O trabalho nas plataformas digitais
João Leal Amado
Professor Catedrático
da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra
As profundas mudanças registadas, nos últimos anos, na forma de trabalhar e nos modos de prestar serviços interpelam, crescentemente, o Direito do Trabalho. Em particular, o trabalho prestado com recurso a plataformas digitais, seja a que nos proporciona uma alternativa de transporte ao clássico táxi, seja a que nos permite encomendar a refeição através de uma cómoda app, tem colocado questões delicadas, a primeira das quais consiste, claro, na qualificação da relação que se estabelece entre a empresa que opera na plataforma digital (a Glovo, a Uber, etc.) e os respetivos prestadores de serviços, aqueles que transportam os clientes ao seu destino (os motoristas) ou que lhes levam a casa a refeição (os “estafetas”).
O Direito do Trabalho foi um produto tardio da 1.ª Revolução Industrial, nasceu num ambiente fabril e a pensar na situação dos operários, assumiu-se como “direito do contrato de trabalho”, um contrato marcado pela nota da subordinação. É sabido, contudo, que a subordinação jurídica constitui uma noção de geometria variável, que comporta uma extensa escala gradativa. E, ao longo do séc. XX, no trânsito da sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial, em que o setor dos serviços foi destronando a fábrica, foi-se verificando uma flexibilização da subordinação. Esta não desapareceu, mas as formas de exercício dos poderes da entidade empregadora foram-se tornando mais dúcteis e menos ostensivas. A subordinação jurídica comporta, com efeito, graus distintos, tanto podendo ser muito intensa e constante como exprimir-se em moldes bastante ténues. De resto, não é, talvez, por acaso, que as próprias noções legais de contrato de trabalho, vertidas no art. 1152.º do Código Civil e no art. 11.º do Código do Trabalho, não coincidem por completo, deixando agora de se falar na prestação de atividade sob a direção do empregador, mas sim no âmbito de organização deste.
Ora, as apps, ao permitirem novas formas de prestar serviços, de colocar em contacto a oferta e a procura, representam, sem dúvida, um desafio emergente. Afinal, os serviços fornecidos on demand via apps relevam para o Direito do Trabalho, situando-se dentro das fronteiras deste ramo do ordenamento? Ou quem presta tais serviços são trabalhadores independentes, são, quiçá, microempresários, cuja atividade já está para além das fronteiras do direito laboral?
Recentemente, na vizinha Espanha, o Tribunal Supremo proferiu uma decisão especialmente importante a este respeito, versando sobre o estatuto de um rider/estafeta da Glovo. Uma sentença paradigmática, proferida em 25/09/2020, em que o Supremo reconheceu a existência de uma relação de trabalho subordinado entre o rider e a Glovo. Em síntese, o tribunal afirmou que:
• A Glovo não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre estabelecimentos comerciais e estafetas; não se limita a prestar um serviço eletrónico de intermediação, consistente em pôr em contacto consumidores (os clientes) e autênticos trabalhadores autónomos, antes realiza também uma atividade de coordenação e organização do serviço produtivo;
• Trata-se de uma empresa que presta serviços de transporte e entrega de mercadorias, fixando o preço e as condições de pagamento do serviço, bem como as condições essenciais para a prestação de tais serviços; e é titular dos ativos essenciais para a realização da atividade;
• Para isso utiliza riders que não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma, os quais prestam o seu serviço inseridos na organização de trabalho do empregador, submetidos à direção e organização da plataforma, como o demonstra o facto de a Glovo estabelecer todos os aspetos relativos à forma e preço do serviço de recolha e entrega de tais produtos;
• Ou seja, tanto a forma de prestação do serviço como o seu preço e modo de pagamento são estabelecidos pela Glovo; a empresa emite instruções que lhe permitem controlar o processo produtivo e instituiu meios de controlo que incidem sobre a atividade e não apenas sobre o resultado, mediante a gestão algorítmica do serviço, as avaliações dos riders e a geolocalização constante;
• O rider nem organiza por si só a atividade produtiva, nem negoceia preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que serve, nem recebe dos clientes finais a sua retribuição;
• Para prestar os serviços, a Glovo serve-se de um programa informático que atribui os pedidos em função da avaliação de cada rider, o que condiciona decisivamente a teórica liberdade de escolha de horários e de recusa de tais pedidos; ademais, a Glovo desfruta de poderes para sancionar os seus riders por uma pluralidade de condutas diferentes, o que é uma típica manifestação da autoridade do empregador;
• Através da plataforma digital, a Glovo leva a cabo um controlo em tempo real da prestação do serviço em causa, sem que o rider possa realizar a sua tarefa desvinculado da referida plataforma; devido a isso, o rider goza de uma autonomia muito limitada, que apenas abrange questões secundárias (que meio de transporte utiliza e que rota segue para realizar a entrega).
É certo que a margem de liberdade operacional do rider é maior do que aquela de que dispunha o operário da velha fábrica fordista: o rider não parece estar sujeito a um dever de assiduidade e pontualidade (ele não tem de estar sempre disponível, pode escolher as faixas horárias em que estará pronto a prestar serviço, pode até recusar certos serviços em concreto), nem está sujeito a um dever de não concorrência (pode trabalhar para vários operadores de plataforma, prestando o mesmo tipo de serviços a empresas concorrentes), ele utiliza instrumentos de trabalho próprios (o carro, a motorizada, a bicicleta, o smartphone)… Ainda assim, os traços indiciadores de dependência são muito fortes e vincados: o estafeta (tal como, de resto, o motorista) não tem clientes, quem os tem é a Glovo, é esta que contacta com o mercado; os estafetas trabalham sob a marca Glovo, estão sujeitos a diversas formas de controlo e avaliação algorítmica por parte da Glovo, sendo esta que fixa os preços do serviço, etc.
Em matéria de qualificação, tudo dependerá, como é óbvio, das circunstâncias concretas de cada relação, de cada contrato, dos direitos e obrigações das partes, da dinâmica relacional que entre elas se estabeleça. Mas sublinhamos: a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital.
Em suma, cremos que tudo estará em o Direito do Trabalho acolher estes novos prestadores de serviços via apps no seu seio, procedendo à devida adaptação regimental, isto é, construindo um regime laboral calibrado e ajustado às características destas novas formas de prestar serviços. Porque, convenhamos, ao olhar para um qualquer estafeta, daqueles que percorrem velozmente as ruas nas suas motos (ou, mais lentamente, pedalando nas suas bicicletas), creio que nenhum de nós se convence, seriamente, de que ali vai um empresário…
Não. Ali vai, motorizado ou pedalando, um trabalhador dependente, um trabalhador do séc. XXI, diferente, decerto, dos seus pais, avós ou bisavós, mas, afinal, ainda um trabalhador dependente. Se estas novas formas de prestar trabalho, criadas pela fantástica evolução da tecnologia, podem constituir uma terra de grandes oportunidades, não cremos que tal terra deva ser uma terra sem lei, máxime sem lei laboral. Seria até uma traição à missão histórica do Direito do Trabalho que este construísse – ou que este deixasse que se construísse – um muro conceptual e mantivesse aqueles (motoristas, estafetas, etc.) lá fora, do outro lado do muro.
Mais recentemente ainda, a 19/02/2021, o Supreme Court do Reino Unido proferiu uma importante decisão, na qual, uma vez mais, os tribunais britânicos rejeitaram a tese de que os motoristas da Uber devam ser tidos como self-employed independent contractors, classificando-os, antes, como autênticos workers. Segundo o Supremo Tribunal, não é a Uber que trabalha para os seus motoristas, a inversa é que é verdadeira: a Uber é uma empresa que explora um negócio de transportes (a Uber não é uma mera technology company, não é uma mera plataforma digital que preste serviços de intermediação, antes está no mercado para fornecer serviços de transporte) e os motoristas disponibilizam a mão-de-obra especializada através da qual a empresa fornece os seus serviços ao público e aufere os seus lucros; o contrato central entre o motorista e a Uber consiste em aquele, mediante remuneração, se disponibilizar para transportar os passageiros para os seus destinos; o acordo entre as partes localiza-se no campo das relações de trabalho dependente, não sendo um contrato entre iguais celebrado por duas organizações empresariais independentes, sendo que os motoristas não contactam diretamente com o mercado, antes são recrutados pela Uber para trabalharem e nesta se integrarem como componentes da respetiva organização. Em suma, os motoristas desenvolvem a sua atividade para a marca Uber, vale dizer, eles não são trabalhadores por conta própria ou microempresários que contactem com o mercado, que laborem para uma clientela indeterminada, pelo contrário, os seus clientes são pessoas indicadas pela Uber.
Vale a pena recapitular o essencial da argumentação expendida pelo Supreme Court: a remuneração paga aos motoristas pelo trabalho é fixada pela Uber e os motoristas não têm qualquer palavra a dizer quanto a isto (salvo, claro, ao decidirem quando trabalhar e quanto trabalho prestam); as condições contratuais ao abrigo das quais aqueles prestam os seus serviços são ditadas pela Uber; muito embora os motoristas tenham, em abstrato, liberdade para escolher quando trabalham, a verdade é que, a partir do momento em que um motorista se conecte, através da app da Uber, a sua margem de liberdade efetiva quanto à aceitação dos pedidos encontra-se, de facto, muito condicionada pela Uber; a Uber exerce um controlo muito significativo sobre a forma como os motoristas executam os seus serviços (através da tecnologia utilizada e, bem assim, através dos sistemas de avaliação da performance do motorista, que podem, no limite, levar à sua “desativação”); a Uber restringe a comunicação entre o passageiro e o motorista ao mínimo indispensável para realizar o serviço de transporte em causa e toma medidas em ordem a impedir os motoristas de estabelecerem qualquer relação com o passageiro que possa estender-se para além daquela concreta corrida.
Em suma, no caso em apreço o tribunal não teve dúvidas de que os motoristas da Uber eram workers e não genuínos independent contractors. Aqueles estão, em relação à Uber, numa situação de subordinação ou, ao menos, de “parassubordinação”.
A este propósito, importa concluir com uma nota otimista. Entre nós, o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho traça, nesta matéria, uma linha de rumo promissora. Com efeito, nele encontram-se, como linhas de reflexão para as políticas públicas em matéria de plataformas digitais, pontos que devem ser registados, sublinhados e aplaudidos: criar uma presunção de laboralidade, adaptada às novas formas de prestar trabalho via apps; vincar que o facto de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios ou não estar sujeito a certos deveres inerentes à relação laboral tradicional não obsta, por si só, à existência de trabalho subordinado; e, last but not least, afirmar que poderá existir uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital – tudo isto nos parece corresponder a premissas muito acertadas na abordagem destas questões. Veremos o que o futuro nos reserva.
O Direito do Trabalho foi um produto tardio da 1.ª Revolução Industrial, nasceu num ambiente fabril e a pensar na situação dos operários, assumiu-se como “direito do contrato de trabalho”, um contrato marcado pela nota da subordinação. É sabido, contudo, que a subordinação jurídica constitui uma noção de geometria variável, que comporta uma extensa escala gradativa. E, ao longo do séc. XX, no trânsito da sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial, em que o setor dos serviços foi destronando a fábrica, foi-se verificando uma flexibilização da subordinação. Esta não desapareceu, mas as formas de exercício dos poderes da entidade empregadora foram-se tornando mais dúcteis e menos ostensivas. A subordinação jurídica comporta, com efeito, graus distintos, tanto podendo ser muito intensa e constante como exprimir-se em moldes bastante ténues. De resto, não é, talvez, por acaso, que as próprias noções legais de contrato de trabalho, vertidas no art. 1152.º do Código Civil e no art. 11.º do Código do Trabalho, não coincidem por completo, deixando agora de se falar na prestação de atividade sob a direção do empregador, mas sim no âmbito de organização deste.
Ora, as apps, ao permitirem novas formas de prestar serviços, de colocar em contacto a oferta e a procura, representam, sem dúvida, um desafio emergente. Afinal, os serviços fornecidos on demand via apps relevam para o Direito do Trabalho, situando-se dentro das fronteiras deste ramo do ordenamento? Ou quem presta tais serviços são trabalhadores independentes, são, quiçá, microempresários, cuja atividade já está para além das fronteiras do direito laboral?
Recentemente, na vizinha Espanha, o Tribunal Supremo proferiu uma decisão especialmente importante a este respeito, versando sobre o estatuto de um rider/estafeta da Glovo. Uma sentença paradigmática, proferida em 25/09/2020, em que o Supremo reconheceu a existência de uma relação de trabalho subordinado entre o rider e a Glovo. Em síntese, o tribunal afirmou que:
• A Glovo não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre estabelecimentos comerciais e estafetas; não se limita a prestar um serviço eletrónico de intermediação, consistente em pôr em contacto consumidores (os clientes) e autênticos trabalhadores autónomos, antes realiza também uma atividade de coordenação e organização do serviço produtivo;
• Trata-se de uma empresa que presta serviços de transporte e entrega de mercadorias, fixando o preço e as condições de pagamento do serviço, bem como as condições essenciais para a prestação de tais serviços; e é titular dos ativos essenciais para a realização da atividade;
• Para isso utiliza riders que não dispõem de uma organização empresarial própria e autónoma, os quais prestam o seu serviço inseridos na organização de trabalho do empregador, submetidos à direção e organização da plataforma, como o demonstra o facto de a Glovo estabelecer todos os aspetos relativos à forma e preço do serviço de recolha e entrega de tais produtos;
• Ou seja, tanto a forma de prestação do serviço como o seu preço e modo de pagamento são estabelecidos pela Glovo; a empresa emite instruções que lhe permitem controlar o processo produtivo e instituiu meios de controlo que incidem sobre a atividade e não apenas sobre o resultado, mediante a gestão algorítmica do serviço, as avaliações dos riders e a geolocalização constante;
• O rider nem organiza por si só a atividade produtiva, nem negoceia preços ou condições com os titulares dos estabelecimentos que serve, nem recebe dos clientes finais a sua retribuição;
• Para prestar os serviços, a Glovo serve-se de um programa informático que atribui os pedidos em função da avaliação de cada rider, o que condiciona decisivamente a teórica liberdade de escolha de horários e de recusa de tais pedidos; ademais, a Glovo desfruta de poderes para sancionar os seus riders por uma pluralidade de condutas diferentes, o que é uma típica manifestação da autoridade do empregador;
• Através da plataforma digital, a Glovo leva a cabo um controlo em tempo real da prestação do serviço em causa, sem que o rider possa realizar a sua tarefa desvinculado da referida plataforma; devido a isso, o rider goza de uma autonomia muito limitada, que apenas abrange questões secundárias (que meio de transporte utiliza e que rota segue para realizar a entrega).
É certo que a margem de liberdade operacional do rider é maior do que aquela de que dispunha o operário da velha fábrica fordista: o rider não parece estar sujeito a um dever de assiduidade e pontualidade (ele não tem de estar sempre disponível, pode escolher as faixas horárias em que estará pronto a prestar serviço, pode até recusar certos serviços em concreto), nem está sujeito a um dever de não concorrência (pode trabalhar para vários operadores de plataforma, prestando o mesmo tipo de serviços a empresas concorrentes), ele utiliza instrumentos de trabalho próprios (o carro, a motorizada, a bicicleta, o smartphone)… Ainda assim, os traços indiciadores de dependência são muito fortes e vincados: o estafeta (tal como, de resto, o motorista) não tem clientes, quem os tem é a Glovo, é esta que contacta com o mercado; os estafetas trabalham sob a marca Glovo, estão sujeitos a diversas formas de controlo e avaliação algorítmica por parte da Glovo, sendo esta que fixa os preços do serviço, etc.
Em matéria de qualificação, tudo dependerá, como é óbvio, das circunstâncias concretas de cada relação, de cada contrato, dos direitos e obrigações das partes, da dinâmica relacional que entre elas se estabeleça. Mas sublinhamos: a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital.
Em suma, cremos que tudo estará em o Direito do Trabalho acolher estes novos prestadores de serviços via apps no seu seio, procedendo à devida adaptação regimental, isto é, construindo um regime laboral calibrado e ajustado às características destas novas formas de prestar serviços. Porque, convenhamos, ao olhar para um qualquer estafeta, daqueles que percorrem velozmente as ruas nas suas motos (ou, mais lentamente, pedalando nas suas bicicletas), creio que nenhum de nós se convence, seriamente, de que ali vai um empresário…
Não. Ali vai, motorizado ou pedalando, um trabalhador dependente, um trabalhador do séc. XXI, diferente, decerto, dos seus pais, avós ou bisavós, mas, afinal, ainda um trabalhador dependente. Se estas novas formas de prestar trabalho, criadas pela fantástica evolução da tecnologia, podem constituir uma terra de grandes oportunidades, não cremos que tal terra deva ser uma terra sem lei, máxime sem lei laboral. Seria até uma traição à missão histórica do Direito do Trabalho que este construísse – ou que este deixasse que se construísse – um muro conceptual e mantivesse aqueles (motoristas, estafetas, etc.) lá fora, do outro lado do muro.
Mais recentemente ainda, a 19/02/2021, o Supreme Court do Reino Unido proferiu uma importante decisão, na qual, uma vez mais, os tribunais britânicos rejeitaram a tese de que os motoristas da Uber devam ser tidos como self-employed independent contractors, classificando-os, antes, como autênticos workers. Segundo o Supremo Tribunal, não é a Uber que trabalha para os seus motoristas, a inversa é que é verdadeira: a Uber é uma empresa que explora um negócio de transportes (a Uber não é uma mera technology company, não é uma mera plataforma digital que preste serviços de intermediação, antes está no mercado para fornecer serviços de transporte) e os motoristas disponibilizam a mão-de-obra especializada através da qual a empresa fornece os seus serviços ao público e aufere os seus lucros; o contrato central entre o motorista e a Uber consiste em aquele, mediante remuneração, se disponibilizar para transportar os passageiros para os seus destinos; o acordo entre as partes localiza-se no campo das relações de trabalho dependente, não sendo um contrato entre iguais celebrado por duas organizações empresariais independentes, sendo que os motoristas não contactam diretamente com o mercado, antes são recrutados pela Uber para trabalharem e nesta se integrarem como componentes da respetiva organização. Em suma, os motoristas desenvolvem a sua atividade para a marca Uber, vale dizer, eles não são trabalhadores por conta própria ou microempresários que contactem com o mercado, que laborem para uma clientela indeterminada, pelo contrário, os seus clientes são pessoas indicadas pela Uber.
Vale a pena recapitular o essencial da argumentação expendida pelo Supreme Court: a remuneração paga aos motoristas pelo trabalho é fixada pela Uber e os motoristas não têm qualquer palavra a dizer quanto a isto (salvo, claro, ao decidirem quando trabalhar e quanto trabalho prestam); as condições contratuais ao abrigo das quais aqueles prestam os seus serviços são ditadas pela Uber; muito embora os motoristas tenham, em abstrato, liberdade para escolher quando trabalham, a verdade é que, a partir do momento em que um motorista se conecte, através da app da Uber, a sua margem de liberdade efetiva quanto à aceitação dos pedidos encontra-se, de facto, muito condicionada pela Uber; a Uber exerce um controlo muito significativo sobre a forma como os motoristas executam os seus serviços (através da tecnologia utilizada e, bem assim, através dos sistemas de avaliação da performance do motorista, que podem, no limite, levar à sua “desativação”); a Uber restringe a comunicação entre o passageiro e o motorista ao mínimo indispensável para realizar o serviço de transporte em causa e toma medidas em ordem a impedir os motoristas de estabelecerem qualquer relação com o passageiro que possa estender-se para além daquela concreta corrida.
Em suma, no caso em apreço o tribunal não teve dúvidas de que os motoristas da Uber eram workers e não genuínos independent contractors. Aqueles estão, em relação à Uber, numa situação de subordinação ou, ao menos, de “parassubordinação”.
A este propósito, importa concluir com uma nota otimista. Entre nós, o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho traça, nesta matéria, uma linha de rumo promissora. Com efeito, nele encontram-se, como linhas de reflexão para as políticas públicas em matéria de plataformas digitais, pontos que devem ser registados, sublinhados e aplaudidos: criar uma presunção de laboralidade, adaptada às novas formas de prestar trabalho via apps; vincar que o facto de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios ou não estar sujeito a certos deveres inerentes à relação laboral tradicional não obsta, por si só, à existência de trabalho subordinado; e, last but not least, afirmar que poderá existir uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital – tudo isto nos parece corresponder a premissas muito acertadas na abordagem destas questões. Veremos o que o futuro nos reserva.