Pandemia levou a uma imensidão de procedimentos e normas aplicáveis à gestão urbanística
A pandemia levou à criação de toda uma série de procedimentos de gestão urbanística, com uma imensidão de normas aplicáveis aos mesmos e diferente âmbito de aplicação, nem sempre de fácil perceção. O que tornou o quotidiano da gestão urbanística ainda mais complexo. Apesar de uma leitura mais complicada das normas legais, não se verificou qualquer suspensão quanto aos prazos que os promotores tinham para a execução das operações urbanísticas, referiu à “Vida Judiciária” Fernanda Paula Oliveira, professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Qual o impacto que a pandemia trouxe na sua área preferencial de atuação, o Ordenamento do Território e o Direito do Urbanismo?
O primeiro impacto que me vem à memória é o que decorreu das dúvidas que se suscitaram a propósito da legislação produzida a partir do dia 2 de março de 2020, com medidas excecionais e temporárias destinadas a fazer face à pandemia da Covid-19 e que tiveram um enorme reflexo na atuação da Administração em geral e, por isso, também, nestas áreas do direito.
Grande parte dessas medidas prendiam-se com a tramitação dos procedimentos administrativos em curso, visando a sua suspensão, mas, na medida em que tais normas não eram especificamente vocacionadas para os procedimentos urbanísticos, as dúvidas que dela decorreram quanto à sua aplicação neste domínio foram efetivamente muitas, acabando por concorrer para que estes procedimentos, já de si tão complexos e lentos, tivessem assumido um maior grau de complexidade.
Mas o que veio determinar essa legislação na área do direito do urbanismo? Todos os procedimentos em curso ficaram suspensos?
De facto, essa foi a primeira dúvida que se colocou: a de saber que procedimentos se suspendiam, em que termos e até quando. Tive inclusive a oportunidade de publicar um pequeno texto onde fiz o tratamento das várias questões que então se suscitaram no âmbito dos procedimentos de planeamento e de gestão urbanística, que são aqueles que assumem maior relevo, e logo aí concluí que o legislador não determinou qualquer suspensão geral destes procedimentos, embora tenha suspendido o prazo para a prática de certos trâmites procedimentais, acabando por ter impacto na normal tramitação procedimental. Por exemplo, o artigo 7.º, n.º 9, alínea c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril), determinou a suspensão dos prazos “em procedimentos administrativos... no que respeita à prática de atos por particulares”, o que, logo nos procedimento de gestão urbanística do RJUE (como os procedimentos de licenciamento, de autorização, de informação prévia, de reposição de legalidade, de fiscalização etc.), abrangeu um conjunto variado de situações [por exemplo, o prazo que é dado, na fase de saneamento, para que o particular venha corrigir ou aperfeiçoar o pedido; o prazo de consulta pública no âmbito do licenciamento de uma operação de loteamento ou sua alteração; o prazo para o(s) interessado(s) se pronunciarem em sede de audiência prévia etc.]. Mas, da análise que então fiz, concluí que nem todas as situações pensáveis se reconduziam a este normativo. Por exemplo, o prazo para se requerer o alvará (no caso das licenças) ou pagar as taxas (no caso das comunicações prévias) – prazos que, se não forem cumpridos, têm como consequência a caducidade da licença ou da comunicação prévia – era suspenso por força de uma norma distinta (o artigo 7.º, n.os 3 e 4, da mesma lei), e não eram abrangidos por qualquer destas suspensões, os prazos contantes dos alvarás para a realização de operações urbanísticas (e cujo incumprimento determina a caducidade do direito), sendo esta situação abrangida antes por outro normativo (o artigo 44.º do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril).
Ou seja, como se pode ver do exemplo que acabo de apontar em matéria de procedimentos de gestão urbanística, a imensidão de normas aplicáveis a estes procedimentos e o seu diferente âmbito de aplicação – nem sempre de fácil perceção –, tornou o dia a dia da gestão urbanística ainda mais complexo do que normalmente é.
E que reflexo teve esta legislação na atividade da construção civil?
Embora, como referi, o emaranhado de normas legais e regulamentares que foram publicadas a partir de março de 2020 não tenha permitido uma sua fácil leitura, uma coisa é certa: dela não resultou qualquer suspensão desta atividade e, por isso, qualquer suspensão quanto aos prazos que os promotores tinham para a execução das operações urbanísticas tituladas por alvarás ou títulos de comunicação prévia. O que a certa altura se determinou (o artigo 44.º que antes referi) foi que os atos administrativos praticados mantinham os seus efeitos durante a vigência daquela norma (entre 22 de março, data do início do Decreto 2-A/2020, e 2 de maio, data de cessação dos efeitos do Decreto 2-C/2020), o que apenas significava que se o prazo para a referida execução se tivesse esgotado durante essa vigência e o interessado não tivesse concluído a obra ou requerido a prorrogação do correspondente prazo, não podia ser declarada a respetiva caducidade, o que, porém, não significava que o prazo para a execução da operação urbanística se tivesse suspendido. Por isso, esta norma era inócua em relação a muitos atos de gestão urbanística: aqueles que nunca caducariam durante a vigência daquela norma.
Acha que essa solução de não suspensão dos prazos constantes dos alvarás ou outros títulos para a realização das obras foi a mais ajustada?
Não tenho dúvidas que a situação de incerteza provocada pela pandemia pode ter perturbado (e perturbou certamente em muitos casos) o decurso normal de muitas operações urbanísticas: tenho conhecimento de que as obras pararam ou reduziram o ritmo de laboração. De qualquer modo, creio que o nosso direito permite fornecer soluções ajustadas a estes casos, uma vez que, atento o regime de caducidade previsto na legislação urbanística (uma caducidade sanção e não uma caducidade prescritiva), a situação de pandemia deve poder ser invocada pelo interessado para justificar que tal caducidade não seja declarada e, em consequência, que lhe seja concedida uma prorrogação do prazo; e deve a mesma situação poder ser invocada pela Administração como fundamento para não a declarar. Aliás, cheguei mesmo a defender que não me chocaria que as câmaras municipais decidissem adotar uma atitude de “tolerância” perante as licenças cujo decurso do prazo atravessou aquele primeiro estado de emergência, e lhes conferisse, precisamente, uma tolerância temporal equivalente a esse período, assumindo à partida que a situação de calamidade que fundamentou o referido estado de emergência é, por si só e em geral, um motivo justificativo (e não imputável ao interessado) para a suspensão das obras ou para a sua não conclusão no prazo previsto.
E em matéria de planeamento, qual o impacto dessa legislação?
Em matéria de planeamento, também se colocaram várias questões. Por exemplo, ainda que se tenha determinado, como referi antes, que se suspendem os prazos relativos à prática de atos procedimentais pelos particulares, existem bons argumentos para defender que esta norma pode ser afastada nos procedimentos de planeamento, de modo a evitar mais um fator de morosidade que já os carateriza. Estou a pensar, por exemplo, no trâmite da discussão pública dos planos municipais, que pode perfeitamente ser garantida através da criação, pelas câmaras municipais, de canais de comunicação verdadeiramente eficazes que garantam de forma inequívoca o acesso aos documentos que se encontram em discussão pública e o esclarecimento de todas as dúvidas em tempo (nomeadamente, o envio por correio dos documentos, caso o cidadão que não tenha acesso à internet o peça via telefónica). Aliás, em boa verdade, a discussão pública no seu modelo atual já não anda frequentemente muito longe desta solução.
Porém, não sendo a lei clara quanto a este aspeto – pelo contrário, ela determinava a suspensão, em geral, dos prazos para a prática de atos procedimentais pelos particulares –, acabei por aconselhar alguns municípios que considerassem tais prazos suspensos (ainda que pudessem disponibilizar logo todos os elementos para efeitos de discussão pública), de modo a evitar o risco de estas questões (um eventual vício de procedimento que afeta a validade de todo o plano) virem a ter de ser dirimidas em tribunal.
E os prazos para a incorporação nos planos municipais da “nova” classe de solo urbano, que tantas dificuldades têm colocado aos municípios?
Como é sabido, essa é uma matéria do máximo relevo, já que pela aplicação dos novos critérios legais perspetiva-se, nos planos municipais que venham a ser elaborados à luz da nova legislação, uma redução substancial dos perímetros urbanos. O prazo definido legalmente para o efeito terminava em dia 13 de julho de 2020, mas, por força do artigo 35.º-D do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, o mesmo foi estendido, por motivos relacionados com a situação de pandemia, até 9 de janeiro de 2021, prazo esse que já se esgotou sem que tenha sido prorrogado e sem que grande parte dos planos municipais em vigor tenham incorporado as novas regras.
Ora, de acordo com o que consta do artigo 119.º, n.º 2 ,do Decreto-Lei n.º 80/2005, o não cumprimento deste prazo tem como consequências a “suspensão das normas do plano territorial que deveriam ter sido alteradas”, suspensão esta que é, nos termos desta norma, automática, acrescentando aquele artigo que não pode, “na área abrangida e enquanto durar a suspensão, haver lugar à prática de quaisquer atos ou operações que impliquem a ocupação, uso e transformação do solo”. Ainda que alguns coloquem em dúvida quais são “as normas que se deviriam ter sido alteradas”, eu particularmente não tenho dúvidas de que o legislador pretendia referir-se aos solos urbanizáveis; e, nestes solos, a partir de 9 de janeiro, deixou de se poder praticar, por expressa determinação da lei, qualquer ato de gestão urbanística que implique a ocupação do solo: a prática de atos desta natureza naquelas áreas é ilegal. Sei que o Governo tem estado a trabalhar no sentido de prorrogar este prazo, atendendo a recomendações que lhe foram dirigidas pela Associação Nacional de Municípios Portugueses e pela Comissão Nacional do Território. Temos esperar para ver em que termos essa prorrogação vai ser feita, esperando que se esclareça o que acontece aos atos administrativos que neste entretanto tenham sido praticados.
Uma das ideias que os cidadãos ainda têm sobre o procedimento e processos administrativos é que os mesmos ainda são muito burocráticos, apesar de todas as medidas de simplificação que têm entrado em vigor e que, quando existem litígios, a justiça administrativa é ainda muito lenta. Concorda? O que mais pode ser feito nestes campos?
De facto, quanto aos procedimentos urbanísticos, o legislador não fez outra coisa, ao longo dos anos, do que tentar aproximar os tempos da Administração dos tempos dos particulares, simplificando os procedimentos urbanísticos. A introdução, neste domínio, da figura da mera comunicação prévia foi o último passo dado nesse sentido. Sem prejuízo destes constantes esforços, a verdade é que a morosidade e a complexidade continuam a ser a característica destes procedimentos.
Confesso que – esta é a minha perceção – a simplificação dos procedimentos de gestão urbanística depende menos do legislador e de alterações legislativas consecutivas como as que temos tido nos últimos anos, e mais das práticas instituídas que, essas sim, devem ser alteradas. Estou a pensar, por exemplo, naqueles procedimentos que envolvem a consulta a entidades externas ao município que devem emitir parecer vinculativo sobre a pretensão urbanística: é muito frequente, pelo menos por parte de algumas destas entidades, pronunciarem-se como se fossem os próprios serviços municipais, introduzindo entropias nos procedimentos totalmente desnecessárias. É curioso que o legislador, antecipando este tipo de problemas, determina no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação que cada entidade deve pronunciar-se exclusivamente no âmbito das suas atribuiçõese competências, o que, ainda assim, e espantosamente, acaba, muitas vezes, por se traduzir em letra morta.
Portanto, e em suma, considero que nos próximos tempos não merece a pena procurar novos instrumentos de simplificação administrativa através da lei (a legislação que temos neste domínio é já bastante avançada e dispõe de instrumentos de simplificação variados e adequados): aquilo em que todos devemos apostar é na mudança de práticas e de comportamentos instituídos, quer por parte da Administração quer por parte dos promotores.
Quanto à justiça administrativa, dúvidas não tenho quanto à sua lentidão, o que é inconcebível em geral e, por isso, também, nestas áreas jurídicas...
Atualmente, já foram criados juízos de competência especializada, nos termos do ETAF, tendo sido criados juízos de contratos públicos, mas ainda não tendo sido criados juízos de urbanismo, ambiente e ordenamento do território. Não se justificava a criação destes juízos de competência especializada. Não seria esta uma solução contra a lentidão que acabou de referir?
Como referi, a perceção que tenho quanto à Justiça administrativa é a de que os processos são morosos e as decisões tomadas, pelo menos no âmbito específico do direito do urbanismo e do ordenamento do território, nem sempre são acertadas, o que resulta muitas vezes da complexidade e da alta tecnicidade das matérias envolvidas, que exigem conhecimentos especializados. Porém, não estou com aqueles que defendem que a resolução das deficiências de funcionamento e ineficiências de atuação da Justiça Administrativa deve passar pela unificação de jurisdições. Pelo contrário, julgo que a resolução daquelas deficiências e/ou ineficiências passará precisamente pela especialização dos tribunais nestas áreas de atuação da Administração pública, pelo que a criação de juízos de urbanismo, ambiente e ordenamento do território é, na minha opinião, uma urgência.
Considera que os particulares e, claro está, as respetivas entidades administrativas têm recorrido de forma adequada e suficiente à contratação urbanística ou ainda é um meio que pode ser melhor explorado?
Curiosamente, sempre considerei que um dos domínios de atuação administrativa mais permeável à mobilização de instrumentos de contratação, enquanto forma de concertação de interesses entre a Administração, Pública e os particulares, é o domínio do urbanismo: embora na atividade urbanística predominem as formas de atuação unilateral da Administração como os regulamentos e outros atos normativos (o caso dos planos) e os atos administrativos, a contratação assume aí virtualidades incontornáveis por se apresentar como uma forma adequada para ajustar ou conciliar interesses públicos e privados divergentes ou convergentes; para adaptar a ação administrativa a situações especiais ou não previstas na lei; para incitar uma colaboração mais efetiva da contraparte do que a que resultaria da prática de um ato de imputação unilateral; para conceder maior segurança aos particulares num domínio em que os seus investimentos apresentam um peso fundamental; para conferir maior legitimação à atuação da Administração e, em consequência, maior eficácia e eficiência a esta. Pode também esta contratação, desde que devidamente enquadrada, permitir aos municípios os meios financeiros de que eles necessitam para a concretização dos seus projetos de interesse público, apresentando-se, nesta medida, como um instrumento importante e relevante para a sustentabilidade financeira dos mesmos.
Quem conhece a regulamentação jurídica do urbanismo em Portugal saberá que os contratos assumem, efetivamente, relevo em vários domínios deste setor administrativo: é o caso dos contratos para planeamento, dos contratos no âmbito da execução sistemática (programada) dos planos (por exemplo, no âmbito de unidades de execução), dos contratos no âmbito da concretização de operações urbanísticas não sistemáticas, etc.
Ou seja, a lei enquadra devidamente a contratação no âmbito do direito do urbanismo e tenho a perceção que a mesma já é utilizada em muitas situações, embora ainda não de uma forma sistemática, pelo que considero que a mesma é ainda um meio que pode ser melhor explorado.