Fusões e aquisições, são operações para fomentar o crescimento e a competitividade
Várias situações podem justificar a necessidade de uma reorganização de um quadro societário. Se o foco estiver no crescimento e na afirmação da empresa ou do grupo, na sua diversificação ou na sua internacionalização, a reestruturação é geralmente marcada por uma operação de aquisição ou fusão. Sobretudo, é um processo que permite às empresas crescerem ou até mudarem a natureza dos seus negócios, bem como a respetiva posição competitiva.
Pode identificar quais os veículos mais adequados às operações de M&A?
Manuel Camarate Campos: As sociedades comerciais, do tipo anónimas ou por quotas, são por regra os veículos mais utilizados nas operações de M&A, mas nem sempre é viável, mais eficiente ou pretendida a sua utilização numa operação deste tipo. Além daqueles veículos um pouco mais clássicos, existem outros veículos atualmente interessantes, tanto a nível económico-financeiro como fiscalmente, que podem ir desde os fundos de investimento, destacando-se dentro destes o fundos de capital de risco, as sociedades de capital de risco, os Real Estate Investment Trusts (REITS), as sociedades de investimento de gestão imobiliária (SIGI) e as SICAFI. Também podemos operacionalizar operações de M&A através de parcerias entre sociedades, ACEs, consórcios, joint ventures, etc. Muito em voga hoje em dia são os investidores de Private Equity e os business angels, que no fundo são os referidos investidores de capital de risco. Estes investidores podem surgir a título individual, mas, geralmente, correspondem a empresas de Private Equity. As empresas de Private Equity são em grande medida responsáveis por uma grande parcela das transações pois investem em negócios em todas as fases de desenvolvimento, desde empresas recém-criadas, start-ups (neste caso são empresas e fundos de venture capital) até empresas já consolidadas, e em diferentes setores. Os investidores destes fundos de private equity são normalmente fundos de pensões, companhias de seguros e grupos de investidores, entre outros.
“As empresas são entidades dinâmicas, que têm de estar atentas ao seu posicionamento do mercado”, alerta Manuel Camarate Campos.
Quais são os principais objetivos e vantagens que os investidores pretendem salvaguardar no âmbito das reestruturações societárias?
Manuel Camarate Campos: No dia a dia de uma empresa ou de um grupo económico, múltiplas situações podem justificar a necessidade de uma reorganização do quadro societário. As empresas são entidades dinâmicas, que têm de estar permanentemente atentas ao seu posicionamento no mercado, introduzindo as mudanças necessárias para que se mantenham competitivas.
Pode o foco estar centrado no crescimento e afirmação da empresa ou do grupo, na sua expansão ou diversificação, ou na sua internacionalização – e teremos uma reestruturação societária marcada por aquisições e fusões; pode haver uma opção de desinvestimento numa determinada área de negócio ou a intenção inversa de a evidenciar, que justifique uma cisão; pode, após um período de expansão, com integração de várias empresas, chegar o momento da racionalização para redução de ineficiências, com diminuição ou modificação das sociedades que integram o grupo económico, mediante fusões internas no grupo, transformação de sociedades ou até dissolução de algumas; pode, enfim, estar em causa obter ganhos de eficiência na cadeia produtiva e logística, redução de custos e modernização de processos, que leve à criação de um agrupamento complementar de empresas (“ACE”) ou de uma sociedade que apenas presta serviços às restantes sociedades do grupo.
Que exemplos de operações podemos englobar naquilo que designamos por M&A?
Rita Montalvão: Como um aspeto da gestão estratégica, as fusões e as aquisições podem permitir que as empresas cresçam e mudem a natureza de seus negócios ou posição competitiva. Em geral este tipo de operações tem como objetivos primordiais os seguintes: i) estratégia de mercado; ii) necessidade de obter sinergia; iii) ganho de eficiência com a obtenção de recursos; e iv) oportunidade de comprar uma empresa por um valor inferior ao seu real valor.
A fusão de sociedades comerciais permite que duas ou mais sociedades, ainda que de tipo diverso, possam fundir-se mediante a sua reunião numa só. Pode realizar-se mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra e a atribuição aos sócios daquelas de partes, ações ou quotas desta, ou a constituição de uma nova sociedade para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas, sendo aos sócios destas atribuídas partes, ações ou quotas da nova sociedade.
Extinguem-se as sociedades incorporadas, ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade. Os sócios das sociedades extintas tornam-se sócios da sociedade incorporante ou da nova sociedade, passando a existir um património único e um único conjunto de sócios.
A operação de cisão enquadra-se numa série de operações de concentração e reestruturação empresarial e é utilizada quando se pretende separar ou dividir partes do património de uma sociedade, para com elas constituir novas sociedades ou agrupar a sociedades já existentes.
Revela-se de extrema utilidade quando se tem como objetivo separar partes do património de uma empresa por ramos de atividade, permitindo uma maior especialização produtiva ou funcional ou quando se pretende alienar apenas uma ou algumas unidades de negócio.
Como operação de reorganização empresarial pode ser conjugada com outros tipos de operação, tais como a fusão, a entrada de ativos ou a permuta de partes sociais.
Outra forma de operação de M&A é a dissolução e liquidação com transmissão global do património. Neste caso todo o património, ativo e passivo, é transmitido para algum ou alguns sócios e depende do acordo escrito de todos os credores da sociedade
As operações de liquidação de uma sociedade traduzem-se no conjunto de atos realizados a fim de dar ao património social uma apresentação, ressalvados todos os direitos e dívidas a terceiros, que permita atribuir aos sócios o património líquido remanescente.
Finalmente, importa referir as operações de transmissão ou de permuta das ações, outra forma de se fazerem operações de M&A, a transformação de sociedades comerciais e a constituição de veículos (sociedades comerciais) simplesmente.
“Este tipo de operações tem como objetivos primordiais a estratégia de mercado; a necessidade de obter sinergia, ganhos de eficiência e a oportunidade de comprar uma empresa por um valor inferior ao seu real valor”, admite Rita Montalvão.
Indique uma vantagem inerente às operações de M&A?
Rita Montalvão: A neutralidade fiscal.
As operações de reorganização das estruturas empresariais, quer a nível nacional, quer a nível internacional, são hoje uma realidade cada vez mais comum, cuja disciplina fiscal se encontra harmonizada a nível comunitário desde 1990.
O regime de neutralidade fiscal atualmente previsto no Código do IRC aplica-se às operações de fusão, cisão e entradas de ativos, sempre que as mesmas sejam realizadas com a intervenção de sociedades residentes em Portugal ou noutros Estados-membros da UE que estejam sujeitas e não isentas de tributação sobre os respetivos lucros.
O chamado regime de neutralidade fiscal o que permite é, em regra, tão-somente diferir para momento posterior a tributação a que haveria lugar no momento da fusão, cisão ou entrada de ativos (e não uma verdadeira isenção de tributação). O Código do IRC estabelece que o apuramento dos resultados que venham a ser obtidos pela sociedade beneficiária relativamente aos elementos transferidos é feito como se não tivesse havido fusão, cisão ou entrada de ativos (dado que se tomará como valor de aquisição de tais elementos o valor pelo qual estavam registados na contabilidade da sociedade fundida, cindida ou contribuidora).
“Os contratos de aquisição de participações sociais utilizam muito o modelo ango-saxónico”, refere João Côrte-Real.
Que fases existem antes de chegarmos à celebração dos contratos de aquisição de participações sociais (SPA) e, quais são as suas cláusulas mais relevantes?
João Côrte-Real: Usualmente, estes contratos, cada vez mais complexos nos tempos que correm, utilizam muito o modelo anglo-saxónico. As partes iniciam o processo de negociação, geralmente, através do Acordo de Confidencialidade (Non Disclosure Agreement), cujo objeto reflete: a divulgação de informações financeiras (confidenciais) da Empresa Alvo; análise das informações para avaliação da Empresa Alvo; manutenção da obrigação de sigilo pós-vigência (2 anos – em geral). Seguidamente, poderemos ter por parte do comprador a Carta de Intenções, onde este manifesta a intenção de comprar e faz uma proposta de aquisição e/ou um memorandum de entendimento, assinado entre as partes, onde já se delineia, grosso modo, aquilo que serão os pressupostos base que deverão ficar vertidos no SPA (Shares Sale and Purchase Agreement).
Após estas fases, as partes celebram um contrato promessa de aquisição sujeito à verificação de determinadas condições, onde se inclui a realização da Due Diligence (DD) e a não verificação de qualquer efeito material adverso, ou o comprador realiza a DD e somente após a sua conclusão é que celebra o SPA, ou as partes celebram desde logo um SPA definitivo sujeito à verificação de diversas condições e eventos, nos quais se inclui sempre a DD.
Relativamente ao SPA, propriamente dito, destacaria como cláusulas mais relevantes (excluindo as básicas tais como o objeto, preço, vigência, cláusula compromissória): formas de pagamento, ajuste do preço, earn-out, garantias de pagamento, efeitos materiais adversos, responsabilidades e garantias dos vendedores (representations and warranties), garantias para os compradores (Warranties & Indemnities), conduct of business, procedimentos de indemnização, não concorrência (non-compete), penalidades, etc.
Dado o seu papel central na proteção do comprador contra o empobrecimento da empresa-alvo pelo vendedor, gostaria de destacar as cláusulas de leakage e permitted leakage, que são habitualmente objeto de extensas negociações entre vendedores e compradores.
“À medida que as transações de participações sociais ficaram mais complexas, as cláusulas relativas ao preço também sofreram alterações”, assume João Subtil.
Por falar em cláusulas de earn-out: como pode ser refletida essa situação na previsão contratual?
João Subtil: À medida que as transações de participações sociais foram ficando mais complexas, as cláusulas relativas ao preço, condição essencial do negócio, sofreram também alterações, para acomodar as necessidades cada vez mais exigentes das partes envolvidas no negócio.
Os contratos de compra e venda de participações sociais, atualmente, na sua maior parte, preveem um de dois tipos de mecanismos de fixação de preço: por um lado, mecanismos de ajuste de preço variável calculado pela diferença entre os indicadores financeiros de contas auditadas de referência (reference accounts) e os mesmos indicadores à data de fecho do negócio (completion accounts) e, por outro, mecanismos de preço fixo acompanhados de um conjunto de disposições especialmente destinadas a preservar o valor da empresa-alvo até ao fecho do negócio (locked box mechanism), nos termos do qual se transfere o risco económico do negócio para o comprador na data de assinatura do contrato, ou seja, durante o período entre a data de referência (locked box date) e o closing o vendedor ainda detém a propriedade das ações e continua a gerir o negócio, muito embora já tenha transferido o risco económico do mesmo para o comprador. Neste cenário e em virtude do desfasamento temporal existente entre a fixação do preço (locked box date) e o closing, as cláusulas adicionais de salvaguarda do comprador tornam-se fundamentais, sobretudo, no sentido de proteger o comprador contra atos de gestão do vendedor praticados em seu exclusivo benefício, máxime, transferências de valor da empresa para o vendedor ou para as partes relacionadas do vendedor durante o período entre a locked box date e o closing (eventos de leakage – aqui se incluindo, a título de exemplo, distribuições de dividendos a favor do vendedor e perdão de dívidas do vendedor e das suas partes relacionadas), pelo que será essencial configurar uma obrigação do vendedor de conduct of business de não as criar (sob pena de ajustamento direto dos leakages ao preço) e, por outro lado, deverá prever-se eventos de permitted leakage – p.e., pagamentos intra grupo de acordo com a prática anterior e em condições de mercado (arms lenght) que não afetarão o preço ajustado, sendo bastante comum, neste tipo de mecanismo, a compensação do vendedor pelo custo de oportunidade pelo facto de transmitir o risco económico do negócio para o comprador, com efeitos à locked box date, recebendo o preço apenas no closing (v.g. mediante a convenção de direito a um juro – taxa a acordar entre as partes – sobre o preço a pagar, calculado entre a locked box date – ou o signing – e o closing).
Em qualquer dos mecanismos de preço, terá máxima acuidade (i) o regime da responsabilidade do vendedor pela violação das representations and warranties, desde logo, quanto a eventuais limitações de responsabilidade aplicáveis (cap, de minimis e basket) e (ii) considerando o cariz contabilístico e financeiro destas matérias, as mesmas devem ser objeto de um trabalho (multidisciplinar) conjunto dos advogados e dos financial advisors, tendo bem presentes as conclusões obtidas durante a fase de Due Diligence legal e financeira/fiscal, de modo a refletir as especificidades do negócio em causa.
Ademais, dentro dos mecanismos de preço variável, é possível estabelecer-se que o preço poderá variar subsequentemente ao fecho do negócio (closing), com base na performance da empresa num determinado período após o closing (mecanismo de earn-out), utilizando, para o efeito, indicadores financeiros como o EBITDA, o EBT (earnings before taxes), o resultado líquido ou os cash flows operacionais, ou indicadores não financeiros, como o número de clientes.
Também conhecida como cláusula de determinação contingente do preço, a cláusula de earn-out é também usada para alinhar as expectativas quanto ao valor da empresa a ser vendida e diferir o pagamento de uma parcela do preço de aquisição, condicionando-o a eventos que possam ocorrer após o closing da operação.
Admite-se que, nesta fase, estas cláusulas ganhem especial relevância e maior utilização, tendo em consideração a instabilidade do mercado em face da crise sanitária e o aumento de operações de aquisição de participações sociais por investidores de private equity a que se tem vindo a assistir, atendendo às diversas compras oportunistas (no bom sentido) que começam a surgir.
Atendendo à atual situação, houve alguma mudança nos modelos de soluções garantísticas geralmente associados a este tipo de transações?
Manuel Camarate Campos: Tradicionalmente, a aquisição de uma empresa (o típico share deal) inclui um conjunto de garantias prestadas pelo vendedor ao comprador, cujas características, densidade e detalhe variam muito em função do negócio desenvolvido pela empresa adquirida e do perfil do comprador. Está vulgarizada a este propósito, nos negócios transfronteiriços de aquisição de empresas a expressão anglo-saxónica “warranties and indemnities”, abreviadamente W&I.
Quando o comprador pretende adquirir um negócio, procura fazê-lo, minimizando os riscos que enfrentará após a negociação. Para isso, conduzirá previamente uma Due Diligence para obter o máximo possível de informação sobre o negócio. No entanto, haverá sempre algum nível de incerteza na perspetiva do comprador. As W&I são usadas para mitigar esse risco desconhecido e estão incluídas no Contrato de Compra e Venda (SPA). As W&I são, na essência, uma garantia para o comprador de que não suportará quaisquer custos futuros imprevistos que decorram do período pré-aquisição.
O SPA pode incluir múltiplas formas de salvaguarda do comprador quanto a contingências futuras do negócio adquirido, com origem em factos passados (v.g. contingências fiscais): desde a retenção de parte do preço no closing, à criação de uma conta escrow, com o valor considerado necessário a fazer face às contingências, à exigência de uma garantia bancária on first demand, etc.
Recentemente, têm vindo a ser desenvolvidos no mercado segurador produtos de seguro de W&I que permitem a transferência para as seguradoras do risco envolvido na aquisição de uma empresa.
Um seguro W&I de última geração: i) cobre as reps and warranties (declarações e garantias) prestadas pelo vendedor; ii) não inclui o direito de regresso em relação ao vendedor (salvo em caso de dolo); iii) inclui a possibilidade de, nalguns casos, indemnizar o próprio vendedor; iv) facilita e acelera as transações; v) pode proporcionar a segurança da totalidade do preço pago pelo comprador e não apenas de uma percentagem; vi) cobre não só as contingências usuais (fiscais, contas, etc) mas a própria legitimidade do vendedor e a titularidade que arroga.
A evidente vantagem para o vendedor é proporcionar-lhe uma saída limpa; para o comprador e o seu eventual financiador dá o necessário conforto, havendo dúvidas quanto à credibilidade do vendedor.
Qual o papel que o financiamento bancário continuará a representar no mercado de M&A?
Manuel Camarate Campos: O financiamento bancário continuará a ter um papel de enorme relevo em operações de M&A. Por um lado, com frequência uma operação de M&A envolve, não só o financiamento da aquisição propriamente dita, mas não raro a renegociação da dívida com os credores bancários da empresa ou grupo de empresas a adquirir; por outro, em operações de M&A de grande dimensão, é inevitável, atentos os valores envolvidos, o apoio de vários bancos em consórcio ou sindicato bancário.
Isto dito, podemos dizer que, atualmente, o financiamento de M&A não se resume a equity dos investidores, emissão de dívida (v.g. empréstimo obrigacionista) pela empresa compradora, ou recurso às diferentes modalidades tradicionais de financiamento dos bancos (mútuos, aberturas de crédito, etc) ou ao project finance nos casos em que seja aplicável.
Atualmente, também em Portugal, surge a possibilidade de financiamento por organismos de investimento coletivo (OIC), de cariz particular, sendo que o Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (“RJCRESIE”) prevê ainda aqueles organismos de investimento com uma multiplicidade de possíveis desenhos (OICR, OIES e OIAE). Nos OIAE merecem um especial destaque os “fundos de crédito” ou “loan funds”, criados com a finalidade de dinamizar o mercado de capitais e de diversificar as fontes de financiamento das empresas. Tal é feito através da concessão de crédito às empresas e, de forma indireta, mediante a aquisição de créditos, incluindo créditos em incumprimento
Este tipo de operações e transações costuma ser precedido de uma análise jurídico-legal e/ou fiscal e financeira, a designada Due Diligence. De uma perspetiva prática, qual o impacto real na realização deste tipo de relatórios e como tem sido a vossa articulação com os Clientes e Parceiros?
Ricardo Néry: A Due Diligence é indiscutivelmente uma ferramenta fundamental para aumentar a segurança do negócio já que, ao apurar as eventuais contingências, permite minimizar consideravelmente os riscos.
Efetivamente, ao avaliar, de forma detalhada, as eventuais contingências de caráter societário, fiscal, laboral, ambiental, propriedade industrial/intelectual, entre outras, é possível medir os riscos que poderão impactar no processo de avaliação jurídico-financeira da empresa e tomar posição sobre os mesmos. Em particular, esta análise prévia permite que as contingências identificadas sejam consideradas na negociação do preço, no estabelecimento de garantias ou, ainda, na identificação de estruturas negociais alternativas, desta forma eliminando ou reduzindo o risco de materialização das contingências e resguardando os benefícios e resultados planeados pelo adquirente.
“A Due Diligence é uma ferramenta fundamental para aumentar a segurança do negócio”, assegura Ricardo Néry.
Quais são os principais “sinais de perigo” em que as empresas se devem focar no momento da análise dos resultados de um relatório de Due Diligence?
Ricardo Néry: Um relatório de Due Diligence permite fazer um levantamento completo de todos os aspetos relevantes no âmbito do negócio concreto a efetuar. Assim, este relatório abrange não só os aspetos legais, como os riscos envolvidos, incluindo os relativos a possíveis responsabilidades, litígios, contratos, contingências presentes e futuras, licenças, propriedade intelectual e industrial, questões laborais e concorrenciais entre outras. Dito isto, os principais sinais de perigo em que as empresas se devem focar no momento da análise de um relatório de Due Diligence, são os que representarem maior risco como genericamente é o caso das responsabilidades laborais e das responsabilidades societárias e financeiras assumidas pela empresa, tais como prestações de garantias reais, exposição bancária e licenciamentos necessários à sua atividade.
Qual a verdadeira importância de um Advogado no acompanhamento de processos em matéria de M&A?
Rita Montalvão: O papel fulcral de um Advogado em processos que envolvem fusões e aquisições é indiscutível. A assessoria neste tipo de processos é muito dinâmica e depende, desde logo, do lado em que está o Cliente, ou seja, depende se o Cliente está a comprar ou a vender.
Todas as operações são diferentes, pelo que o Advogado presta um serviço de assessoria jurídica personalizado a cada Cliente, visando que a operação seja fechada pelo melhor preço possível, com eficiência fiscal e acautelando todos os riscos que o negócio envolve. A redação de contratos e demais instrumentos que cabe ao Advogado nestes processos deve ser clara e objetiva, assegurando que não haja interpretações divergentes num momento posterior à celebração do negócio. Assim, o Advogado antecipa problemas que possam surgir no contexto da interpretação da letra dos contratos e garante uma significação única para cada cláusula, sem espaços de manobra.
Adicionalmente, e porque, cada vez mais o Direito Societário não pode ser visto como um departamento individualizável, é preciso que o Advogado aconselhe o Cliente em todos os aspetos relevantes da operação, desde contingências relativas ao Direito Laboral, Direito Fiscal e Imobiliário a constrangimentos que possam, ainda, existir a nível Cível e Ambiental.
Particularmente, num processo de M&A, os riscos associados ao negócio são identificados num processo de Due Diligence legal, prévio ao fecho da operação. Neste processo, o papel do Advogado é essencial, de modo a analisar e detalhar todos os riscos associados à operação e a aconselhar possíveis soluções.
Qual o cenário atual, no quadro do contencioso judicial, ao nível dos litígios ocorridos em operações de M&A?
Cristina Bogado: No quadro contencioso judicial atual das operações de M&A, quanto às operações de fusão e cisão, pode dizer-se que não é incomum as mesmas serem alvo de oposição requerida por credores das sociedades nelas envolvidas, que julgam ter razões fundadas para temerem a insuficiente solvabilidade do “novo devedor” e têm justo receio de perder a garantia patrimonial dos seus créditos. Também não é incomum, posteriormente à conclusão de tais operações, o surgimento de ações judiciais relacionadas com contratos preexistentes à fusão ou à cisão, que passam a ser assumidos pela sociedade incorporante, ou pela nova sociedade para onde são transferidos ativos/património das sociedades fundidas ou cindidas. Já quanto às operações de aquisição de participações sociais, a litigiosidade tem fundamento em questões muito variadas, podendo estar relacionada, por exemplo, com o direito de preferência societário ou com vicissitudes relativas ao próprio contrato (promessa ou definitivo) de cessão das participações.
No entanto, em período de crise ou de retração económica, embora continuem a ser comuns as transações de M&A, a litigiosidade pode agravar-se. Este cenário exige que as partes estruturem bem as operações e, neste âmbito ponderem, prevejam e acautelem eventuais contingências com as quais se possam ver confrontadas num momento futuro, de forma que o clausulado dos contratos possa fazer a diferença entre uma transação bem-sucedida ou uma situação de incumprimento. Tal releva porque o incumprimento contratual e/ou situação que gere responsabilidade contratual levará à intervenção do tribunal, com todos os custos e delongas associados.
Ademais, no contexto de transação de aquisição de participações sociais o principal participante é o investidor, que procura renegociar ou encerrar transações que lhe gerem benefícios. Assim, quando este se vê confrontado com situações que afetem o seu interesse, não é incomum que busque desfazer o negócio ou tentar reduzir o preço acordado alegando, não raras vezes, várias violações contratuais. Neste âmbito, é usual alegar incumprimento contratual da contraparte requerendo a resolução do contrato, ou redução do preço /ou indemnização, muitas vezes fundamentando o pedido em situações definidas no contrato como sendo de alteração material adversa ((Material Adverse Event “MAE”), para justificar sua posição de que não está obrigado a concluir a transação, ou seja, a celebrar o contrato definitivo quando se está perante um contrato promessa, ou, quando já se está perante o contrato definitivo, alegar a verificação de vício consistente na discrepância entre a qualidade real ou existencial da sociedade vendida e a qualidade devida “ex contractu”, invocando erro sobre a base do negócio, ou o regime de compra e venda de coisas oneradas e defeituosas,.
“Não é incomum o surgimento de ações judiciais relacionadas com contratos pre-existentes à fusão ou à cisão”, assevera Cristina Bogado.
Que cautelas devem as partes ter na celebração dos contratos de transmissão de participações sociais a fim de prevenir litígio posterior ou, perante este, ter meios de defender os seus interesses?
Cristina Bogado: A fim de evitar o cenário antes referido, de possível litigiosidade, as partes contratantes (comprador e vendedor de uma sociedade) devem estar atentas ao redigir e negociar os contratos de cessão de participações sociais, sendo aconselhável estipular-se cláusula de garantia que permita distribuir, por qualquer forma, o risco de transmissão da sociedade e que confira especial proteção do adquirente.
Ademais, a fim de se evitar uma situação contenciosa futura é importante que as partes recorram, por exemplo, a business warranties tendo por objeto precisamente as garantias relativas às características da situação objetiva da sociedade, capacidade creditícia, situações operativas e consistência patrimonial, sobretudo quando a intenção do investidor/comprador ao adquirir as participações sociais é adquirir a direção da empresa ou estabelecimento. Isto porque, a ser assim, é de considerar que a sua intenção foi a de adquirir uma empresa (por via indireta) com determinadas características que devem estar identificadas no contrato para conformar a obrigação de entrega pontual do vendedor, de forma que, se a sociedade não apresentar as características e condições que lhe foram asseguradas no contrato de cessão das participações sociais, será teoricamente possível socorrer-se nas garantias previstas nos artigos 905.º (venda de bens onerados) e 913.º e ss (venda de coisas defeituosas) do Código Civil.
Qual a evolução da legislação no domínio do combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo?
João Côrte-Real: Se a evolução do quadro legal do branqueamento de capitais tem sido marcado por um certo vetor híper legislativo que pretende entender e dar resposta concreta ao fenómeno do branqueamento de capitais, temos que referir que a construção do tipo legal base do crime de branqueamento de capitais se encontra prevista no artigo 368.º-A do Código Penal. Mas, para lá dessa consignação legal, a verdade é que a Lei 83/2017(1) e, agora, 58/2020(2)vêm contruir aquilo que consideramos ser a outra face da moeda, a de prevenção do fenómeno com concreta aplicação e repercussão também nas operações de M&A.
Esta Lei 83/2017 estabelece objetivos claros que passam por um alargamento das entidades sujeitas aos deveres de prevenção do BC/FT, assim como uma aposta inequívoca no reforço de uma abordagem baseada no risco (“Risk Based Approach”), especialmente no momento de avaliação (prévia e consequente) das operações. Outras das novidades é a previsão de uma Due Diligence variável em função do nível de risco da operação e respetivos intervenientes, assim como um aumento e reforço dos requisitos de controlo interno e gestão de riscos agora operacionalizados na figura transversalmente presente do Responsável pelo Cumprimento Normativo (“RCN”).
A Lei 58/2020 veio introduzir (densificar) um conjunto de novas regras que têm um impacto concreto nas operações de M&A: alargamento do acesso à informação sobre os beneficiários efetivos; introdução de mecanismos de simplificação e clarificação; adoção de limites de acesso público à consulta da informação já armazenada na base de dados do Registo Central do Beneficiário Efetivo (“RCBE”) (e que visa acabar com a opacidade das empresas de fachada utilizadas para movimentos de execução de evasão fiscal e branqueamento de capitais); alargamento do conceito de pessoas politicamente expostas (“PEP”) e consequente alargamento, aqui, muito importante, dos deveres de identificação e diligência (“KYC – know your costumer” e “KYT – know your transactions”) em todas as operações.
A rede legal é, por isso, neste ponto de cruzamento entre o fenómeno de branqueamento de capitais e a concretização das operações de M&A extremamente exigente: é não só necessário avaliar as operações a realizar de um ponto de vista jurídico-societário mas é também essencial equilibrar as opções e modelo projetado com aquilo que são as yellow e red flags existentes nas leis mencionadas e que passam pela assunção clara, mas meticulosa, dos procedimentos de KYC e KYT. Neste ensejo é essencial o acompanhamento de uma equipa multidisciplinar, com sensibilidade apurada para a realidade do compliance, e, sobretudo, um especial cuidado na abordagem às operações, concretamente no momento da Due Diligence.
Como Advogados de entidades envolvidas em operações de M&A, sente que estas novas regras vieram de alguma forma alterar a atuação dos visados?
João Côrte-Real: Os Advogados, enquanto servidores da Justiça e elementos essenciais para a sua realização, deverão estar atentos a eventuais atropelos de direitos, liberdades e garantias possivelmente provocadas na esfera dos seus Clientes em virtude do cumprimento desta legislação, por alguns até classificada como persecutória, máxime, no que diz respeito à proteção da reserva sobre a intimidade da vida privada, ao tratamento ilícito de dados e ao direito à não incriminação (“nemo tenetur se ipsum accusare”). Mas o desafio, no âmbito das operações de M&A, é mais profundo e relaciona-se com aquilo que é o timbre de toque da profissão: o sigilo profissional. É que os advogados, salvo quando apreciam a situação jurídica, dão consulta jurídica ou representam clientes em processos judiciais, estão obrigados a comunicar ao respetivo bastonário as operações suspeitas, sendo que aquele deve transmitir prontamente e sem filtragem as informações às entidades requerentes (DCIAP e UIF). Se o dever de comunicação era já fragilizado pelo âmbito alargado e indefinido do seu conteúdo, esta previsão que parece querer transformar os advogados também em instrumentos de denúncia introduz pesados desafios: como articular a relação sagrada de confiança entre mandatário e cliente, construída na égide do sigilo profissional, também nessas operações de M&A com aquilo que são as exigências da rede legal de BCFT e deste concreto dever de comunicação? Parece-nos que o perigo é claro e passa por uma possível e não desejável coartação da atuação dos Advogados que além de inadmissível deve e só pode ser combatida com um desempenho e cumprimento técnico aprofundado dos deveres de kyc e kyt mencionados.
“A formalização de atos societários tem sido objeto de uma contínua desburocratização”, considera Tomás Gregório.
No âmbito do direito societário, a simplificação de procedimentos em vigor é adequada?
Tomás Gregório: A formalização de atos societários tem sido objeto de uma contínua “desburocratização”. A simplificação dos procedimentos societários iniciou-se com a publicação do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março , o qual veio eliminar a obrigatoriedade de celebração de escrituras públicas, suprimir a obrigatoriedade de existência de livros de escrituração mercantil e simplificar os regimes da fusão, da cisão, da transformação, da dissolução e da liquidação de sociedades e do registo comercial. A simplificação continuou, o que se pode verificar, por exemplo, na facilitação dos requisitos necessários para o aumento de capital mediante conversão de suprimentos, bastando para o efeito uma declaração do contabilista certificado (ou do revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida), mencionando que a quantia consta dos regimes contabilísticos bem como a proveniência e a data. Ao mesmo tempo, é possível desde 20/12/2006 a realização de registos online, hoje efetuados no sítio acessível em https://eportugal.gov.pt/.
“O Governo tem desenvolvido esforços no sentido da desmaterialização de atos societários”, na opinião de Marta Morbey.
E no contexto da atual pandemia? Que esforços complementares de simplificação é que foram efetuados?
Marta Morbey: No contexto atual da pandemia, foram igualmente envidados esforços da parte do Governo para a desmaterialização de atos societários, como a possibilidade de promoção de registos comerciais que não possam ser efetuados na plataforma online acima referida, via email para o endereço de correio eletrónico do respetivo serviço de registo até ao dia 31 de março de 2021 (Decreto-Lei n º 16/2020, de 15 de abril), incentivando a comunicação eletrónica de processos.
Neste aspeto, pese embora a bondade das soluções, estamos em crer que a sua implementação peca por defeito. Numa era em que a digitalização da economia é cada vez mais real e necessária, a abertura do sítio Internet do IRN, I. P. a todo o tipo de registos comerciais, bem como, a possibilidade de os efetuar via email, a todo o tempo, e não apenas até 31 de março de 2021, tal como preconizado, seria não só conveniente, mas fulcral para a eficiência e competitividade do comércio jurídico português, o qual naturalmente depende de decisões e impulsos rápidos que, por vezes, os serviços da administração não têm a capacidade de acompanhar. É hora de o digital transformar a realidade prática da promoção dos registos comerciais, em conjugação com a aprovação de um pacote legislativo que possa acautelar a fidedignidade e autenticidade dos documentos de suporte que os instruem.