Bitcoin, “what else”?;

Bitcoin, “what else”?
O famoso slogan “Nespresso, what else?” pretende dar a ideia ao consumidor de que o café da referida marca é singular e a única escolha possível. Depois de o provar, não irá querer ou necessitar de nada mais. Porém, à pergunta formulada no título deste artigo “Bitcoin, what else?” a resposta terá de ser diametralmente oposta. “A lot”.
A Bitcoin é o criptoativo que capta maior atenção pública e política. Porém, não menos importante é a tecnologia revolucionária que lhe serve de base.
Comecemos pelos conceitos. Um criptoativo, no qual se inserem as criptomoedas, é uma representação digital de valor ou de direitos que pode ser transferida e armazenada eletronicamente, recorrendo à tecnologia de registo distribuído, possibilitando o registo de transações diretamente entre duas partes, sem um intermediário, de forma eficiente, permanente, inviolável e verificável.
No caso da Bitcoin, esta tecnologia de registo distribuído chama-se blockchain e, em termos simplistas, o que faz é agrupar a informação a registar em blocos que são interligados por processos criptográficos de modo a que qualquer tentativa de alteração à informação registada no bloco posterior à sua criação seja facilmente detetável pelos participantes. É esta a enorme promessa da blockchain.
São infindáveis as aplicações práticas que a blockchain pode ter dado para o potencial que a tecnologia tem para simplificar processos multipartidários. Os principais usos desta tecnologia focam-se na mitigação de ineficiências, melhorias no registo do trato sucessivo, monitorização de cadeias de abastecimento, automatização de funções e em processos de autenticação.
Recentemente, o Credit Suisse usou uma blockchain da Paxos Trust para transacionar e liquidar instrumentos financeiros. Os resultados foram surpreendentes em termos de eficiência. A Depository Trust and Clearing Corporation (DTCC) – corretora que detém este monopólio há cerca de 40 anos – demora cerca de 2 dias. A liquidação de que falamos foi feita em cerca de 5 horas e meia.
Apesar de muitos setores identificarem notórias vantagens no uso da tecnologia blockchain, a sua adoção tem ocorrido de forma gradual porque a blockchain não é, por natureza, disruptiva, mas sim fundacional. À semelhança dos protocolos TCP/IP, que são a base da internet e que demoraram mais de 30 anos a serem adotados pelo público em geral, a utilização massiva da blockchain poderá não estar para breve.
No exemplo acima referido, a transação da Credit Suisse foi apenas um piloto e apenas pôde ocorrer porque a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos concedeu à Paxos uma “no action letter”. O que é o mesmo que dizer que o uso desta inovação foi tolerado, desta vez, mas não formalmente admitido para o futuro.
A razão pela qual a DTCC detém o monopólio há tanto tempo é apenas uma: a confiança que os reguladores do mercado têm nela. No entanto, é também pela confiança que poderá fazer ruir o “status quo”.
Um exemplo paradigmático recente é o da Robinhood, ao qual a DTCC, em virtude do aumento exponencial da procura de ações da GameStop e AMC e da volatilidade que lhes estava associada, exigiu que depositasse $3 biliões de dólares na sua conta junto da corretora apenas para servir de garantia de pagamento entre o momento da compra das ações pelo investidor e o momento da liquidação dessas ações pela DTCC, que ocorreria dois dias depois. Esta exigência fez com que a Robinhood, por falta de liquidez, se visse compelida a limitar as transações dos seus clientes relativas a essas ações.
Focando-nos agora no mundo das artes, a mediatização dos “non-fungible tokens” (NFT) tem vindo a criar alguma surpresa, muito entusiasmo e algumas dúvidas entre os envolvidos. Os NFT são uma espécie de certificado de autenticidade de um determinado ativo na blockchain. Estes “tokens” permitem a qualquer pessoa verificar quando é que o mesmo foi emitido, por quem e quais as transmissões que lhe sucederam, permitindo, assim, saber, a todo o momento, quem é o proprietário.
A “tokenização” de ativos não digitais é outra área que poderá vir a ser uma tecnologia disruptiva e que, certamente, causará menos fricção à entrada que a “tokenização” de ativos digitais. Um exemplo paradigmático poderá ser a obtenção de rentabilidade através de um “token” representativo de um ativo que tende a valorizar no tempo, tal como um quadro, um portfolio de ações ou até mesmo um Aston Martin DB5.
A Coinbase, uma das maiores “exchanges” de criptoativos a nível mundial, recentemente listada na Nasdaq, emitiu um “token” representativo de um portfólio de ações em mercado regulamentado e que se encontra atualmente listado na Binance. A empresa Lymited pretende oferecer aos seus clientes um “token” correspondente a uma percentagem do valor económico de um Aston Martin DB5 Goldfinger Continuation Series, assim como “usage rights”, isto é, direitos de que os titulares dos “tokens” poderão usufruir, tais como “track events” na Aston Martin ou visitas guiadas à fábrica.
Os serviços públicos poderão ser também simplificados, sem descurar a segurança ou a privacidade que lhes são inerentes e necessárias. Veja-se a Comissão Europeia, que já está a testar uma blockchain que poderá permitir aos cidadãos europeus ter uma carteira digital onde poderão registar os seus documentos oficiais (tal como um eventual passaporte imunológico europeu), ou o Banco Central Europeu, que pretende implementar o euro digital, uma criptomoeda que ofereceria aos europeus o mesmo nível de confiança que a moeda física.
Em Portugal os desenvolvimentos têm também sido dignos de registo. Empresas como a EDP, Utrust, AppCoin, Taikai ou a BitCliq têm utilizado a tecnologia de forma verdadeiramente inovadora e prometem reinventar o meio onde se inserem. Já a Anchorage, fundada pelo português Diogo Mónica, foi o primeiro “digital asset bank” com aprovação a nível federal nos Estados Unidos da América.
A tecnologia blockchain é a base de todos os criptoativos e, verdade seja dita, o mérito deve ser atribuído à Bitcoin, onde a tecnologia teve a sua génese. No entanto, é de notar que a Bitcoin precisa da blockchain mas esta não precisa da criptomoeda. Independentemente de a Bitcoin valorizar ou ruir, parece inexorável que a adoção da tecnologia blockchain continue paulatinamente. É possível antever um futuro em que as empresas e os governos constroem as bases dos seus sistemas nesta tecnologia, tal como aconteceu com a adoção dos protocolos que hoje são a base da internet.
A blockchain tem uma multiplicidade de funcionalidades que só recentemente têm vindo a ser testadas, pelo que o seu imenso potencial ainda se encontra por cumprir.
Miguel Dinis Lucas, advogado da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, Sociedade de Advogados, Portugal (mlgts.pt)., 22/04/2021
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