M&A em tempos de Covid-19
João Caldeira
Sócio de M&A da CMS
Rui Pena & Arnaut
Impacto da Covid-19 no mercado de transações
Em 2020, a atividade económica foi profundamente afetada pela pandemia Covid-19. Os efeitos negativos sentiram-se em todo o mundo, não obstante algumas diferenças em função das geografias. Em Portugal estima-se que o PIB terá decaído 8,1% em 2020. Os avanços e recuos verificados estão naturalmente ligados às sucessivas vagas epidémicas. Assim, no primeiro semestre do ano verificou-se uma queda de 17,3% no PIB (face ao ano de 2019), a que se seguiu uma rápida recuperação com um crescimento de 13,3% no PIB (em cadeia) no terceiro trimestre, prejudicado pelo surgimento de uma segunda vaga, que determinou uma queda de 1,8% no PIB (em cadeia) no quarto trimestre. As projeções feitas pelo Banco de Portugal em Dezembro apontam para uma recuperação da economia com um crescimento do PIB de 3,9% (em 2021), 4,5% (em 2022) e 2,4% em 2023. A recuperação será gradual, com avanços e recuos, que refletirão o relaxamento e a intensificação de medidas de contenção, diferenciada entre setores, sendo mais lenta nos setores do turismo, cultura e entretenimento. O controlo gradual da pandemia deverá permitir uma recuperação do PIB para níveis pré-pandemia no final de 2022. Estas projeções serão certamente revistas em baixa em função da terceira vaga que deverá ter tido um impacto bastante significativo no primeiro trimestre de 2021 (dados retirados do Boletim Económico de Dezembro de 2020 do Banco de Portugal).
O mercado de transações de empresas não é imune a todo este cenário, e, como tal, foi bastante prejudicado pela forma como a pandemia se repercutiu na economia, refletindo uma redução significativa quer do número quer do valor das transações, com uma quase paralisação no primeiro semestre do ano, que contrastou com uma animadora recuperação verificado no segundo semestre. As perspetivas para 2021 são de recuperação, mas a incerteza relacionada com o tempo necessário ao controlo da pandemia e os receios de novas vagas continuam a minar o ambiente transacional.
Perspetivas de futuro
A manutenção num futuro próximo de um clima de incerteza relativamente à evolução da economia e, consequentemente, à evolução das empresas que poderão ser transacionadas tenderá a influenciar negativamente o mercado transacional. É certo que decorreu cerca de um ano desde o início da pandemia. E, hoje, com base nos abundantes dados quantitativos e qualitativos disponíveis sobre a forma e extensão como a pandemia afetou a economia, a sociedade e, em particular as empresas, em geral e nos diversos setores, será possível antecipar com maior precisão os eventuais impactos futuros da evolução da pandemia, o que se traduz numa redução do nível de incerteza. Não obstante, o risco associado à incerteza manter-se-á a níveis relativamente altos no corrente ano e, possivelmente, em 2022. Compradores e vendedores de empresas continuarão inseguros quanto à razoabilidade dos termos e condições em que as empresas poderão ser transacionadas. Os compradores terão receio de pagar preços excessivos, de ter que lidar no curto prazo com deteriorações de EBITDA, dívida financeira líquida ou fundo de maneio, e os vendedores de receber preços abaixo do valor de mercado ou de virem a ser penalizados pela evolução de determinados índices de desempenho.
Muito embora se reconheça que a persistência de riscos associados à pandemia possa constituir um fator negativo para o mercado de transações, deve assinalar-se que estão à disposição dos intervenientes no mercado diversas soluções e ferramentas que permitem regular o risco em causa, viabilizando a concretização de transações em termos satisfatórios para compradores e vendedores. Aludiremos de forma breve a dois instrumentos: às cláusulas que regulam as alterações materialmente adversas (“Material Adverse Change” ou “MAC”); e às cláusulas de ajustamento de preço (“earn-outs”).
Cláusulas MAC
Um dos riscos a que o comprador fica sujeito é o da alteração de condições relevantes para a transação no período compreendido entre a assunção do compromisso de comprar a empresa e a concretização da transação, designadamente a deterioração da situação da empresa ou das condições de financiamento da transação, sendo que este período existirá em regra para que seja possível a verificação de condições a que fica sujeita a transação, como seja controlo de concorrência, controlo regulatório, obtenção de financiamentos e outras.
O risco em causa é tipicamente endereçado pelas cláusulas que regulam as alterações materialmente adversas (“Material Adverse Change” ou “MAC”). Usualmente, estas cláusulas, por referência à verificação superveniente de determinados eventos que afetam substancial e negativamente a situação das empresas ou as condições de financiamento da transação, conferem ao comprador o direito de resolver o contrato de compra e venda da empresa ou o direito de desencadear algum mecanismo de ajuste de preço.
O funcionamento e a aplicação destas cláusulas está em regra dependente: (i) da verificação dos eventos previstos, que poderão ser definidos de forma mais ou menos abrangente, cuja verificação é normalmente imprevisível, mas que poderá ser previsível, desde que se mantenha a imprevisibilidade relativamente às consequências da respetiva verificação; (ii) da materialidade das consequências, sendo possível manter o conceito em aberto ou densificá-lo recorrendo a diversas e quantificadas métricas financeiras (v.g. variações percentuais de vendas, custos, EBITDA); (iii) durabilidade das consequências adversas, já que uma deterioração da situação da empresa muito limitada no tempo, rapidamente ultrapassável, não deverá legitimar a resolução da compra e venda da empresa.
Mas se esta é a regra, o princípio da autonomia privada permitirá uma construção de cláusula MAC ajustada à pandemia Covid-19, não afetando a validade dessa cláusula a circunstância de ser previsível que possam ocorrer novas vagas ou a adoção de medidas de contenção adicionais com impacto económico (geral ou em setores específicos). De igual modo, conforme ao princípio da autonomia privada serão cláusulas MAC que atribuam relevância a novas vagas que possam vir a ocorrer, ainda que limitadas no tempo, a medidas de contenção mais restritivas, ainda que de menor duração, ou cuja aplicação não seja prejudicada pela maior ou menor rapidez na recuperabilidade do desempenho das empresas. Em suma, a cláusula MAC poderá ser calibrada de molde a que o comprador não tenha que correr demasiado riscos associados ao prolongamento da crise pandémica, assegurando-se, por outro lado, que o vendedor não fique demasiado exposto a uma não conclusão da transação.
Cláusulas de ajustamento de preço – Earn-outs
Subsiste o risco de a crise pandémica se prolongar no tempo para além do que tem vindo a ser previsto e de a recuperação económica não se verificar em 2021 (e de a recuperação económica para os níveis pré-pandémicos não ser atingida em finais de 2022) e muito para além da conclusão da transação. O comprador necessita de se proteger deste risco e pretenderá refletir no preço um pior desempenho da empresa após a compra que seja provocado por novas vagas pandémicas, ao mesmo tempo que o vendedor não quererá por essa razão ser penalizado no preço, pelo menos significativamente.
A regulação destes interesses divergentes é comummente assegurada pelas cláusulas que consagram earn-outs. Estas cláusulas preveem que o preço inicialmente fixado seja ajustado, negativa ou positivamente, em função do desempenho da empresa num período após a compra e venda que poderá ser mais ou menos longo, tipicamente entre um e três anos. O desempenho da empresa no período relevante será medido em função de diversos índices financeiros, designadamente variação de vendas, EBITDA e dívida financeira líquida, sendo importante assegurar que as métricas relevantes não permitam manipulações que possam originar disputas futuras. A disponibilidade do vendedor para aceitar cláusulas deste tipo será maior caso este mantenha algum envolvimento na gestão da empresa após a venda ou lhe sejam assegurados mecanismos de informação e/ou controlo sobre a gestão da empresa que passa para o comprador ou, ainda, sejam previstas limitações à prática de atos de gestão que possam dificultar um equilibrado funcionamento do earn-out. O ajustamento ao preço ficará dependente de a empresa atingir um ou mais níveis de desempenho financeiro, podendo assumir a natureza de um “tudo ou nada”, caso em que o ajustamento será realizado apenas se for atingida a meta única ou admitir variações do preço em função de diversos níveis quantitativos de desempenho que poderão ser atingidos (solução mais flexível).
As cláusulas de earn-out poderão ser desenhados de formas muito diversas e poderá ser feito um esforço de adequação às questões e riscos suscitados pelo Covid-19, designadamente através da extensão do período relevante para medir o desempenho financeiro da empresa, da concessão de maior ponderação ao desempenho da empresa no período relevante em que já tenha sido atingida uma normalidade pós Covid-19 e neutralizando, tornando irrelevante para cálculo do earn-out, os impactos no desempenho da empresa decorrentes do Covid-19.
Em suma, a adequada utilização de cláusulas MAC e de cláusulas de ajustamento de preço do tipo earn-out poderão permitir uma equilibrada distribuição de risco e viabilizar a concretização de muitas transações que de outra forma seriam adiadas no ambiente de incerteza provocado pela pandemia Covid-19.
Em 2020, a atividade económica foi profundamente afetada pela pandemia Covid-19. Os efeitos negativos sentiram-se em todo o mundo, não obstante algumas diferenças em função das geografias. Em Portugal estima-se que o PIB terá decaído 8,1% em 2020. Os avanços e recuos verificados estão naturalmente ligados às sucessivas vagas epidémicas. Assim, no primeiro semestre do ano verificou-se uma queda de 17,3% no PIB (face ao ano de 2019), a que se seguiu uma rápida recuperação com um crescimento de 13,3% no PIB (em cadeia) no terceiro trimestre, prejudicado pelo surgimento de uma segunda vaga, que determinou uma queda de 1,8% no PIB (em cadeia) no quarto trimestre. As projeções feitas pelo Banco de Portugal em Dezembro apontam para uma recuperação da economia com um crescimento do PIB de 3,9% (em 2021), 4,5% (em 2022) e 2,4% em 2023. A recuperação será gradual, com avanços e recuos, que refletirão o relaxamento e a intensificação de medidas de contenção, diferenciada entre setores, sendo mais lenta nos setores do turismo, cultura e entretenimento. O controlo gradual da pandemia deverá permitir uma recuperação do PIB para níveis pré-pandemia no final de 2022. Estas projeções serão certamente revistas em baixa em função da terceira vaga que deverá ter tido um impacto bastante significativo no primeiro trimestre de 2021 (dados retirados do Boletim Económico de Dezembro de 2020 do Banco de Portugal).
O mercado de transações de empresas não é imune a todo este cenário, e, como tal, foi bastante prejudicado pela forma como a pandemia se repercutiu na economia, refletindo uma redução significativa quer do número quer do valor das transações, com uma quase paralisação no primeiro semestre do ano, que contrastou com uma animadora recuperação verificado no segundo semestre. As perspetivas para 2021 são de recuperação, mas a incerteza relacionada com o tempo necessário ao controlo da pandemia e os receios de novas vagas continuam a minar o ambiente transacional.
Perspetivas de futuro
A manutenção num futuro próximo de um clima de incerteza relativamente à evolução da economia e, consequentemente, à evolução das empresas que poderão ser transacionadas tenderá a influenciar negativamente o mercado transacional. É certo que decorreu cerca de um ano desde o início da pandemia. E, hoje, com base nos abundantes dados quantitativos e qualitativos disponíveis sobre a forma e extensão como a pandemia afetou a economia, a sociedade e, em particular as empresas, em geral e nos diversos setores, será possível antecipar com maior precisão os eventuais impactos futuros da evolução da pandemia, o que se traduz numa redução do nível de incerteza. Não obstante, o risco associado à incerteza manter-se-á a níveis relativamente altos no corrente ano e, possivelmente, em 2022. Compradores e vendedores de empresas continuarão inseguros quanto à razoabilidade dos termos e condições em que as empresas poderão ser transacionadas. Os compradores terão receio de pagar preços excessivos, de ter que lidar no curto prazo com deteriorações de EBITDA, dívida financeira líquida ou fundo de maneio, e os vendedores de receber preços abaixo do valor de mercado ou de virem a ser penalizados pela evolução de determinados índices de desempenho.
Muito embora se reconheça que a persistência de riscos associados à pandemia possa constituir um fator negativo para o mercado de transações, deve assinalar-se que estão à disposição dos intervenientes no mercado diversas soluções e ferramentas que permitem regular o risco em causa, viabilizando a concretização de transações em termos satisfatórios para compradores e vendedores. Aludiremos de forma breve a dois instrumentos: às cláusulas que regulam as alterações materialmente adversas (“Material Adverse Change” ou “MAC”); e às cláusulas de ajustamento de preço (“earn-outs”).
Cláusulas MAC
Um dos riscos a que o comprador fica sujeito é o da alteração de condições relevantes para a transação no período compreendido entre a assunção do compromisso de comprar a empresa e a concretização da transação, designadamente a deterioração da situação da empresa ou das condições de financiamento da transação, sendo que este período existirá em regra para que seja possível a verificação de condições a que fica sujeita a transação, como seja controlo de concorrência, controlo regulatório, obtenção de financiamentos e outras.
O risco em causa é tipicamente endereçado pelas cláusulas que regulam as alterações materialmente adversas (“Material Adverse Change” ou “MAC”). Usualmente, estas cláusulas, por referência à verificação superveniente de determinados eventos que afetam substancial e negativamente a situação das empresas ou as condições de financiamento da transação, conferem ao comprador o direito de resolver o contrato de compra e venda da empresa ou o direito de desencadear algum mecanismo de ajuste de preço.
O funcionamento e a aplicação destas cláusulas está em regra dependente: (i) da verificação dos eventos previstos, que poderão ser definidos de forma mais ou menos abrangente, cuja verificação é normalmente imprevisível, mas que poderá ser previsível, desde que se mantenha a imprevisibilidade relativamente às consequências da respetiva verificação; (ii) da materialidade das consequências, sendo possível manter o conceito em aberto ou densificá-lo recorrendo a diversas e quantificadas métricas financeiras (v.g. variações percentuais de vendas, custos, EBITDA); (iii) durabilidade das consequências adversas, já que uma deterioração da situação da empresa muito limitada no tempo, rapidamente ultrapassável, não deverá legitimar a resolução da compra e venda da empresa.
Mas se esta é a regra, o princípio da autonomia privada permitirá uma construção de cláusula MAC ajustada à pandemia Covid-19, não afetando a validade dessa cláusula a circunstância de ser previsível que possam ocorrer novas vagas ou a adoção de medidas de contenção adicionais com impacto económico (geral ou em setores específicos). De igual modo, conforme ao princípio da autonomia privada serão cláusulas MAC que atribuam relevância a novas vagas que possam vir a ocorrer, ainda que limitadas no tempo, a medidas de contenção mais restritivas, ainda que de menor duração, ou cuja aplicação não seja prejudicada pela maior ou menor rapidez na recuperabilidade do desempenho das empresas. Em suma, a cláusula MAC poderá ser calibrada de molde a que o comprador não tenha que correr demasiado riscos associados ao prolongamento da crise pandémica, assegurando-se, por outro lado, que o vendedor não fique demasiado exposto a uma não conclusão da transação.
Cláusulas de ajustamento de preço – Earn-outs
Subsiste o risco de a crise pandémica se prolongar no tempo para além do que tem vindo a ser previsto e de a recuperação económica não se verificar em 2021 (e de a recuperação económica para os níveis pré-pandémicos não ser atingida em finais de 2022) e muito para além da conclusão da transação. O comprador necessita de se proteger deste risco e pretenderá refletir no preço um pior desempenho da empresa após a compra que seja provocado por novas vagas pandémicas, ao mesmo tempo que o vendedor não quererá por essa razão ser penalizado no preço, pelo menos significativamente.
A regulação destes interesses divergentes é comummente assegurada pelas cláusulas que consagram earn-outs. Estas cláusulas preveem que o preço inicialmente fixado seja ajustado, negativa ou positivamente, em função do desempenho da empresa num período após a compra e venda que poderá ser mais ou menos longo, tipicamente entre um e três anos. O desempenho da empresa no período relevante será medido em função de diversos índices financeiros, designadamente variação de vendas, EBITDA e dívida financeira líquida, sendo importante assegurar que as métricas relevantes não permitam manipulações que possam originar disputas futuras. A disponibilidade do vendedor para aceitar cláusulas deste tipo será maior caso este mantenha algum envolvimento na gestão da empresa após a venda ou lhe sejam assegurados mecanismos de informação e/ou controlo sobre a gestão da empresa que passa para o comprador ou, ainda, sejam previstas limitações à prática de atos de gestão que possam dificultar um equilibrado funcionamento do earn-out. O ajustamento ao preço ficará dependente de a empresa atingir um ou mais níveis de desempenho financeiro, podendo assumir a natureza de um “tudo ou nada”, caso em que o ajustamento será realizado apenas se for atingida a meta única ou admitir variações do preço em função de diversos níveis quantitativos de desempenho que poderão ser atingidos (solução mais flexível).
As cláusulas de earn-out poderão ser desenhados de formas muito diversas e poderá ser feito um esforço de adequação às questões e riscos suscitados pelo Covid-19, designadamente através da extensão do período relevante para medir o desempenho financeiro da empresa, da concessão de maior ponderação ao desempenho da empresa no período relevante em que já tenha sido atingida uma normalidade pós Covid-19 e neutralizando, tornando irrelevante para cálculo do earn-out, os impactos no desempenho da empresa decorrentes do Covid-19.
Em suma, a adequada utilização de cláusulas MAC e de cláusulas de ajustamento de preço do tipo earn-out poderão permitir uma equilibrada distribuição de risco e viabilizar a concretização de muitas transações que de outra forma seriam adiadas no ambiente de incerteza provocado pela pandemia Covid-19.