito, desde que relacionados com tal execução, a condições de natureza social, ambiental, …”.
Por fim, o artigo 75.º do CCP estabelece ainda que “[o]s fatores e os eventuais subfactores podem ser, em função dos objetivos e das necessidades da entidade adjudicante, designadamente os seguintes: Qualidade, designadamente valor técnico, características estéticas e funcionais, acessibilidade, conceção para todos os utilizadores, características sociais, ambientais e inovadoras e condições de fornecimento; (…) sustentabilidade ambiental ou social do modo de execução do contrato, designadamente no que respeita ao tempo de transporte e de disponibilização do produto ou serviço, em especial no caso de produtos perecíveis, e a denominação de origem ou indicação geográfica, no caso de produtos certificados”.
Em suma, entre outros aspetos, o life-cycle passa a poder ser considerado como fator de avaliação, incentivando assim a contratação sustentável.
Outro aspeto relacionado com o facto de o Direito do Ambiente estabelecer princípios que se tornaram princípios gerais de Direito Administrativo e que fornecem não apenas uma proteção específica através de instrumentos circunscritos, mas princípio que permite ser operativo em qualquer outro domínio do Direito Administrativo e das políticas públicas, permitindo aí incorporar preocupações de Direito Ambiental: estou a referir-me ao princípio da precaução.
De acordo com a jurisprudência do TJUE (no acórdão Pfizer Animal Health SA contra Conselho da União Europeia, proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, caso T-13/99, de 11 de setembro de 2002 para. 11 e 114 e no acórdão Artedogan contra Comissão, proferido pelo Tribunal de Primeira Instância Processo T-74/00 R, de 28 de junho de 2000, para. 183), na altura ancorada no então art.º 6 do TCE, que estipulava que a proteção ambiental devia ser integrada na definição e implementação de outras políticas públicas listadas no então art.º 3 do TCE, firmou-se o entendimento de que o princípio da precaução é uma parte não apenas do direito do ambiente, mas também de outras políticas comunitárias.
No caso Artedogan, o Tribunal de Primeira Instância considerou em termos gerais que o princípio da precaução é um princípio geral de direito comunitário que exige que as autoridades competentes adotem medidas adequadas para prevenir riscos específicos para a saúde, segurança e ambiente. Esta formulação foi também adotada no acórdão Solvay Pharmaceuticals BV contra Conselho da União Europeia, proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, Processo T-392/02, de 21 de outubro de 2003, para. 121.
Estas duas tendências que hoje marcam o Direito do Ambiente acabam por confluir. A matriz comum é o spill over do direito ambiental por meio da introdução das preocupações ambientais como algo estratégico nas políticas públicas, em todas as políticas públicas, por meio da “globalização” do âmbito de aplicação do princípio da precaução a todos os domínios do direito administrativo, por um lado, e, por outro lado, por meio do recurso mais holístico a todos os instrumentos adequados para a sua proteção, que se alargou sucessivamente dos domínios do licenciamento preventivo e tutela repressiva, ao planeamento e recentemente ao domínio da administração paritária no quadro da contratação pública, não havendo assim domínio do Direito Administrativo estranho ao ambiente. O ambiente passou a ser assim uma política horizontal conatural a todo o Direito Administrativo.

Assim sendo, o Estado e as entidades públicas devem doravante ponderar sempre antes da adoção de uma política pública ou de uma forma de atuação administrativa melhor forma de salvaguardar os interesses ambientais.

 

07/06/2022
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