Em defesa da heterodoxia na Economia;

Em defesa da heterodoxia na Economia
A heterodoxia pressupõe uma ortodoxia, à qual se contrapõe. Na investigação como no ensino em Economia existe uma ortodoxia, largamente dominante, que os economistas formados ou em formação reconhecem imediatamente, ainda que possam não saber defini-la com precisão. Através de mecanismos mais ou menos subtis, uma posição dominante na academia auto-reforça-se facilmente, mesmo que não seja especialmente bem sucedida pelos seus próprios critérios.
O propósito inicial deste artigo é diferenciar ortodoxia e heterodoxia na Economia (1). O seu propósito principal é uma breve ilustração do que a heterodoxia na Economia permite descobrir.
Antes de iniciar o argumento, gostaria de sublinhar que a defesa da heterodoxia que aqui se faz não constitui uma proposta de substituição da ortodoxia presente por outra ortodoxia. Constitui uma defesa do pluralismo. Seria arrogante pretender dar lições aos meus colegas sobre como fazer ou ensinar Economia.

1. Da investigação de Tony Lawson sobre a natureza da ortodoxia e heterodoxia na Economia, campos que abrangem correntes heterogéneas, resulta em primeiro lugar o que a ortodoxia como um todo não é. Não é um programa de defesa do mercado, como ficará claro adiante, nem sequer a adesão consistente a quaisquer princípios substantivos. O que unifica a ortodoxia (das origens às variantes mais recentes) é a aceitação mais ou menos a priori de que o estudo científico da economia exige métodos matemático-dedutivos. Esta posição associa-se à convicção, em regra implícita, de que a matemática é simplesmente um instrumento neutral. Daí a reduzida preocupação com questões ontológicas, ou seja, com a natureza dos problemas económicos.
A heterodoxia, compreendendo correntes substantiva e politicamente conflituais, caracteriza-se pela rejeição da posição acima descrita. Por definição, essa rejeição não implica antagonismo à matemática. Implica, todavia, que a escolha de métodos de investigação deve ser precedida da análise (ontológica) das propriedades dos objectos que pretendemos estudar (2). No que diz respeito ao mundo social, e à economia em especial, é relativamente fácil estabelecer, por exemplo, que existe um nível de realidade não observável, constituído por estruturas, regras de conduta, etc., que possibilitam mas não determinam a acção individual; e que, ao longo do tempo, a acção humana reproduz e transforma essas regras (3). Todas as correntes heterodoxas o aceitam; o que não impede que divirjam radicalmente nas teorias concretas que propõem. Pelo contrário, a estratificação e a natureza processual do mundo social, bem como a criatividade da acção humana, são irreconciliáveis com a modelização ortodoxa.

2. Passemos à ilustração. Em 1920, Ludwig von Mises argumentou que o socialismo, entendido como planificação central, seria inviável. Não havendo, por definição, preços de mercado para bens de capital, seria impossível tomar decisões racionais. Estas exigiriam aqueles preços, que reflectem as avaliações dos agentes económicos em condições concorrenciais e não podem ser substituídos por números arbitrários.
Nos anos 30 e 40, este argumento originou um debate conhecido como Socialist Calculation Debate, em que o estilo da ortodoxia actual, então emergente, é reconhecível. Inadvertidamente, os opositores de Mises distorcem o problema que ele coloca, propiciando uma solução formal que é irrelevante para o problema económico real que o socialismo teria de resolver. Oskar Lange, por exemplo, propõe um modelo de socialismo semi-descentralizado que reproduz os preços de equilíbrio em concorrência perfeita, partindo de preços arbitrários fixados pelo planificador para os bens de capital. Consoante a procura dos vários bens de consumo, as quantidades requeridas dos diversos bens de capital alterar-se-iam (para tecnologias dadas), o que indicaria ao planificador como ajustar sucessivamente os preços inicialmente fixados.
Os problemas desta pseudo-solução foram expostos por Friedrich Hayek, cujos argumentos foram mal compreendidos num contexto de ascensão da ortodoxia. Como pode o planificador ter sequer uma lista de todos os bens de capital? Claramente, ninguém detém o conhecimento necessário para solucionar os inúmeros problemas de escolha que têm de ser resolvidos em tempo real numa economia complexa. Ou seja, o problema económico crucial no mundo real é o da descoberta, uso e transmissão desse conhecimento. O mercado é insubstituível precisamente porque utiliza o conhecimento individual – disperso, em grande medida subjectivo, tácito e contextual – e, através das flutuações de preços que resultam da acção, leva os agentes a reavaliarem o que julgavam saber, propiciando a renovação do conhecimento que possibilita que a economia funcione toleravelmente. A concorrência, por outras palavras, é um processo, que permite descobrir o que antes não se podia saber – o que produzir, como, etc.; pelo que a concorrência perfeita representa a ausência de concorrência (4).
Grande parte da obra subsequente de Hayek, a figura maior da Escola Austríaca, é uma reflexão sobre as regras de conduta que, numa economia descentralizada, suportam uma ordem espontânea em permanente transformação, produto da acção humana mas não da deliberação racional (5).
Mas a heterodoxia é um campo vasto e conflitual. Engloba Schumpeter que, sem rejeitar a teoria do equilíbrio geral, apresenta o capitalismo como um processo de destruição criadora e propõe uma visão alternativa da concorrência enquanto processo, na qual o poder de monopólio é central. Ou Keynes, cuja Teoria Geral, por vezes confundida com a teoria de um caso particular, é uma alternativa ao pensamento neoclássico. Ou Marx, sobre quem, já sem espaço, direi apenas que é impossível não aprender com ele.
Na FEP, os estudantes da licenciatura em Economia têm uma cadeira de História do Pensamento Económico, com espaço para metodologia e várias correntes, cujo eixo central é uma discussão sobre como os economistas explicam a emergência de ordem e a recorrência de ‘crises’ numa economia capitalista. Saem da FEP mais preparados do que os seus colegas de escolas onde o pluralismo foi cancelado.

1- Para uma análise aprofundada do tema, remeto para Tony Lawson, em quem me baseio. Cf. Essays on the Nature and State of Modern Economics (Routledge, 2015), em especial o artigo The nature of heterodox economics.
2- Analogamente, na ‘vida real’ – fora da academia – seleccionamos instrumentos não a priori mas em função dos problemas com que nos defrontamos.
3-  Para aprofundamentos, cf. A conception of social ontology (Lawson, 2015) em ‘Social Ontology and Modern Economics’ (S. Pratten (ed.), Routledge).
4- Sobre este debate, cf. D. Lourenço e M. Graça Moura, The economic problem of a community: ontological reflections inspired by the Socialist Calculation Debate (Cambridge Journal of Economics, 2018, pp. 1-17). Este artigo pode ser descarregado gratuitamente.
5-  Este tipo de ordem já é uma preocupação central de Adam Smith, que sublinha que o soberano não tem o conhecimento necessário para decidir sobre como os indivíduos devem aplicar o seu esforço e capital e critica aqueles que pensam os indivíduos como peças num tabuleiro de xadrez.

(O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.)
Mário Graça Moura, Professor Associado, FEP, 10/06/2021
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