Autonomia privada e liberdade contratual no ordenamento jurídico moçambicano
Carlos Freitas Vilanculos Ricardo Nery
Sócio na CF&A, Sociedade Advogado Principal
de Advogados da RSA-LP
No ordenamento jurídico moçambicano, as relações jurídicas comerciais, sejam entre pessoas jurídicas do mesmo país ou países diferentes, são, na sua maioria, firmadas por contratos e a liberdade contratual funciona como catalisador da flexibilidade dessas relações ao permitir que as partes intervenientes estabeleçam regras de estruturação económico-social das suas relações jurídicas. A autonomia privada manifesta-se através do exercício dos direitos subjetivos e da possibilidade de celebração de negócios jurídicos (unilaterais ou contratos).
É um princípio concedido pela ordem jurídica e representa um desdobramento, no campo contratual do direito privado, visto que reconhece aos indivíduos faculdades ou poderes de atuação, diversos dos legalmente prescritos.
Em sede do direito internacional, com realce para o Instituto Internacional para a Unificação e harmonização do Direito Privado (UNIDROIT) ou ainda o Principles of European Contract Law (“PECL”), assevera-se que o princípio da autonomia privada se apoderou de forma imponente dos princípios que norteiam as relações comerciais internacionais.
Estabelecem os Princípios Unidroit, no seu art. 1.1, intitulado “liberdade contratual” o seguinte: “As partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo”. No mesmo diapasão, pode ler-se no preâmbulo dos Princípios Unidroit que estes “enunciam regras gerais destinadas a reger os contratos comerciais internacionais” e que “serão aplicáveis sempre que as partes acordem em submeter o contrato a estes Princípios”.
O art. 1:102 (1) dos PECL consagra que “As Partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo, sem prejuízo das exigências da boa-fé e das regras imperativas estabelecidas por estes Princípios.”
O legislador constituinte moçambicano não se alheou a esta realidade, tendo, nessa órbita, investido, nos direitos fundamentais, em disposições constitucionais de carácter social que remetem a materialização da autonomia privada no governo dos particulares.
Efetivamente, o Código Civil (“CC”) moçambicano estabelece no artigo 405º que:
1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na Lei.
No pressuposto de facilitar as relações comerciais no tráfego jurídico, o legislador concedeu às partes a liberdade de, no conselho das suas vontades, contratarem sobre matérias e conteúdos que estejam no seu próprio controle, sem necessariamente obedecer a um dado procedimento ou ritual escrupulosamente legal. Dentro dos limites da lei, o legislador consagrou na liberdade contratual a epítome mais alta da autonomia privada.
A fixação do conteúdo contratual pelas partes manifesta-se através da faculdade ou liberdade de modelação do conteúdo contratual, podendo, inclusive, celebrar contratos inominados ou atípicos. Ainda no esteio da liberdade contratual, podem as partes celebrar contratos típicos ou nominados, desde que identifiquem o nomen iure desse contrato.
A liberdade contratual estende-se ainda à possibilidade de as partes poderem acoplar num único contrato regras atinentes a dois contratos nominados, tornando-se o seu contrato atípico ou misto, desde que conforme a disposição supra, seja dentro das barreiras da Lei.
Esta limitação à liberdade contratual, do ponto de vista objectivo, visa manter a ordem pública e os bons costumes não feridos (artigos 280º e 282º do CC). Subjectivamente, esta limitação impõe sobre as partes a obrigatoriedade de, nos preliminares, na contratação e na execução do contrato, se pautarem pelo princípio da bonna fide (artigo 762º n.º 2). Aliás, nenhum princípio é absoluto ou ilimitado, o mesmo sofrerá influências, concorrência ou ainda imposição de outros princípios.
A consagração da boa-fé corresponde a cedência pela Direito da entrada de normas de trato social no âmbito jurídico, que também se encontram subjacentes aos actuais sistemas de Estado de Direito Social. Podemos afirmar que o princípio da boa-fé na autonomia privada apresenta-se como o critério normativo em sentido objectivo. É um conjunto de regras de conduta que os contraentes esperam que sejam comummente adoptadas para o alcance do fim contratual.
A esta liberdade contratual existe ainda a limitação resultante do princípio do numerus clausus ou princípio da tipicidade dos direitos reais, onde as partes, ainda que protegidas pela autonomia privada, não podem alterar por contrato as características dos direitos reais tipificados pela lei e nem podem criar, por meio de contrato, outros contratos tipos.
Como reguladora, a boa-fé contratual é ela que determina o âmbito da vinculação negocial. Assim, a boa-fé está presente desde o início, permanece durante a vida do contrato e mesmo após fim do mesmo ela continua com vida.
Deste modo, o negócio jurídico constitui a manifestação autêntica do princípio da autonomia privada reconhecido aos contraentes para a auto-regulamentação dos seus interesses, constituindo, modificando ou extinguindo situações jurídicas a eles inerentes. A autonomia privada não se circunscreve apenas à liberdade de contratar, mas encerra também o poder de não exercer os direitos, entre eles, o direito de abster-se de celebrar negócios jurídicos. Ou seja, no âmbito da autonomia privada ninguém é obrigado a celebrar contratos e, inversamente, ninguém é proibido de celebrar contratos, preenchidos os pressupostos legais.
O elemento que exterioriza a intenção ou o desejo de celebrar o negócio jurídico é a declaração, que é a vontade negocial, o comportamento exterior demonstrado para externar o conteúdo da vontade negocial e, via de consequência, realizar efeitos práticos com ânimos juridicamente tutelado.
Esta vontade de constituir negócio jurídico pode ser observada no seu aspecto subjectivo que é a vontade manifesta, ou ainda no seu aspecto objectivo, neste caso a declaração reveste o comportamento objectivo, uma certa aparência conducente a essa conclusão de desejo de contratar.
De facto, a autonomia privada, vista como poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento jurídico às partes, somente é válida se as suas disposições estiverem nos carris do direito. Entende-se que assim seja, por maioria de razão, dado que é o direito que legitima e valida esta actuação dos particulares.
Esta actuação deve ser verdadeiramente manifesta por meio de um comportamento declarativo, com conteúdo volitivo que exterioriza a vontade de constituir um negócio jurídico. Destarte, o negócio jurídico irá revestir a auto-ordenação da autonomia de vontade expressa por cada sujeito da relação. Nesta conformidade, o negócio jurídico será o cerne da autonomia da vontade ou autonomia privada.
Em sede de direito comparado, também no direito português, o princípio da liberdade contratual está em conexão necessária com as características de um sistema económico-social.
Conclusão
Em suma, podemos concluir que a autonomia privada está sempre correlacionada com a limitação à liberdade contratual (com as limitações supra elencadas) e, estando presente em vários sectores do direito civil, propõe-se a uma função de modelação da vida social, destacando-se o plano das relações patrimoniais e da troca de bens e serviços.
Está igualmente presente, embora com influência diminuta, no plano das relações familiares, e esta fraca presença deriva das várias imposições ou obrigações a que este sector está sujeito (v.g. proibição de venda de pais para filhos), onde o direito exerce mais a função protectora ou de defesa dos direitos ali constituídos e garantidos aos particulares.
A autonomia privada, na sua função modeladora, não autoritária, mas espontânea, coloca os seus intervenientes no mesmo plano de igualdade contratual.
Por fim, o ordenamento jurídico que admita, sem limitações, legais ou subjectivas, a autonomia privada, indubitavelmente, não acolherá uma justiça ou confiança contratual imanente e que seja assente em critérios objectivos, uma vez que a autonomia privada é a declaração máxima da consideração da personalidade do homem no que respeita ao arbítrio para a celebração de negócios jurídicos num plano de igualdade.
É um princípio concedido pela ordem jurídica e representa um desdobramento, no campo contratual do direito privado, visto que reconhece aos indivíduos faculdades ou poderes de atuação, diversos dos legalmente prescritos.
Em sede do direito internacional, com realce para o Instituto Internacional para a Unificação e harmonização do Direito Privado (UNIDROIT) ou ainda o Principles of European Contract Law (“PECL”), assevera-se que o princípio da autonomia privada se apoderou de forma imponente dos princípios que norteiam as relações comerciais internacionais.
Estabelecem os Princípios Unidroit, no seu art. 1.1, intitulado “liberdade contratual” o seguinte: “As partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo”. No mesmo diapasão, pode ler-se no preâmbulo dos Princípios Unidroit que estes “enunciam regras gerais destinadas a reger os contratos comerciais internacionais” e que “serão aplicáveis sempre que as partes acordem em submeter o contrato a estes Princípios”.
O art. 1:102 (1) dos PECL consagra que “As Partes são livres de celebrar um contrato e de estipular o seu conteúdo, sem prejuízo das exigências da boa-fé e das regras imperativas estabelecidas por estes Princípios.”
O legislador constituinte moçambicano não se alheou a esta realidade, tendo, nessa órbita, investido, nos direitos fundamentais, em disposições constitucionais de carácter social que remetem a materialização da autonomia privada no governo dos particulares.
Efetivamente, o Código Civil (“CC”) moçambicano estabelece no artigo 405º que:
1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na Lei.
No pressuposto de facilitar as relações comerciais no tráfego jurídico, o legislador concedeu às partes a liberdade de, no conselho das suas vontades, contratarem sobre matérias e conteúdos que estejam no seu próprio controle, sem necessariamente obedecer a um dado procedimento ou ritual escrupulosamente legal. Dentro dos limites da lei, o legislador consagrou na liberdade contratual a epítome mais alta da autonomia privada.
A fixação do conteúdo contratual pelas partes manifesta-se através da faculdade ou liberdade de modelação do conteúdo contratual, podendo, inclusive, celebrar contratos inominados ou atípicos. Ainda no esteio da liberdade contratual, podem as partes celebrar contratos típicos ou nominados, desde que identifiquem o nomen iure desse contrato.
A liberdade contratual estende-se ainda à possibilidade de as partes poderem acoplar num único contrato regras atinentes a dois contratos nominados, tornando-se o seu contrato atípico ou misto, desde que conforme a disposição supra, seja dentro das barreiras da Lei.
Esta limitação à liberdade contratual, do ponto de vista objectivo, visa manter a ordem pública e os bons costumes não feridos (artigos 280º e 282º do CC). Subjectivamente, esta limitação impõe sobre as partes a obrigatoriedade de, nos preliminares, na contratação e na execução do contrato, se pautarem pelo princípio da bonna fide (artigo 762º n.º 2). Aliás, nenhum princípio é absoluto ou ilimitado, o mesmo sofrerá influências, concorrência ou ainda imposição de outros princípios.
A consagração da boa-fé corresponde a cedência pela Direito da entrada de normas de trato social no âmbito jurídico, que também se encontram subjacentes aos actuais sistemas de Estado de Direito Social. Podemos afirmar que o princípio da boa-fé na autonomia privada apresenta-se como o critério normativo em sentido objectivo. É um conjunto de regras de conduta que os contraentes esperam que sejam comummente adoptadas para o alcance do fim contratual.
A esta liberdade contratual existe ainda a limitação resultante do princípio do numerus clausus ou princípio da tipicidade dos direitos reais, onde as partes, ainda que protegidas pela autonomia privada, não podem alterar por contrato as características dos direitos reais tipificados pela lei e nem podem criar, por meio de contrato, outros contratos tipos.
Como reguladora, a boa-fé contratual é ela que determina o âmbito da vinculação negocial. Assim, a boa-fé está presente desde o início, permanece durante a vida do contrato e mesmo após fim do mesmo ela continua com vida.
Deste modo, o negócio jurídico constitui a manifestação autêntica do princípio da autonomia privada reconhecido aos contraentes para a auto-regulamentação dos seus interesses, constituindo, modificando ou extinguindo situações jurídicas a eles inerentes. A autonomia privada não se circunscreve apenas à liberdade de contratar, mas encerra também o poder de não exercer os direitos, entre eles, o direito de abster-se de celebrar negócios jurídicos. Ou seja, no âmbito da autonomia privada ninguém é obrigado a celebrar contratos e, inversamente, ninguém é proibido de celebrar contratos, preenchidos os pressupostos legais.
O elemento que exterioriza a intenção ou o desejo de celebrar o negócio jurídico é a declaração, que é a vontade negocial, o comportamento exterior demonstrado para externar o conteúdo da vontade negocial e, via de consequência, realizar efeitos práticos com ânimos juridicamente tutelado.
Esta vontade de constituir negócio jurídico pode ser observada no seu aspecto subjectivo que é a vontade manifesta, ou ainda no seu aspecto objectivo, neste caso a declaração reveste o comportamento objectivo, uma certa aparência conducente a essa conclusão de desejo de contratar.
De facto, a autonomia privada, vista como poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento jurídico às partes, somente é válida se as suas disposições estiverem nos carris do direito. Entende-se que assim seja, por maioria de razão, dado que é o direito que legitima e valida esta actuação dos particulares.
Esta actuação deve ser verdadeiramente manifesta por meio de um comportamento declarativo, com conteúdo volitivo que exterioriza a vontade de constituir um negócio jurídico. Destarte, o negócio jurídico irá revestir a auto-ordenação da autonomia de vontade expressa por cada sujeito da relação. Nesta conformidade, o negócio jurídico será o cerne da autonomia da vontade ou autonomia privada.
Em sede de direito comparado, também no direito português, o princípio da liberdade contratual está em conexão necessária com as características de um sistema económico-social.
Conclusão
Em suma, podemos concluir que a autonomia privada está sempre correlacionada com a limitação à liberdade contratual (com as limitações supra elencadas) e, estando presente em vários sectores do direito civil, propõe-se a uma função de modelação da vida social, destacando-se o plano das relações patrimoniais e da troca de bens e serviços.
Está igualmente presente, embora com influência diminuta, no plano das relações familiares, e esta fraca presença deriva das várias imposições ou obrigações a que este sector está sujeito (v.g. proibição de venda de pais para filhos), onde o direito exerce mais a função protectora ou de defesa dos direitos ali constituídos e garantidos aos particulares.
A autonomia privada, na sua função modeladora, não autoritária, mas espontânea, coloca os seus intervenientes no mesmo plano de igualdade contratual.
Por fim, o ordenamento jurídico que admita, sem limitações, legais ou subjectivas, a autonomia privada, indubitavelmente, não acolherá uma justiça ou confiança contratual imanente e que seja assente em critérios objectivos, uma vez que a autonomia privada é a declaração máxima da consideração da personalidade do homem no que respeita ao arbítrio para a celebração de negócios jurídicos num plano de igualdade.