“Empresas deverão dispor da ‘fatia de leão’ dos apoios europeus”;

Eduardo Catroga afirma
“Empresas deverão dispor da ‘fatia de leão’ dos apoios europeus”
“As reformas de qualidade não poderão ser condicionadas por agentes políticos que, no fundo, são contra a economia de mercado, contra o euro e contra a iniciativa empresarial privada”, afirma Eduardo Catroga.
“O tecido produtivo e as empresas deverão dispor da ‘fatia de leão” dos apoios europeus (Quadro Financeiro Plurianual 2021/2027; Plano Europeu de Recuperação e Resiliência; Portugal 2020), ao contrário do que aconteceu no passado”, afirma Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças e autor do livro “Desenvolver Portugal – Reflexões em tempos de pandemia”.
Quanto aos projetos, “deverão ser escolhidos criteriosamente com base em análises custos/benefícios, hierarquizando-os através de uma seleção por uma ‘estrutura de missão’, com apoio técnico independente”, acrescenta.
Vida Económica – O que levou a escrever um livro sobre um tema tão pertinente como é o desenvolvimento de Portugal?
Eduardo Catroga - O rendimento “per capita” português em paridades de poder de compra evidencia uma quase estagnação nos últimos 25 anos. Portugal está nesse indicador a caminho da cauda da Europa, na medida em que os chamados “países do alargamento” têm vindo, paulatinamente, um após outro, a ultrapassar-nos.
O meu livro pretende retirar ilações da história das nossas crises de pré-bancarrota em democracia (1977-78; 1983-84; 2011-2014) para aproveitarmos a atual crise de 2020 como “catalisador” das mudanças estruturais do que o país carece para o incremento da produtividade (a fonte do crescimento e da prosperidade). Ora, isso exige a consciencialização pelos agentes políticos, económicos e sociais dos seus fatores determinantes, no contexto de uma economia de mercado, no quadro europeu, que se quer competitiva e socialmente inclusiva. O meu livro pretende contribuir para isso, aproveitando para o escrever no tempo da quarentena provocada pela crise pandémica.
Não podemos perder a “oportunidade de ouro” surgida com o reforço da solidariedade europeia para implementarmos ações estruturais conducentes ao objetivo de melhoria dos níveis de produtividade e competitividade, o que exige reformas e uma política eficiente de alocação de recursos na economia. Temos de vencer o “vírus da inação estrutural” que nos tem tolhido, bem como o “vírus ideológico” antiempresas que existe em certos segmentos políticos. O que tem condicionado o ritmo do nosso progresso económico e social.
 
VE – Já se viveram várias crises económicas e financeiras no passado. Que tem a atual crise de diferente?
EC - Esta é uma crise decretada pelos governos como resposta à crise sanitária, com o encerramento compulsivo da atividade económica nas principais economias mundiais, o que provocou uma recessão económica através de um “choque de oferta” que se transformou num “choque de procura”. Se as causas são diferentes de crises anteriores, as suas consequências económicas serão semelhantes: queda da riqueza; destruição de “capital físico”; destruição do “capital humano”; diminuição do PIB potencial; prejuízos mais significativos para as classes mais desfavorecidas; para os jovens à procura do primeiro emprego; e para os idosos que vivem dos rendimentos das poupanças acumuladas.
Esta crise económica não se transformou em crise financeira ou de liquidez graças às políticas monetárias ultra-expansionistas dos bancos centrais das principais economias, estando, na prática, a “monetizar” os défices públicos através da criação de “moeda” (expansão monetária) e a criar um ambiente de taxas de juro nulas ou mesmo negativas, com consequências a prazo sobre as economias e níveis de poupança.
Sistema de saúde
 
VE – Considera que a reforma do sistema de saúde é prioritária? Em que aspetos?
EC - Entre as medidas estruturais críticas para a melhoria da produtividade na esfera das políticas públicas encontram-se as ações de restruturação da despesa pública e de melhoria da sua qualidade. Tal exige reformas em todos os sistemas das administrações públicas, incluindo, naturalmente, o sistema de saúde. 
O sistema de saúde tem três componentes: público, privado e social. Todas elas devem funcionar de forma articulada e complementar, sem preconceitos ideológicos.
O sistema público de saúde deve ter incentivos a maior descentralização da gestão e eficiência, através de contratos-programa, em que os meios financeiros afetos sejam programados num horizonte de médio prazo.
A otimização de recursos deve constituir um objetivo permanente. A política de remunerações deve ter uma componente variável ligada à execução das metas definidas, e constituir um incentivo à otimização dos meios e à formação permanente de pessoal.
A medida governamental de 2016 de redução dos horários de trabalho, transversalmente à função pública (uma redução de 12,5%), teve efeitos muito negativos na organização do trabalho do sistema de saúde, gerando sobrecustos e quebras na produtividade. E deveria ser repensada.
A reforma do sistema de saúde (como de qualquer outro sistema) terá de ser contínua, pois exige continuidade no tempo, na busca das melhores vias e execução das ações para a otimização dos meios afetos. Impõe-se a retoma das parcerias público-privadas (PPP) como instrumentos para a melhoria da eficiência, como demonstrado nas experiências já efetuadas no nosso País (ver relatórios do Tribunal de Contas e da entidade reguladora).
O sistema de saúde precisa, em suma, de mais gestão de qualidade e menos ideologia! E de ver o país aumentar o seu nível de riqueza para lhe poder alocar mais recursos exigidos pelas novas tecnologias da saúde e envelhecimento da população.
 
VE – Certamente existem outras reformas a tratar num horizonte 2030. Que reformas são essas?
EC - Como caraterizo no livro, Portugal precisa de ações estruturais no campo das políticas públicas e no domínio das políticas empresariais, as quais radicam nos três pilares estruturais determinantes do processo de desenvolvimento: o “pilar político-institucional”; o “pilar económico-financeiro”; o “pilar social”. Reformas políticas, económicas e sociais. No fundo, no quadro das escolhas de uma economia de mercado, que queira ser vencedora na economia europeia e na economia global, Portugal necessita de reformas para melhoria do enquadramento da atividade das empresas e dos cidadãos, que estimulem o investimento produtivo, o risco, a competitividade empresarial, e a criação de emprego.
No livro seleciono os eixos estratégicos de ação que devem orientar as escolhas na afetação de recursos para a melhoria dos indicadores económicos e sociais. O que exige uma melhoria continuada do “capital físico”, do “capital humano” e da produtividade. Ou seja: do investimento produtivo; das competências; do empreendedorismo; e da inovação; dos modelos de negócio.
Devo dizer que não basta fazer reformas. Pois há boas e más reformas.
As reformas de qualidade devem ter uma “função-objetivo” determinante – a melhoria da produtividade. Só assim será possível vir a financiar-se adequadamente o “Estado Social” e criar condições para a melhoria do nível de vida das pessoas.
As reformas de qualidade não poderão ser condicionadas por agentes políticos que, no fundo, são contra a economia de mercado, contra o euro e contra a iniciativa empresarial privada.
Governos têm tomado medidas “às cegas”
 
VE – Têm-se sucedido medidas de contenção para travar a pandemia que estão a afetar seriamente a viabilidade de muitas empresas, em particular as ligadas à restauração e ao turismo, mas não só. Que cuidados se deveriam ter para não cavar ainda o fosso económico português?
EC - Os governos da generalidade dos países ocidentais têm-se debatido com falta de orientações científicas que guiem a acção política. E têm tomado medidas “às cegas”, amedrontados com os impactos eleitorais.
O confinamento geral só poderia ser uma medida de urgência e muito limitada no tempo. Na estratégia, tem faltado, em geral, planeamento, organização e segmentação geográfica. A nível de um dado país, as medidas devem ser tomadas por regiões / segmentos de regiões / concelhos / freguesias. As restrições de mobilidade, e de horários de funcionamento, na minha opinião, deveriam ser mínimas.
Os cuidados preventivos de distanciamento social e o uso de máscaras deveriam ter sido generalizados há mais tempo.
Os governos têm especiais responsabilidades de apoios às empresas numa recessão de atividade económica resultante de ações compulsórias. O Estado tem de ser o “ressegurador do último recurso dos riscos sistémicos sobre as economias e as sociedades”. Só é pena que – em consequência de más políticas governamentais acumuladas até 2010 ·, e apesar do relativo sucesso do programa de ajustamentos de 2011-2019, – a saúde económica e financeira do país (antes da crise pandémica) não permita apoios orçamentais mais “gordos”, como o estão fazendo os “países frugais”, que têm agora “reservas” de endividamento para apoiarem mais substancialmente as suas famílias e as empresas.
Mas, graças ao BCE e à solidariedade da UE, é possível atenuar os efeitos mais gravosos e ter esperança na recuperação conjuntural logo que haja a retoma da confiança com uma vacina eficaz.
 
“ Se eu ainda fosse ministro…”
 
VE – Se ainda fosse ministro das Finanças, que medidas tomaria? Suspenderia ou baixaria, por exemplo, os impostos e contribuições para as empresas ou escolheria outras soluções?
EC - Eu fui ministro das Finanças entre 1993 e 1995 e o legado deixado pelo último governo de Cavaco Silva evidencia indicadores robustos de saúde económica e financeira no final de 1995: dívida pública à volta dos 60% do PIB (e receitas de privatizações a efetuar de 20-30 pontos percentuais do PIB, montante encaixado nos anos seguintes); dívida externa de 6% do PIB; níveis de produtividade e de crescimento potencial adequados; um novo quadro comunitário de apoio (II QCA 1994-1999) que duplicou os apoios europeus face ao anterior; aceleração do processo de convergência real e nominal da economia portuguesa; etc.
Portanto, se, eu em 2020, ainda fosse ministro das Finanças (“cenário impossível de longevidade em democracia”) não teria deixado degradar a boa saúde económica e financeira de 1995, não teríamos tido a pré-bancarrota do Governo de Sócrates (2011), e estaríamos com certeza próximos da situação dos “países frugais” em termos de dívida pública, e com melhores níveis de produtividade e competitividade e de convergência real.
Logo, estaríamos em boas condições para responder à emergência da crise pandémica.
Na minha opinião, face à frágil saúde económica e financeira do País e aos elevados níveis de endividamento no final de 2019, deve-se deixar funcionar em 2020-2021 em pleno os estabilizadores automáticos. Logo, aumentaria os défices públicos cíclicos (“monetizados” pelo BCE) para apoiar as famílias e as empresas, mas contrariaria todo e qualquer aumento de despesa pública estrutural, ou seja, aumento de custos fixos e de rigidez de despesa pública, condicionantes de uma gestão eficiente no futuro. E, através dos fundos europeus, procuraria definir, prioritariamente, veículos de apoio à capitalização das empresas viáveis, com os instrumentos adequados.
 
VE – Na abordagem que faz às anteriores três crises (1977-1978, 1983-1984 e 2011-2014) quais são as principais lições a retirar para não se voltar a cometer os mesmos erros?
EC - As duas primeiras crises (1977-1978; 1983-84) aconteceram quando Portugal ainda dispunha de moeda própria (o escudo). A crise de 2011-2014 já aconteceu no contexto do euro.
A crise de 1977-78 foi essencialmente uma crise de balança de pagamentos, pois Portugal precisou do FMI, face ao esgotamento das suas reservas em moedas estrangeiras aceites no comércio internacional – para não cair numa situação de moratória com os credores externos. A crise de 1983-84 teve origem também no défice externo avultado de Portugal em simultâneo com um défice orçamental descontrolado e explosivo. A crise de 2011-2014 teve origem no elevado endividamento externo e interno do País, que levou os credores a “cortarem” a torneira do financiamento externo. O que exigiu o apoio da “Troika”.
As principais ilações: (i) políticas económicas coerentes e consistentes ao longo dos anos com atuação simultânea em dois eixos fundamentais: estabilização financeira; medidas estruturais para a melhoria contínua da produtividade e competitividade; (ii) a coerência e a consistência da política económica exige boas soluções na área da política, pois não há “Boa Economia” sem “Boa Política” (reflexão 15); (iii) orientação das políticas públicas e políticas empresariais para a “função-objetivo maior” – a melhoria da produtividade e competitividade; (iv) atuação contínua sobre os três pilares estruturais determinantes do processo de desenvolvimento: o “pilar político-institucional”; o “pilar económico-financeiro”; o “pilar social” – onde entroncam os eixos estratégicos das ações orientadoras das medidas estruturais e das políticas de alocação de recursos, decisivas para a eficiência das políticas públicas e da gestão empresarial; (v) consciencialização de que as crises provocam sempre quebras de riqueza, no crescimento potencial e no emprego, pelo que os governos devem prosseguir políticas adequadas nos vários domínios (eixos estratégicos de ação), por forma, quando surge uma crise externa, o país possa gozar de uma boa saúde económica e financeira para a enfrentar, sem necessidade de dependência de terceiros (“mendigar solidariedade alheia”); só assim o Estado poderá ser o “ressegurador do último recurso da economia e da sociedade”); (vi) melhoria da qualidade da democracia e da literacia económica e financeira dos cidadãos, para que os eleitores saibam distinguir as propostas políticas, não embarquem em demagogias e deem valor à estabilização macroeconómica e à criação de riqueza e de emprego de forma sustentada. Só a consciência das prioridades poderá conduzir a soluções governativas estáveis e coerentes que definam e implementem boas políticas estruturais, concebidas para sermos vencedores no quadro europeu e de economia global. 
 
VE – Que reflexão faz para o futuro de Portugal?
EC - Portugal tem importantes desafios. Para os vencer, precisa de uma visão estratégica coerente e de fazer opções. As escolhas deverão enquadrar-se nas linhas estratégicas próprias de uma economia de mercado dinâmica, competitiva, sustentável e socialmente inclusiva.
Portugal precisa de vencer os bloqueios que condicionam o processo de desenvolvimento e lançar um novo ciclo de reformas nos pilares estruturais determinantes do futuro.
Portugal precisa de interiorizar que tem recursos e competências para vencer seguindo boas políticas para a melhoria da produtividade e competitividade, pois só criando riqueza poderá satisfazer as ambições de melhoria continuada dos indicadores de bem-estar económico e social a que as pessoas legitimamente aspiram.
A crise pandémica da Covid-19 deve ser o catalisador de uma nova ambição para virmos a ser vencedores entre os países em processo de convergência, ou seja, de aproximação ao nível da UE-15. Precisamos de boas políticas estruturais para um programa de reformas e de desenvolvimento no horizonte de uma década. Desta vez, tem mesmo de ser diferente! Não basta investir. É preciso executar boas reformas.
O tecido produtivo e as empresas deverão dispor da “fatia de leão” dos apoios europeus (Quadro Financeiro Plurianual 2021/2027; Plano Europeu de Recuperação e Resiliência; Portugal 2020), ao contrário do que aconteceu no passado. E os projetos deverão ser escolhidos criteriosamente com base em análises custos/benefícios, hierarquizando-os através de uma selecção por uma “estrutura de missão”, com apoio técnico independente.

Leitura para uma análise global e integrada

No livro “Desenvolver Portugal – Reflexões em tempos de pandemia”, Eduardo Catroga elabora 15 reflexões agrupadas em três grupos interligados: I – As crises económicas e financeiras no período de 1974-2019, o seu contexto e as suas ilacções; II – A crise económica do coronavírus, as tendências geopolíticas, e o plano europeu de recuperação económica; III – Políticas para Portugal no horizonte de 2030.
“Acho que formam um todo coerente. As políticas estruturais propostas no horizonte 2030 – na esfera de políticas públicas, políticas macroeconómicas, microeconómicas e políticas empresariais, são fundamentadas nas reflexões anteriores dos grupos I e II, pois têm de se basear em factos e em diagnósticos estruturais, que evidenciem as fraquezas que há que debelar para a melhoria da produtividade e competitividade. Não se perceberá o grupo III de reflexões sem atender às análises constantes dos grupos I e II. Portanto, aconselho o leitor a uma análise global e integrada, pois não tive como objetivo fazer um mero inventário de reformas e/ou de projetos, mas sim apresentar uma visão estratégica global e coerente, dentro do modelo político-económico europeu e de uma economia que pretenda ser vencedora, competitiva e socialmente inclusiva”, explica Eduardo Catroga.

 


VIRGÍLIO FERREIRA virgilio@vidaeconomica.pt, 20/11/2020
Partilhar
Comentários 0