Aposta na tecnologia e na digitalização são cruciais para obter melhores resultados ao nível da sustentabilidade;

Assunção Cristas, Professora da NOVA School of Law, salienta
Aposta na tecnologia e na digitalização são cruciais para obter melhores resultados ao nível da sustentabilidade
Assunção Cristas considera  que as mudanças na mobilidade são um dos aspetos críticos para o impacto climático
Será essencial ajudar as empresas  a suportar os custos da transição - considera Assunção Cristas. Em entrevista  à “Vida Judiciária” a professora da Nova Law School refere que a sobrevivência das empresas no médio prazo vai depender da forma como conseguimos fazer a transição para modelos sustentáveis.


Sendo a preocupação com o meio ambiente um dos principais temas da atualidade e com a crescente perceção pública das consequências de uma irreversível  degradação ambiental, considera necessário o surgimento de novas políticas públicas de combate a este fenómeno ou considera as existentes atualmente como suficientes para fazer frente a esta problemática – ainda que não eficazmente implementadas?
Portugal tem os instrumentos de políticas públicas alinhados com o Pacto Ecológico Europeu nas diversas metas setoriais nos vários domínios. Tem uma lei recentemente aprovada dedicada à política climática, que eleva a ambição e tem um conteúdo fortemente programático, devendo ser desenvolvida quer a nível setorial, nas várias áreas de políticas públicas, quer a nível territorial, através dos diversos níveis de atores políticos (regiões, autarquias). Podemos e devemos sempre pensar em mais ferramentas e incentivos, até porque é duvidoso que os compromissos existentes sejam suficientes para dar a volta à emergência climática, mas penso que neste momento o maior foco deve estar em tornar eficaz o que já existe, de forma a medir o seu impacto e avaliar, no quadro europeu, se é ou não suficiente para cumprir o Acordo de Paris.

Neste campo legislativo ambiental, em 2015 a União Europeia assinou o Acordo de Paris que visa limitar o aquecimento global a 1,5°C e, mais tarde, assumiu, também, através do Pacto Ecológico Europeu, o compromisso de se tornar no primeiro continente a atingir a neutralidade climática até 2050. Considera que as medidas explanadas são bastantes para alcançar os ditos objetivos? E, mais, na sua perspectiva, estão estes diplomas a ser efetiva e adequadamente aplicados em termos práticos?
O último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas sob a égide das Nações Unidas), publicado na íntegra este abril, faz uma avaliação negativa: mesmo que todos os compromissos já assumidos a nível global sejam cumpridos, ainda assim a temperatura deverá chegar aos 1,7°C. Isto significa que é preciso acelerar o passo da mudança e elevar a ambição. A lei europeia do clima, aprovada ainda no quadro da Presidência Portuguesa da UE, prevê precisamente a possibilidade de rever as políticas de modo a cumprir os objetivos do Acordo de Paris, mediante o resultado das avaliações intercalares. Penso que deve haver um grande foco em cumprir tudo o que já está assumido, com a maior rapidez possível, e ir avaliando os impactos de forma a, eventualmente, aprovar mais medidas.

As empresas, num prisma corporativo, são possivelmente os mais estratégicos intervenientes para liderar esta jornada focada no ambiente e sustentabilidade. Que políticas governamentais podem e/ou devem ser aplicadas às mesmas, de forma a que estas se foquem, também, num desenvolvimento sustentável na prossecução dos seus objetivos económicos?
Penso que é ainda é necessário fazer uma grande pedagogia da mudança. Os instrumentos legais são muito importantes ao apontarem um caminho. Estou a pensar em leis como o Regulamento Taxonomia Europeia ou todo um conjunto de diretivas já aprovadas ou em vias de aprovação no domínio ESG. Mas para impulsionar a mudança de forma mais significativa será essencial ajudar as empresas a suportar os custos da transição nas suas atividades. Num mundo muito incerto, num quadro de guerra, com a escalada dos preços da energia e o regresso da inflação, as empresas tendem a estar mais focadas na sua sobrevivência no muito curto prazo. Cabe às políticas públicas criar as ferramentas para ajudar a pensar num horizonte um pouco mais largo e dar sinais claros de apoio a essa transformação, nomeadamente através de suporte financeiro. Esse apoio deve ser um imperativo da ação pública até porque a sobrevivência das empresas no médio prazo vai depender da forma como conseguirem fazer a transição para modelos sustentáveis. Sustentabilidade será cada vez mais sinónimo de competitividade.

É possível ter uma mentalidade de integridade e transparência, também ao nível das preocupações ambientais, nesses sectores produtivos e empresariais?
Tem de ser esse o caminho. A legislação de fonte europeia eleva os padrões de transparência e de prestação de informações, até para permitir a comparabilidade e o alinhamento dos investimentos com o posicionamento dos investidores em matéria de sustentabilidade. A lei adota uma ótica de cadeia de valor, por isso as maiores empresas sujeitas a obrigações de informação e transparência, que naturalmente levarão a mudanças de posicionamento, tendencialmente exigirão os mesmos padrões às suas fornecedoras e clientes. Muitas empresas que em virtude da dimensão ou do setor de atividade não são diretamente visadas pelas obrigações legais serão inquiridas e pressionadas pelas maiores a alinharem-se de forma a manterem-se nas cadeias de valor. Por outro lado, o financiamento, sempre escasso, tenderá a ser mais exigente e alinhado com preocupações de sustentabilidade, o que também se refletirá na dificuldade em obter financiamento por quem não alinhe o seu negócio com critérios de sustentabilidade.

Num mundo gradualmente e, cada vez mais, tecnológico, poderá essa aposta tecnológica surgir como um forte aliado na caminhada por uma maior garantia de sustentabilidade e preocupação e resolução de problemas ambientais? Em que sentido?
Sem dúvida. A aposta na tecnologia e na digitalização são cruciais para obter melhores resultados ao nível da sustentabilidade, uma vez que permitem inovar nos procedimentos e no desenvolvimento das atividades com impactos previsíveis a diversos níveis. Sem uma forte transição digital será difícil vencer os desafios da sustentabilidade. Se se fizer tudo igual como até agora, é altamente improvável que alguma coisa mude substancialmente. Por outro lado, as ferramentas tecnológicas associadas à digitalização permitirão ter informação preciosa em tempo real e fazer escolhas a essa luz.

A nível nacional, uma das principais medidas de mitigação dos transtornos climáticos sofridos incide sobretudo nas áreas da mobilidade e dos transportes, pela aprovação do conjunto de medidas que reforçaram a prioridade ao Ambiente a 5 de junho de 2019. Passados quase 3 anos, considera que esta foi uma medida que acarretou melhorias significativas? O que mais poderá ser feito neste espectro?
As mudanças na mobilidade são um dos aspetos críticos para o impacto climático. Seria bom que houvesse um estudo aprofundado de impacto destas medidas de políticas públicas, já não no domínio prospetivo e dos princípio e estudos gerais, mas perante dados reais da realidade portuguesa. O que sabemos dos estudos nesta matéria é que os meios suaves de mobilidade e o uso de transporte coletivo são muito benéficos para o ambiente. Em sede de transporte coletivo ainda há muitíssimo a fazer.

No rumo da pergunta anterior, vivemos atualmente a tendência progressiva de substituição do motor a combustão pelo motor elétrico, muito incentivada tanto pelas empresas responsáveis no sector como pela própria consciência dos consumidores. Considera que o nosso país está devidamente preparado e munido, tanto legislativa como logisticamente, para esta drástica mudança?
É necessário que um conjunto muito amplo de circunstâncias se conjuguem para que a transformação se dê em larga escala. Em Portugal tivemos algum desacerto como timing europeu e global, começámos por ter rede e incentivos quando na indústria automóvel o carro elétrico ainda não estava suficientemente disseminado, quando passou a estar, verificámos que há muito mais a fazer. Para além do custo de aquisição para os consumidores, que pode levar a uma clivagem também social motivada pelas questões ambientais à qual devemos estar muito atentos, há questões de infraestruturas em larga escala para o carregamento que precisam de ser resolvidas. Por outro lado, a par do interesse na eletrificação em larga escala, é crítico assegurar o incremento da produção de eletricidade através de tecnologias limpas, sob pena de podermos ter um desacerto nos timings e objetivos.

Considerando que o problema da sustentabilidade ambiental se vem intensificando e, portanto, é necessário um acompanhamento legislativo célere e eficaz, será a aposta em parcerias público-privadas uma medida, nestes termos, eficiente, e possivelmente aliviadora da sobrecarga no poder público? Em que termos deverão essas parcerias ser feitas/executadas?
Não tenho dúvidas de que para uma transformação eficaz e rápida todos os esforços dos vários setores têm de ser conjugados. A dimensão da mudança sugere ações colaborativas. A forma como podem ocorrer deve ser bem estudada e garantir que todos os interesses são claros e os custos repartidos de forma correspondente.

Tendo em vista a importância da sustentabilidade e da proteção ambiental para as presentes e futuras gerações, considera que a sua consideração como princípio e direito constitucional ainda se debate com um certo carácter errático, sendo necessária a sua operacionalização?
A lei portuguesa do clima, ao consagrar o direito ao equilíbrio climático, na minha opinião, vem densificar e alargar o âmbito do direito constitucional ao ambiente e qualidade de vida. Hoje não é possível pensar no direito ao ambiente e qualidade, consagrado no artigo 66.º da CRP, sem incorporar a dimensão climática, claramente ausente no momento em que a Constituição foi aprovada, em 1976. Mas os textos legais, máxime constitucionais, são vivos, respiram, e deixam-se fecundar reciprocamente com a legislação e a sua aplicação por via do labor doutrinário e jurisprudencial. Há um campo claro de inovação também no mundo do direito.

No conceito da sustentabilidade cabem diversas aceções, nomeadamente, sustentabilidade económica, a sustentabilidade ecológica, a sustentabilidade espacial, a sustentabilidade social e a sustentabilidade político-cultural. É da opinião que o direito internacional de sustentabilidade deveria ser considerado um ramo autónomo do direito internacional do meio ambiente? Que implicações poderiam decorrer de tal?
Penso que é cedo para fazer essa análise. Contudo, parece-me claro que há uma autonomização crescente do domínio da sustentabilidade no domínio do direito, que extravasa muito a dimensão estritamente ambiental. Tal como não é certo que se deve situar apenas no âmbito do direito internacional. Pelo contrário, a torrente legislativa internacional, europeia e nacional, a forma como se relacionam os vários instrumentos e criam obrigações diretas para as destinatários públicos e particulares, sugere que estamos perante uma área onde as fronteiras clássicas entre ramos de direito e fontes de direito tendem à erosão ou reconfiguração. Estou certa de que haverá muita evolução nesta matéria. Posso dar-lhe o exemplo da minha Faculdade, a Nova School of Law, e de como a partir do próximo ano letivo teremos uma nova disciplina disponível para os estudantes de licenciatura, precisamente intitulada Direito e Sustentabilidade, da minha responsabilidade. É algo diferente do clássico direito do ambiente, que se situa na convergência de muitas preocupações e tem fontes de patamar diversificado. Se daqui poderá nascer a prazo uma verdadeira autonomia científica, é algo que só o tempo e o labor doutrinário poderão ou não confirmar. Mas confesso que não me parece ser o ponto mais importante nestas temáticas. A questão central é perceber como toda esta inovação ao nível da legislação vai efetivamente ter impacto na vida das pessoas e na transição desejada para um mundo mais sustentável, como as exigências vão ser percebidas, como os tribunais as vão ler e aplicar.

Sendo a crise ecológica uma problemática internacional, que não conhece fronteiras, considera que as medidas de cooperação internacional entre estados são, neste campo específico, suficientes? Que mudanças apontaria no caminho da sua melhoria?
É sabida a dificuldade em alcançar consensos a nível internacional. Conhecemos o caminho espinhoso até à aprovação do Acordo de Paris em 2015. A própria redação da cláusula que fixa o teto do aumento da temperatura é toda ela um exercício de consensualização (“bem abaixo dos 2°C […] e prosseguindo esforços para limitar aos 1,5°C”). Sabemos como foi e é criticado por ter como instrumento de concretização apenas as contribuições nacionais determinadas. Mas não vejo alternativa ao multilateralismo e à procura incessante do progresso através do consenso e do reforço de instrumentos financeiros para apoiar as várias partes do globo no esforço climático. Neste caminho há dois aspetos essenciais: boa informação científica e ganho de consciência pela comunidade em geral. Os dois aspetos estão interligados, uma vez que só com boa informação que seja bem comunicada ao público em geral é possível criar uma pressão verdadeiramente transformadora. A política e as políticas públicas podem e devem liderar em alguns aspetos e momentos, mas só se tornam verdadeiramente transformadoras quando encontram eco e impulso no comum das pessoas e estas se tornam agentes de mudança, criando pressões sobre as próprias decisões políticas. É assim que as coisas funcionam em democracia. Demoram tempo e exigem persistência, mas o caminho tem de ser estudar, informar, comunicar, geral consciência, agir.

Existe uma necessidade indispensável de construção de uma transversal “consciência ecológica” ou “consciência sustentável”. É da opinião que se deveria apostar na introdução de cadeiras ou módulos dedicados específica e concretamente a estas vertentes ambiental/e de sustentabilidade, ao longo dos programas de formação superior na área do direito (e outras)?
Esta questão está precisamente em linha com o que acabei de referir. Penso que já existe, em muitas pessoas, uma consciência ecológica ou ambiental, não creio que haja uma consciência plena de todas as dimensões da sustentabilidade. Concordo totalmente que é uma dimensão a desenvolver nas Faculdades de Direito e noutras. Como referi acima, é esse o caminho que a Nova School of Law vai trilhar com a nova disciplina de Direito e Sustentabilidade.

Na esfera daquilo que é, “amplo sensu”, Ambiente e Sustentabilidade, quais considera ser as matérias mais importantes a abordar legislativamente? Porquê?
A sustentabilidade é composta por três pilares e só é possível alcançá-la com o equilíbrio dos três. Sabemos, no entanto, que o pilar ambiental (e o social), muitas vezes, fica esquecido nas opções de desenvolvimento. O conhecimento que hoje temos da dimensão climática veio pressionar decisivamente no sentido de reforçar a dimensão ambiental, até porque também sabemos os impactos profundamente negativos para o pilar social, com crises humanitárias agudas de que já temos sinais alarmantes. A legislação é muito vasta e muitas vezes revestida de complexidade técnica setorial que obriga a um esforço de conjugação de vários saberes. Partir da questão climática para tratar os outros pontos parece-me uma abordagem relevante e com uma perspetiva distinta. Quando a lente usada é a do clima, o próprio contexto da demais legislação na área ambiental ou social transforma-se. Depois, só é possível olhar para os temas de forma transversal e integrada. Posso dar-lhe o exemplo da VdA, que criou  rede de serviços integrados ESG, que coordeno, de maneira a tocar e envolver todas as áreas de prática.

Quando falamos em “Economia do Mar”, defende a posição de que esta pode ser uma das mais preciosas armas no combate à crise climática – de que forma se pode afirmar o potencial e sustentabilidade desta Economia do Mar?
O oceano cobre 70% da Terra e é o suporte vital do planeta, desde logo pelo oxigénio que produz e carbono que sequestra. Sem um oceano saudável a vida no planeta fica comprometida. Penso que a economia azul, enquanto economia sustentável do mar, contém a solução para muitos problemas, do sequestro de carbono (no oceano cinco vezes mais eficaz que na floresta tropical) às energias limpas, da alimentação aos biorecursos para usos muito diversificados. Contudo, tem de ser levada a sério, a dimensão “sustentabilidade” tem de estar sempre presente, quer nas atividades tradicionais quer nas novas atividades e usos do mar.

Neste sentido, considera que “Economia do Mar” e “Economia Azul” são conceitos que deveriam ser necessariamente coligados ou poderão ser autonomizados? Porquê?
Apesar de os conceitos serem usados muitas vezes como sinónimos, eu defino a “economia azul” como a economia sustentável do mar, ou seja, uma gémea do conceito de “economia verde”. A primeira vez que tal apareceu plasmado num texto internacional foi precisamente na Declaração de Lisboa, resultado da Blue Week, em 2015, aprovada por setenta membros de governo e responsáveis de organizações multilaterais. Devemos procurar desenvolver a economia azul e ponto de esta fagocitar a “economia do mar”.

Considera que deveria ser dado enfoque a outras áreas com potencial de coadjuvar na luta ambiental que vivemos? Quais e como?
A taxonomia europeia, quando define seis objetivos climáticos e ambientais, pela sua transversalidade e princípios que acolhe, contém as bases para, de forma dinâmica, ir elevando a ambição. Tal só é possível à luz do desenvolvimento científico e tecnológico, pelo que são estes os determinantes da evolução. Quanto mais progredirmos no conhecimento e o conseguirmos transformar em ferramentas de ação, mais setores seremos capazes de mobilizar para assegurar que conseguimos restaurar o equilíbrio no planeta. Se adotarmos um ângulo de economia circular atento a toda a cadeia de valor, percebemos que todos os setores de atividade são chamados a dar o seu contributo e nenhum se pode considerar excluído. Mas sabemos que energia, mobilidade ou imobiliário estão na linha de frente de maior impacte. Outros, como a agricultura ou a floresta, de resto muito impactados pelo clima, podem ser grandes coadjutores da mudança, de forma que penso não está ainda totalmente percebida pela sociedade e pelos próprios agricultores. No papel de ordenadores e cuidadores da paisagem, os agricultores têm tudo para serem grandes agentes das soluções. Mas penso que o maior desafio está mesmo em cada pessoa. O Papa Francisco, na defesa de uma ecologia integral, tem inspirado a humanidade para que “cuide da nossa casa comum”. Esta ideia de que há uma casa comum que tem de ser cuidada passa pela atitude de todas as pessoas e precisa de ser apreendida e interiorizada. Então as mudanças serão mais rápidas e significativas.
01/06/2022
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