É necessária a desburocratização profunda de todos os processos urbanísticos
As cidades geram 50% dos resíduos globais, consomem 75% da energia mundial e 80% das cidades representam mais de 80% do total de emissões de CO2 – afirma Fernanda Paula Oliveira. Em entrevista à “Vida Judiciária”, a professora de Direito da Universidade de Coimbra destaca a importância das cidades nas estratégias de sustentabilidade e defende “a desburocratização profunda de todos os processos urbanísticos, com particular relevo para os processos de planeamento, hoje em dia incompreensivelmente demasiado longos; e apostando numa administração urbanística municipal mais estratégica e mais ativa, que tome a iniciativa, articulando agentes, fazendo acontecer”.
Vida Judiciária – De forma a entendermos melhor as suas áreas de aplicação, como podemos distinguir o direito do ordenamento do território do direito urbanístico?
Fernanda Paula Oliveira – Distinguir direito do ordenamento do território (DOT) e direito do urbanismo (DU) implica distinguir as disciplinas sobre as quais esses “direitos” atuam: o ordenamento do território (OT) e o urbanismo. Nem sempre é fácil proceder a esta distinção, na medida em que se trata de duas disciplinas que têm muitos aspetos em comum, designadamente o facto de ambas terem o território como seu objeto precípuo. Assim, posso dizê-lo, o que os distingue é a forma como ambos percecionam o território.
De um modo simplista, posso afirmar que o OT (e o direito que dele se ocupa) se preocupa com as questões territoriais mais “macro”, olhando estas disciplinas para o território de uma forma global. É nas políticas de OT que se procede à espacialização (ou a definição dos critérios para tal) das várias políticas públicas setoriais, visando articulá-las entre si (o OT ocupa-se, por exemplo, com problemas como a localização física de aeroportos, de infraestruturas viárias e rodoviárias, de grandes centros logísticos, etc.). Esta disciplina tem, no entanto, preocupações mais amplas que a mera espacialização das atividades e políticas setoriais, já que é orientada por preocupações económicas, sociais, políticas e ambientais. Por isso a política de OT é também conhecida como a política de desenvolvimento regional, que tem como objetivo a correção de desequilíbrios territoriais, de modo a garantir, em última instância, a melhoria da qualidade de vida das populações.
Já o urbanismo tem, pelo menos para uma certa conceção, como objeto imediato a urbe ou a cidade em sentido lato sensu (i.e., os espaços urbanos), assumindo-se como uma política pública setorial que define os objetivos e os meios de intervenção no ordenamento racional das cidades. Faz sentido esta importância central que alguns autores conferem às cidades (ou, de forma mais ampla, aos espaços urbanos) no âmbito do urbanismo e do direito que o regula, se tivermos presente as previsões que vêm sendo feitas, que apontam que em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 70% (atualmente, já mais de metade da população vive em áreas urbanas), sendo certo que as cidades colocam um conjunto de dilemas para a resolução dos quais o direito tem de buscar resposta: por um lado, apresentam-se como territórios com grande riqueza e diversidade económica, ambiental, política e cultural; por outro lado, correspondem a territórios que geram pobreza e exclusão, contribuem para a depredação (e degradação) do meio ambiente, aceleram processos de segregação social e espacial (muitas vezes aliados a fenómenos migratórios) e de privatização dos bens comuns e do espaço público.
Esta conceção do urbanismo (e do direito que o regula) limitado aos problemas da urbe não tem sido, no entanto, consensual na doutrina.
Para uma parte dos autores, o direito do urbanismo integra as normas referentes à ocupação urbana do território, quer a mesma ocorra na cidade, entendida em temos tradicionais, quer fora desta: para esta conceção o direito do urbanismo regula toda (mas apenas a) utilização/ocupação urbanística do solo.
Para outros, ainda, a urbe não pode deixar de ser entendida no contexto em que se insere e nas relações que estabelece com outras áreas territoriais, designadamente com o espaço rural, pelo que o direito do urbanismo há de ser entendido como o conjunto das normas e dos institutos que disciplinam não apenas a expansão e renovação dos aglomerados populacionais, mas também o complexo das intervenções no solo e das formas de utilização do mesmo que dizem respeito às edificações, à valorização e proteção das belezas paisagísticas e dos parques naturais, à recuperação de centros históricos, etc. Uma conceção de direito do urbanismo como esta tem a dificuldade de estabelecer uma linha de fronteira clara entre ele e o DOT, distinção que assentava, tradicionalmente, no âmbito territorial de aplicação de cada um (o urbanismo, como local, o ordenamento do território como regional e nacional).
Esta dificuldade de distinção é, aliás, assumida, na nossa legislação. Veja-se, a título de exemplo, o facto de termos entre nós em vigor uma Lei de Bases que trata simultaneamente da política pública de OT e da política pública de urbanismo (a Lei n.º 31/2014, de 30 de maio), sem que, porém, proceda a uma distinção clara entre elas, preferindo, antes, acentuar a estrita relação que as liga.
Posso afirmar, em suma, procurando dar uma resposta mais imediata à questão colocada, que, dado o carácter mais amplo e abrangente do OT (e do DOT), o mais adequado é perspetivar-se o urbanismo e o DU como um prolongamento daquele, uma vez que que tem de ser enquadrado pelas opções e estratégias definidas pelo OT. Trata-se, no entanto, de dois setores do mundo jurídico que não podem ser tratados separadamente: não é possível entendermos os instrumentos de urbanismo se eles não forem enquadrados nas políticas e opções do OT, mas, por outro lado, não é possível compreendermos e avaliarmos a política de OT se não “descermos” a um dos setores mais importantes da sua concretização e operacionalização – o urbanismo.
VJ – Pode-se dizer que tem havido, nos últimos anos, uma evolução (e qual) nas questões com que se ocupa o direito do urbanismo?
FPO – Sim, não há dúvidas disso. Durante muitos anos, o direito do urbanismo em Portugal primou por ser um urbanismo de expansão urbana e, por outro lado, um urbanismo assente em decisões de ocupação do território tomadas pela Administração, a “reboque” de iniciativas do setor privado. De facto, a gestão urbanística do nosso território foi marcada por uma ausência de iniciativas públicas fundiárias (diretas, ou de dinamização de processos societários), tendo-se a administração municipal, na quase totalidade dos casos, limitado a aguardar as iniciativas privadas (em regra limitadas em termos territoriais), permitindo a sua realização desde que cumprissem o disposto nos instrumentos de planeamento. Instrumentos estes que continham amplas admissibilidades construtivas – solos urbanizáveis muito extensos –, não sujeitas a condicionantes ou programação, o que promoveu licenciamentos dispersos e desgarrados entre si. As consequências desta forma de gerir o território com os instrumentos do direito do urbanismo “tradicional” traduziram-se numa ocupação edificatória do território dominantemente desordenada: fragmentação e dispersão; construção nova e abandono do “velho”; especulação fundiária; insuficiente racionalidade coletiva no aproveitamento dos recursos ambientais, energéticos e financeiros.
Sentiu-se, por isso, a necessidade de se alterar o paradigma em que assentou o direito do urbanismo durante largos anos, alteração que consistiu em deixarmos de ter (ou, pelo menos, de ter dominantemente) um urbanismo de expansão, substituindo-o, por um lado, por um urbanismo de contenção e de colmatação dos perímetros urbanos – em que as necessidades urbanísticas são satisfeitas com a mobilização dos solos expectantes dentro dos perímetros urbanos – e, por outro lado, por um urbanismo de reabilitação urbana – com a utilização do edificado existente, precedida da sua requalificação e revitalização, bem como dos espaços públicos que os servem.
A legislação produzida entre nós tem vindo a incorporar estas novas tendências, sendo relevante referir, a este propósito, as alterações em matéria de classificação dos solos como urbanos (com o desaparecimento da categoria dos solos urbanizáveis) e a aprovação de um regime jurídico referente à reabilitação urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (já alterado por várias vezes), que assumiu, precisamente, a reabilitação urbana como um princípio ótimo para o desenvolvimento urbanístico, por permitir a consolidação e ocupação do já edificado, detendo, por isso, consequências positivas em termos urbanísticos (por impedir “o consumo” de novos espaços), financeiros (por promover a racionalização das infraestruturas e equipamentos existentes), ambientais e patrimoniais (em virtude da valorização do património construído e do ambiente urbano que potencia) e sociais (já que pode funcionar como mecanismo de identificação e integração sócio-cultural).
"Faltam regras próprias e específicas de segurança de edifícios e infraestruturas contra incêndios florestais"
VJ – Por falar em reabilitação urbana, o que é uma Área de Reabilitação Urbana (ARU)?
FPO – Trata-se de um conceito introduzido, precisamente, pelo regime jurídico da reabilitação urbana (RJRU), devendo ser referido, logo à partida, que a reabilitação urbana não é assumida, neste regime, como mero conjunto de intervenções imediatas no edificado e no espaço público, isto é, mero conjunto de operações de restauro, de beneficiação e/ou de modernização de edifícios avulsos, intervencionados um a um – normalmente em função das decisões dos respetivos proprietários, eventualmente aproveitando os instrumentos financeiros disponibilizados para o efeito pelo Estado ou pelo respetivo município – e de intervenções de melhoria dos espaços públicos (considerados apenas como “espaços entre os edifícios” ou como “espaços exteriores dos edifícios”).
Este regime assenta, antes, num conceito amplo de reabilitação urbana quer quanto ao objeto de intervenção - a cidade e não os edifícios – quer quanto aos objetivos que visa alcançar – não apenas urbanísticos, mas também económicos, sociais, patrimoniais, etc. Por isso o funcionamento deste regime assenta, essencialmente, na delimitação, pelas câmaras municipais, de áreas de reabilitação urbana (ARU) – áreas que, de acordo com a definição que delas é feita, são potencialmente extensíveis a todos os espaços urbanos (do centro às periferias), desde que os respetivos processos de degradação e declínio assim o justifiquem –, para as quais são aprovadas operações de reabilitação urbana (ORU) – conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana da ARU onde se integram –, acompanhados por uma estratégia de reabilitação urbana (se a ORU for simples) ou por um programa estratégico de reabilitação (se a ORU for sistemática).
Refira-se que a reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana pressupõe sempre e imprescindivelmente uma decisão complexa que integra: (a) a delimitação da ARU; (b) a aprovação da ORU correspondente; e (c) a aprovação da respetiva estratégia ou programa estratégico: só se poderá aplicar o regime integral previsto no RJRU, designadamente quanto ao desencadeamento das modalidades e dos instrumentos de execução nele previstos, quando, para além de delimitada a área de atuação (a ARU), tiver sido aprovada a respetiva ORU com os seus “instrumentos estratégicos”.
Na versão inicial do RJRU, estas decisões eram tomadas em simultâneo: a definição (aprovação) de uma ARU não correspondia à mera identificação da área territorial sobre a qual seria promovida uma ORU; pelo contrário, traduzia-se sempre numa decisão de conteúdo complexo que integrava obrigatoriamente a identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à ORU; a determinação do tipo de ORU a concretizar (simples ou sistemática); a definição da entidade gestora; a fixação dos objetivos a alcançar com a ORU e a determinação dos “instrumentos” programáticos (estratégicos) que a orientam (enquadram), isto é, a estratégia ou o programa estratégico de reabilitação urbana.
Com a Lei n.º 32/2012, de 14 de agost, veio permitir-se (mas não impor-se) que aquela decisão complexa fosse faseada, procedendo-se primeiro à identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana, isto é, da ARU, apenas depois se aprovando a respetiva ORU, aprovação que integra, para além da definição do tipo de ORU a realizar (simples ou sistemática), também a estratégia ou programa estratégico a concretizar.
Pretendeu-se, com esta alteração, promover, o mais antecipadamente possível, ações de reabilitação por parte dos privados (mesmo antes da aprovação de uma ORU), o que decorre de a mera delimitação daquela área ter como efeitos a definição de um conjunto de benefícios fiscais e a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos do direito de acesso aos apoios financeiros à reabilitação urbana nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural. E isto porque a possibilidade de mobilização destes benefícios e incentivos cria uma dinâmica de intervenção por parte dos promotores/proprietários que pode logo começar a intervir nos seus prédios/edifícios enquanto a ORU está em elaboração (devendo esta ser aprovada no prazo máximo de 3 anos a contar da aprovação da ARU, sob pena de caducidade desta.
Depois de aprovada a ORU, segue-se a sua execução, a qual assenta em várias modalidades e em instrumentos de execução, designadamente instrumentos de política urbanística (v.g. imposição da obrigação de reabilitar e obras coercivas, empreitada única, direito de preferência, arrendamento forçado; servidões e expropriações, venda forçada, reestruturação da propriedade).
Assim, e em suma, uma ARU corresponde a uma fase do processo de reabilitação urbana, a primeira fase desse processo que consiste na delimitação da área dentro da qual se vai promover a reabilitação urbana, estando tal área dependente, para poder “sobreviver” dos passos subsequentes deste processo (aprovação da ORU e execução das ações programadas).
"As sucessivas alterações legais têm-se mostrado, algumas, desnecessárias e, outras, mesmo, nocivas"
VJ – Numa altura em que se anseia atingir níveis de sustentabilidade, de que forma a construção e reabilitação urbana poderá contribuir para alcançar este objetivo?
FPO – A construção e a reabilitação do edificado é confrontada cada vez mais com questões associadas à aptidão dos edifícios para a satisfação das crescentes necessidades em matéria de segurança e salubridade, onde ganham relevo os temas importantes da perspetiva da sustentabilidade, como o tema da qualidade do ar e dos materiais utilizados (que não podem ser prejudiciais à saúde nem ao ambiente), do conforto térmico e acústico e da adequação aos diversos grupos de utilizadores, designadamente às pessoas com mobilidade condicionada e às pessoas idosas. A construção e a reabilitação de edifícios é, igualmente, desafiada, hoje em dia, pelas preocupações emergentes em matéria de ambiente e alterações climáticas, relacionadas com a utilização da energia e da água e com a adequação ao aumento da temperatura e da exposição solar, aos ventos e aos fenómenos atmosféricos extremos. Também estes aspetos se relacionam diretamente com as questões da sustentabilidade.
Estes são temas que se integram no chamado direito da construção, que, embora esteja na origem de alguns dos temas essenciais do atual direito do urbanismo, não tem conhecido na atualidade, por parte do direito do urbanismo, a mesma afirmação que as demais temáticas (como a do planeamento e da gestão urbanística).
Precisamente pela importância que estes temas assumem, aproveito para fazer “publicidade” ao próximo Encontro Nacional da Ad Urbem (associação a que presentemente presido e cujo fim é promover o progresso dos conhecimentos teóricos e práticos no domínio do Direito do Urbanismo e da Construção), Encontro esse que se realizará em Lisboa, no próximo dia 7 de dezembro, e que terá, precisamente, como tema “O direito da construção – questões e desafios”.
"A habitação tende a assumir um lugar central nas agendas políticas"
VJ – Considera suficiente a legislação atual aplicada a esta temática? Caso contrário, que lacunas legislativas identifica?
FPO – Há, naturalmente, muito por fazer. Na impossibilidade de me referir aqui a todas as lacunas, refiro uma que me tem chamado particular atenção em função da participação que tenho tido em alguns projetos de investigação relacionados com fogos rurais: a necessidade de se encontrar e regulamentar novas soluções em termos de materiais de construção e de práticas construtivas de edifícios que são construídos em áreas consideradas de interface urbano-rural e, por isso, bastante expostas a fogos rurais (como, infelizmente, se viu, uma vez mais, neste verão).
Com efeito, o que é comum, quer no âmbito do direito europeu quer no do direito português, é a proteção destas edificações por via do estabelecimento de regras de gestão de combustível em torno dos edifícios e infraestruturas. São raras, ou mesmo inexistentes, regras próprias e específicas de segurança de edifícios e infraestruturas contra incêndios florestais, destinadas a reduzir a vulnerabilidade desses.
A regulamentação nesses contextos, a exemplo do Regulamento Europeu de Produtos de Construção e, entre nós, do Regime Jurídico de Segurança Contra Incêndios em Edifícios – SCIE, centra-se nos incêndios com origem no próprio edifício, o que resulta numa regulamentação que converge para a segurança apenas contra os incêndios internos, não considerando adequadamente as exigências colocadas por incêndios com fonte de ignição externa – como os florestais. Isto sem prejuízo do recente Despacho n.º 8591/2022, de 13 de julho, que veio estabelecer requisitos para adoção de medidas de proteção relativas à resistência do edifício à passagem do fogo, a constar em ficha de segurança ou projeto de especialidade no âmbito do SCIE.
No entanto, em outros países já encontramos legislações que versam sobre as construções de edifícios nestas áreas, como na Austrália e nos EUA, exemplos que merecem ser estudados para que se possa também, entre nós, caminhar no mesmo sentido.
VJ – Que próximo passo antevê que possibilite uma melhor eficiência do Direito Urbanístico?
FPO – Um passo que teremos inevitavelmente de dar não passa por alterar o quadro normativo vigente – que é, aliás, um quadro bastante desenvolvido e com soluções consistentes –, mas alterar os procedimentos e as práticas instaladas, apontando na desburocratização profunda de todos os processos urbanísticos, com particular relevo para os processos de planeamento, hoje em dia incompreensivelmente demasiado longos; e apostando numa administração urbanística municipal mais estratégica e mais ativa, que tome a iniciativa, articulando agentes, fazendo acontecer.
Sabemos todos que a alteração de uma prática instalada não é coisa fácil, confronta-se com rotinas e com mentalidades, é um processo de transformação cultural, inevitavelmente longo. Mas não é, como se tem feito nos últimos anos, introduzindo alterações no quadro legal que este problema se resolve. Com frequência as sucessivas alterações legais têm-se mostrado, algumas, desnecessárias, e outras, mesmo, nocivas. E quando algumas delas são positivas, a verdade é que, somando a todas as restantes, o sistema vai-se tornando cada vez mais complexo e difícil de gerir.
Deixemos a legislação estabilizar e preocupemo-nos mais em dotar as entidades públicas de estratégias de atuação que melhorem as práticas instituídas, devendo ser dado particular relevo à coordenação e concertação entre as várias entidades que têm de intervir nos procedimentos urbanísticos.
"Processos de planeamento devem garantir a participação efetiva dos vários interessados"
VJ – Como podemos distinguir entre uma operação de transformação fundiária e as operações de loteamento urbano?
FPO – A resposta a esta questão depende do contexto em que ela é colocada, mas poderei dizer, de forma muito simplista, que uma operação de loteamento é uma operação de transformação fundiária, mas nem todas as operações de transformação fundiária se traduzem em operações de loteamento, porque lhes falta os elementos essenciais que caraterizam esta: a de a operação de transformação fundiária dar origem de forma imediata, a lotes para construção e parcelas para “fins coletivos”, uns e outras com estatutos jurídicos específicos.
De facto, de um loteamento urbano resultam, por um lado, lotes – que correspondem a unidades prediais autónomas, isto é, a novos prédios perfeitamente individualizados e objeto de direito de propriedade nos termos gerais, com uma finalidade imediata ou subsequente de edificação urbana (que fica logo estabilizada no momento do respetivo licenciamento) e que se destinam, por isso, a ser livremente transacionados no mercado – e, por outro lado, parcelas com um estatuto jurídico próprio que decorre quer do fim a que se destinam – áreas verdes e de utilização coletiva, equipamentos e infraestruturas –, quer da respetiva titularidade, já que ou serão cedidas ao município (para o seu domínio público ou privado, embora, neste caso, sempre afetas àquelas finalidades e não livremente transacionáveis), ou permanecerão propriedade privada, embora com o estatuto especial de partes comuns dos lotes e dos edifícios que neles venham a ser erigidos.
Deste modo, sempre que estejamos perante uma operação de transformação fundiária (divisão ou reparcelamento) destinada imediatamente a urbanização e futura edificação, teremos um loteamento, a que se aplicam os procedimentos e regras materiais previstas no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE); tratando-se uma operação de transformação fundiária (divisão ou reparcelamento) não destinada imediatamente a urbanização ou edificação, não se aplica este regime, sendo a esta situação que se refere o n.º 3 do artigo 4.º do RJUE.
VJ – Vivida uma situação pós-pandémica, de que forma situações semelhantes de saúde pública poderão moldar ou obrigar a repensar o Direito do Urbanismo?
FPO – De facto, este tipo de situações coloca ao direito do urbanismo vários desafios. O confinamento (ou os vários confinamentos) que fomos obrigados a cumprir levaram à paralisação de muitas das funções urbanas tal como foram concebidas, o que nos permitiu a todos experienciar uma realidade que não conhecíamos, dando-nos a oportunidade de aproveitar este “autêntico laboratório vivo dificilmente imaginável e dificilmente simulável em computador” para podermos refletir sobre o presente e o futuro das cidades e, consequentemente do direito do urbanismo.
Um primeiro desafio prende-se com a eventual necessidade de regressarmos a um urbanismo sanitário (de saúde pública, de higiene e salubridade), a exigir a imprescindível articulação entre medidas de saúde pública e a ocupação urbana [como a previsão de mais e mais amplos espaços públicos onde se possa dar cumprimento, se necessário, a medidas de contenção de epidemias (medidas, por exemplo, destinadas a garantir o necessário “distanciamento social”)].
Também a realidade do teletrabalho (que ficará, por certo, pelo menos em muitos casos, para lá da pandemia) – com a consequente desnecessidade de deslocação entre casa e trabalho – pode ser uma boa oportunidade para a ocupação (e o “povoamento”) nas áreas de baixa densidade: durante a pandemia, muitas pessoas acabaram por comprar casa em zonas do interior (quantas vezes num regresso às origens), ganhando essas pessoas em qualidade de vida e esses locais em dinamização de atividades económicas (o aumento do número de residentes exige comércio e serviços de proximidade).
Na mesmo lógica, surge o conceito, adotado já em várias cidades, como Melbourne, na Austrália, Otava, no Canadá, Detroit, nos Estados Unidos, e Paris, em França, da cidade dos 15 minutos: a cidade em que, em 15 minutos a pé ou de bicicleta, se consegue alcançar os serviços que são relevantes para o quotidiano do cidadão, como trabalhar, aprender, ter acesso a restaurantes, cinemas, cultura, áreas de lazer, espaços desportivos, assistência médica, etc.
"Plano Diretor Municipal do Porto prevê o zonamento inclusivo, obrigando a afetar uma percentagem da área de construção para habitação acessível"
Sendo utilizado para dar repostas à emergência climática e aos desafios de grande dimensão que as cidades colocam (estas já hoje produzem 50% dos resíduos globais, consomem 75% da energia mundial e 80% das cidades emitem mais de 80% do total de emissões de CO2) – apresentando-se, deste modo, como uma solução amiga do ambiente e baseada nas relações de proximidade e na facilidade de acessos –, dúvidas não restam que este modelo pode ajudar a repensar a cidade e o seu funcionamento em situações de emergência de saúde pública, criando dentro da cidade espaços autossustentáveis (no sentido de autossuficientes), que garantem uma organização mais fácil (e menos impacto na vida das pessoas) de eventuais necessários “confinamentos” decorrentes de situações de calamidade, designadamente em matéria de saúde publica.
Um outro desafio prende-se com a concretização do direito à habitação (direito a uma habitação condigna ou direito a uma habitação adequada). A pandemia veio colocar em relevo, no que concerne ao direito a uma habitação adequada, a reponderação do que são as condições de habitabilidade: a habitação adequada já não é apenas aquela que apresenta boas condições de segurança, higinene, salubridade, acessibilidade e conforto (condições de habitabilidade tradicionais), já que o local de domícilio passou a ser também o local de trabalho, a escola, o ginásio, o local de lazer, etc. Ora, esta nova realidade obriga a repensar os padrões de adequação, acessibilidade e qualidade das habitações, reforçando a interpretação multidimensional/ multifuncional deste direito fundamental.
Num cenário de emergência pós-COVID-19, onde o fosso de desigualdades se irá possivelmente aprofundar, a habitação assumirá, por certo, um lugar central nas agendas políticas, devendo, por isso, ser objeto de tratamento especificio no ambito do direito do urbanismo (designadamente do direito púbico da construção, que o integra), ligaçao essa que é confirmada pelo artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, que expressamnte liga o direito à habitação ao urbanismo.
VJ – Qual o impacto que a legislação produzida durante a situação de emergência teve, tem e continua a ter nas diretrizes do direito do Urbanismo? Qual a iniciativa legislativa que, na sua opinião, mais repercussões trará para o Direito do Urbanismo?
FPO – Confesso que o período referente à vigência da legislação de exceção produzida durante a situação de emergência correspondeu a um período de dificuldades de decisão e de aplicação do quadro normativo do direito do urbanismo, o que resultou em grande medida do facto de não ter havido (ou quase não ter havido) legislação produzida propositadamente para esta área do direito. Com efeito, a necessidade de adaptação de legislação genérica nem sempre se revelou fácil e a produção em “catadupa” de legislação de exceção tornou a atuação de todos os operadores mais difícil, dada a incerteza que resultava da mesma. Esta não é, por isso, uma fase que eu recorde com saudade, muito pelo contrário: quase todos os dias era confrontada com dúvidas de aplicação prática desta legislação no âmbito urbanístico e nem sempre foi fácil apontar uma solução que fizesse sentido.
De todo o modo, sempre direi que a reforço de utilização das vias telemáticas e da desmaterialização dos procedimentos, que em alguns municípios ainda era, antes da pandemia, uma “visão”, é uma das mais positivas consequências que resulta desta legislação.
"A nova realidade do teletrabalho pode ser uma boa oportunidade para a ocupação nas áreas de baixa densidade"
VJ – Em seu entender, como se trilhará o caminho, de forma a integrar as questões sociais no planeamento do território?
FPO – Destinando-se os instrumentos de planeamento territorial, em primeira linha, a regular e disciplinar os vários usos dos solos, dúvidas não existem de que os mesmos devem também, atualmente, dar cumprimento às exigências decorrentes do princípio da sustentabilidade na sua vertente social e ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11 da Agenda 2030 das Nações Unidas (tornar as cidades e os aglomerados urbanos inclusivos, seguros e resilientes e sustentáveis), fornecendo soluções promotoras da qualidade de vida dos seus habitantes e utentes e promotoras do combate à segregação espacial urbana.
Assim, ainda que o planeamento territorial não seja o campo, por excelência, de resolução das questões de cariz social, exige-se cada vez mais a superação do paradigma tradicional do planeamento territorial (preocupado sobretudo com a racionalização do espaço e da regulação do direito de propriedade), de modo que possa contribuir, nem que seja em pequena medida, para garantir uma sociedade mais coesa, integrada e socialmente sustentável.
Este objetivo é alcançado, apenas para dar alguns exemplos, com exigências como: a necessária ponderação dos interesses (as necessidades) das populações mais desfavorecidas (designadamente as suas necessidades habitacionais, integrando por exemplo na sua regulamentação standards relativos a estas necessidades); a promoção ou mesmo a imposição, pelo plano, da coexistência ou mistura de usos, designadamente de tipologias de habitação destinadas a estratos sociais diferentes (mais favorecidos e menos favorecidos) – potenciando, por essa via, a convivência, num espaço comum, de pessoas pertencentes a classes sociais ou grupos culturais distintos, promovendo uma maior riqueza do tecido social e o fortalecimento da respetiva coesão –; o incentivo de uma participação efetiva nos processos de planeamento que garanta a participação de todos (sendo o espaço urbano coletivo marcado pela diferença e heterogeneidade dos seus habitantes, o plano não pode deixar de atender à variedade de opiniões, de perceções, de interesses, de culturas, de classes, de religiões e de grupos sociais que têm de conviver num mesmo espaço urbano, ponderando os interesses de todos).
Para dar um exemplo de inserção de questões sociais no planeamento, veja-se o caso do Plano Diretor Municipal do Porto, que integrou algumas soluções por via das quais pretendeu dar resposta a alguns problemas resultantes de uma fixação quase exclusiva de usos turísticos em zonas centrais da cidade (colocando em causa a indispensável multifuncionalidade que deve existir nestes espaços urbanos), acompanhado de um recrudescimento dos fenómenos de especulação do mercado imobiliário que provocou um processo de “gentrificação turística”, com expulsão de uma parte da população do centro da cidade. Ora, para resolver em parte este problema, o Plano Diretor Municipal do Porto, com vista, precisamente, a promover diversidade social no Centro da Cidade, previu um mecanismo (designado de zonamento inclusivo) que obriga que determinado tipo de intervenções urbanísticas (acima de uma determinada área de construção) em áreas da cidade devidamente identificadas tenha de afetar uma percentagem da área de construção dessa intervenção para habitação acessível pelo prazo mínimo de 25 anos. Em alternativa à disponibilização das unidades habitacionais, admite-se a cedência de solo com capacidade edificativa equivalente ou o pagamento de valor monetário a reverter para um Fundo Municipal de Sustentabilidade Ambiental e Urbanística, as quais serão posteriormente destinados para a mesma finalidade: criação de habitação acessível em áreas centrais da cidade mais sujeitas a processos seletivos de exclusão e segmentação residencial.
Vida Judiciária – De forma a entendermos melhor as suas áreas de aplicação, como podemos distinguir o direito do ordenamento do território do direito urbanístico?
Fernanda Paula Oliveira – Distinguir direito do ordenamento do território (DOT) e direito do urbanismo (DU) implica distinguir as disciplinas sobre as quais esses “direitos” atuam: o ordenamento do território (OT) e o urbanismo. Nem sempre é fácil proceder a esta distinção, na medida em que se trata de duas disciplinas que têm muitos aspetos em comum, designadamente o facto de ambas terem o território como seu objeto precípuo. Assim, posso dizê-lo, o que os distingue é a forma como ambos percecionam o território.
De um modo simplista, posso afirmar que o OT (e o direito que dele se ocupa) se preocupa com as questões territoriais mais “macro”, olhando estas disciplinas para o território de uma forma global. É nas políticas de OT que se procede à espacialização (ou a definição dos critérios para tal) das várias políticas públicas setoriais, visando articulá-las entre si (o OT ocupa-se, por exemplo, com problemas como a localização física de aeroportos, de infraestruturas viárias e rodoviárias, de grandes centros logísticos, etc.). Esta disciplina tem, no entanto, preocupações mais amplas que a mera espacialização das atividades e políticas setoriais, já que é orientada por preocupações económicas, sociais, políticas e ambientais. Por isso a política de OT é também conhecida como a política de desenvolvimento regional, que tem como objetivo a correção de desequilíbrios territoriais, de modo a garantir, em última instância, a melhoria da qualidade de vida das populações.
Já o urbanismo tem, pelo menos para uma certa conceção, como objeto imediato a urbe ou a cidade em sentido lato sensu (i.e., os espaços urbanos), assumindo-se como uma política pública setorial que define os objetivos e os meios de intervenção no ordenamento racional das cidades. Faz sentido esta importância central que alguns autores conferem às cidades (ou, de forma mais ampla, aos espaços urbanos) no âmbito do urbanismo e do direito que o regula, se tivermos presente as previsões que vêm sendo feitas, que apontam que em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 70% (atualmente, já mais de metade da população vive em áreas urbanas), sendo certo que as cidades colocam um conjunto de dilemas para a resolução dos quais o direito tem de buscar resposta: por um lado, apresentam-se como territórios com grande riqueza e diversidade económica, ambiental, política e cultural; por outro lado, correspondem a territórios que geram pobreza e exclusão, contribuem para a depredação (e degradação) do meio ambiente, aceleram processos de segregação social e espacial (muitas vezes aliados a fenómenos migratórios) e de privatização dos bens comuns e do espaço público.
Esta conceção do urbanismo (e do direito que o regula) limitado aos problemas da urbe não tem sido, no entanto, consensual na doutrina.
Para uma parte dos autores, o direito do urbanismo integra as normas referentes à ocupação urbana do território, quer a mesma ocorra na cidade, entendida em temos tradicionais, quer fora desta: para esta conceção o direito do urbanismo regula toda (mas apenas a) utilização/ocupação urbanística do solo.
Para outros, ainda, a urbe não pode deixar de ser entendida no contexto em que se insere e nas relações que estabelece com outras áreas territoriais, designadamente com o espaço rural, pelo que o direito do urbanismo há de ser entendido como o conjunto das normas e dos institutos que disciplinam não apenas a expansão e renovação dos aglomerados populacionais, mas também o complexo das intervenções no solo e das formas de utilização do mesmo que dizem respeito às edificações, à valorização e proteção das belezas paisagísticas e dos parques naturais, à recuperação de centros históricos, etc. Uma conceção de direito do urbanismo como esta tem a dificuldade de estabelecer uma linha de fronteira clara entre ele e o DOT, distinção que assentava, tradicionalmente, no âmbito territorial de aplicação de cada um (o urbanismo, como local, o ordenamento do território como regional e nacional).
Esta dificuldade de distinção é, aliás, assumida, na nossa legislação. Veja-se, a título de exemplo, o facto de termos entre nós em vigor uma Lei de Bases que trata simultaneamente da política pública de OT e da política pública de urbanismo (a Lei n.º 31/2014, de 30 de maio), sem que, porém, proceda a uma distinção clara entre elas, preferindo, antes, acentuar a estrita relação que as liga.
Posso afirmar, em suma, procurando dar uma resposta mais imediata à questão colocada, que, dado o carácter mais amplo e abrangente do OT (e do DOT), o mais adequado é perspetivar-se o urbanismo e o DU como um prolongamento daquele, uma vez que que tem de ser enquadrado pelas opções e estratégias definidas pelo OT. Trata-se, no entanto, de dois setores do mundo jurídico que não podem ser tratados separadamente: não é possível entendermos os instrumentos de urbanismo se eles não forem enquadrados nas políticas e opções do OT, mas, por outro lado, não é possível compreendermos e avaliarmos a política de OT se não “descermos” a um dos setores mais importantes da sua concretização e operacionalização – o urbanismo.
VJ – Pode-se dizer que tem havido, nos últimos anos, uma evolução (e qual) nas questões com que se ocupa o direito do urbanismo?
FPO – Sim, não há dúvidas disso. Durante muitos anos, o direito do urbanismo em Portugal primou por ser um urbanismo de expansão urbana e, por outro lado, um urbanismo assente em decisões de ocupação do território tomadas pela Administração, a “reboque” de iniciativas do setor privado. De facto, a gestão urbanística do nosso território foi marcada por uma ausência de iniciativas públicas fundiárias (diretas, ou de dinamização de processos societários), tendo-se a administração municipal, na quase totalidade dos casos, limitado a aguardar as iniciativas privadas (em regra limitadas em termos territoriais), permitindo a sua realização desde que cumprissem o disposto nos instrumentos de planeamento. Instrumentos estes que continham amplas admissibilidades construtivas – solos urbanizáveis muito extensos –, não sujeitas a condicionantes ou programação, o que promoveu licenciamentos dispersos e desgarrados entre si. As consequências desta forma de gerir o território com os instrumentos do direito do urbanismo “tradicional” traduziram-se numa ocupação edificatória do território dominantemente desordenada: fragmentação e dispersão; construção nova e abandono do “velho”; especulação fundiária; insuficiente racionalidade coletiva no aproveitamento dos recursos ambientais, energéticos e financeiros.
Sentiu-se, por isso, a necessidade de se alterar o paradigma em que assentou o direito do urbanismo durante largos anos, alteração que consistiu em deixarmos de ter (ou, pelo menos, de ter dominantemente) um urbanismo de expansão, substituindo-o, por um lado, por um urbanismo de contenção e de colmatação dos perímetros urbanos – em que as necessidades urbanísticas são satisfeitas com a mobilização dos solos expectantes dentro dos perímetros urbanos – e, por outro lado, por um urbanismo de reabilitação urbana – com a utilização do edificado existente, precedida da sua requalificação e revitalização, bem como dos espaços públicos que os servem.
A legislação produzida entre nós tem vindo a incorporar estas novas tendências, sendo relevante referir, a este propósito, as alterações em matéria de classificação dos solos como urbanos (com o desaparecimento da categoria dos solos urbanizáveis) e a aprovação de um regime jurídico referente à reabilitação urbana, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro (já alterado por várias vezes), que assumiu, precisamente, a reabilitação urbana como um princípio ótimo para o desenvolvimento urbanístico, por permitir a consolidação e ocupação do já edificado, detendo, por isso, consequências positivas em termos urbanísticos (por impedir “o consumo” de novos espaços), financeiros (por promover a racionalização das infraestruturas e equipamentos existentes), ambientais e patrimoniais (em virtude da valorização do património construído e do ambiente urbano que potencia) e sociais (já que pode funcionar como mecanismo de identificação e integração sócio-cultural).
"Faltam regras próprias e específicas de segurança de edifícios e infraestruturas contra incêndios florestais"
VJ – Por falar em reabilitação urbana, o que é uma Área de Reabilitação Urbana (ARU)?
FPO – Trata-se de um conceito introduzido, precisamente, pelo regime jurídico da reabilitação urbana (RJRU), devendo ser referido, logo à partida, que a reabilitação urbana não é assumida, neste regime, como mero conjunto de intervenções imediatas no edificado e no espaço público, isto é, mero conjunto de operações de restauro, de beneficiação e/ou de modernização de edifícios avulsos, intervencionados um a um – normalmente em função das decisões dos respetivos proprietários, eventualmente aproveitando os instrumentos financeiros disponibilizados para o efeito pelo Estado ou pelo respetivo município – e de intervenções de melhoria dos espaços públicos (considerados apenas como “espaços entre os edifícios” ou como “espaços exteriores dos edifícios”).
Este regime assenta, antes, num conceito amplo de reabilitação urbana quer quanto ao objeto de intervenção - a cidade e não os edifícios – quer quanto aos objetivos que visa alcançar – não apenas urbanísticos, mas também económicos, sociais, patrimoniais, etc. Por isso o funcionamento deste regime assenta, essencialmente, na delimitação, pelas câmaras municipais, de áreas de reabilitação urbana (ARU) – áreas que, de acordo com a definição que delas é feita, são potencialmente extensíveis a todos os espaços urbanos (do centro às periferias), desde que os respetivos processos de degradação e declínio assim o justifiquem –, para as quais são aprovadas operações de reabilitação urbana (ORU) – conjunto articulado de intervenções visando, de forma integrada, a reabilitação urbana da ARU onde se integram –, acompanhados por uma estratégia de reabilitação urbana (se a ORU for simples) ou por um programa estratégico de reabilitação (se a ORU for sistemática).
Refira-se que a reabilitação urbana em áreas de reabilitação urbana pressupõe sempre e imprescindivelmente uma decisão complexa que integra: (a) a delimitação da ARU; (b) a aprovação da ORU correspondente; e (c) a aprovação da respetiva estratégia ou programa estratégico: só se poderá aplicar o regime integral previsto no RJRU, designadamente quanto ao desencadeamento das modalidades e dos instrumentos de execução nele previstos, quando, para além de delimitada a área de atuação (a ARU), tiver sido aprovada a respetiva ORU com os seus “instrumentos estratégicos”.
Na versão inicial do RJRU, estas decisões eram tomadas em simultâneo: a definição (aprovação) de uma ARU não correspondia à mera identificação da área territorial sobre a qual seria promovida uma ORU; pelo contrário, traduzia-se sempre numa decisão de conteúdo complexo que integrava obrigatoriamente a identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à ORU; a determinação do tipo de ORU a concretizar (simples ou sistemática); a definição da entidade gestora; a fixação dos objetivos a alcançar com a ORU e a determinação dos “instrumentos” programáticos (estratégicos) que a orientam (enquadram), isto é, a estratégia ou o programa estratégico de reabilitação urbana.
Com a Lei n.º 32/2012, de 14 de agost, veio permitir-se (mas não impor-se) que aquela decisão complexa fosse faseada, procedendo-se primeiro à identificação dos concretos limites físicos da área a sujeitar à operação de reabilitação urbana, isto é, da ARU, apenas depois se aprovando a respetiva ORU, aprovação que integra, para além da definição do tipo de ORU a realizar (simples ou sistemática), também a estratégia ou programa estratégico a concretizar.
Pretendeu-se, com esta alteração, promover, o mais antecipadamente possível, ações de reabilitação por parte dos privados (mesmo antes da aprovação de uma ORU), o que decorre de a mera delimitação daquela área ter como efeitos a definição de um conjunto de benefícios fiscais e a concessão aos proprietários e titulares de outros direitos, ónus e encargos sobre os edifícios ou frações nela compreendidos do direito de acesso aos apoios financeiros à reabilitação urbana nos termos estabelecidos na legislação aplicável, sem prejuízo de outros benefícios e incentivos relativos ao património cultural. E isto porque a possibilidade de mobilização destes benefícios e incentivos cria uma dinâmica de intervenção por parte dos promotores/proprietários que pode logo começar a intervir nos seus prédios/edifícios enquanto a ORU está em elaboração (devendo esta ser aprovada no prazo máximo de 3 anos a contar da aprovação da ARU, sob pena de caducidade desta.
Depois de aprovada a ORU, segue-se a sua execução, a qual assenta em várias modalidades e em instrumentos de execução, designadamente instrumentos de política urbanística (v.g. imposição da obrigação de reabilitar e obras coercivas, empreitada única, direito de preferência, arrendamento forçado; servidões e expropriações, venda forçada, reestruturação da propriedade).
Assim, e em suma, uma ARU corresponde a uma fase do processo de reabilitação urbana, a primeira fase desse processo que consiste na delimitação da área dentro da qual se vai promover a reabilitação urbana, estando tal área dependente, para poder “sobreviver” dos passos subsequentes deste processo (aprovação da ORU e execução das ações programadas).
"As sucessivas alterações legais têm-se mostrado, algumas, desnecessárias e, outras, mesmo, nocivas"
VJ – Numa altura em que se anseia atingir níveis de sustentabilidade, de que forma a construção e reabilitação urbana poderá contribuir para alcançar este objetivo?
FPO – A construção e a reabilitação do edificado é confrontada cada vez mais com questões associadas à aptidão dos edifícios para a satisfação das crescentes necessidades em matéria de segurança e salubridade, onde ganham relevo os temas importantes da perspetiva da sustentabilidade, como o tema da qualidade do ar e dos materiais utilizados (que não podem ser prejudiciais à saúde nem ao ambiente), do conforto térmico e acústico e da adequação aos diversos grupos de utilizadores, designadamente às pessoas com mobilidade condicionada e às pessoas idosas. A construção e a reabilitação de edifícios é, igualmente, desafiada, hoje em dia, pelas preocupações emergentes em matéria de ambiente e alterações climáticas, relacionadas com a utilização da energia e da água e com a adequação ao aumento da temperatura e da exposição solar, aos ventos e aos fenómenos atmosféricos extremos. Também estes aspetos se relacionam diretamente com as questões da sustentabilidade.
Estes são temas que se integram no chamado direito da construção, que, embora esteja na origem de alguns dos temas essenciais do atual direito do urbanismo, não tem conhecido na atualidade, por parte do direito do urbanismo, a mesma afirmação que as demais temáticas (como a do planeamento e da gestão urbanística).
Precisamente pela importância que estes temas assumem, aproveito para fazer “publicidade” ao próximo Encontro Nacional da Ad Urbem (associação a que presentemente presido e cujo fim é promover o progresso dos conhecimentos teóricos e práticos no domínio do Direito do Urbanismo e da Construção), Encontro esse que se realizará em Lisboa, no próximo dia 7 de dezembro, e que terá, precisamente, como tema “O direito da construção – questões e desafios”.
"A habitação tende a assumir um lugar central nas agendas políticas"
VJ – Considera suficiente a legislação atual aplicada a esta temática? Caso contrário, que lacunas legislativas identifica?
FPO – Há, naturalmente, muito por fazer. Na impossibilidade de me referir aqui a todas as lacunas, refiro uma que me tem chamado particular atenção em função da participação que tenho tido em alguns projetos de investigação relacionados com fogos rurais: a necessidade de se encontrar e regulamentar novas soluções em termos de materiais de construção e de práticas construtivas de edifícios que são construídos em áreas consideradas de interface urbano-rural e, por isso, bastante expostas a fogos rurais (como, infelizmente, se viu, uma vez mais, neste verão).
Com efeito, o que é comum, quer no âmbito do direito europeu quer no do direito português, é a proteção destas edificações por via do estabelecimento de regras de gestão de combustível em torno dos edifícios e infraestruturas. São raras, ou mesmo inexistentes, regras próprias e específicas de segurança de edifícios e infraestruturas contra incêndios florestais, destinadas a reduzir a vulnerabilidade desses.
A regulamentação nesses contextos, a exemplo do Regulamento Europeu de Produtos de Construção e, entre nós, do Regime Jurídico de Segurança Contra Incêndios em Edifícios – SCIE, centra-se nos incêndios com origem no próprio edifício, o que resulta numa regulamentação que converge para a segurança apenas contra os incêndios internos, não considerando adequadamente as exigências colocadas por incêndios com fonte de ignição externa – como os florestais. Isto sem prejuízo do recente Despacho n.º 8591/2022, de 13 de julho, que veio estabelecer requisitos para adoção de medidas de proteção relativas à resistência do edifício à passagem do fogo, a constar em ficha de segurança ou projeto de especialidade no âmbito do SCIE.
No entanto, em outros países já encontramos legislações que versam sobre as construções de edifícios nestas áreas, como na Austrália e nos EUA, exemplos que merecem ser estudados para que se possa também, entre nós, caminhar no mesmo sentido.
VJ – Que próximo passo antevê que possibilite uma melhor eficiência do Direito Urbanístico?
FPO – Um passo que teremos inevitavelmente de dar não passa por alterar o quadro normativo vigente – que é, aliás, um quadro bastante desenvolvido e com soluções consistentes –, mas alterar os procedimentos e as práticas instaladas, apontando na desburocratização profunda de todos os processos urbanísticos, com particular relevo para os processos de planeamento, hoje em dia incompreensivelmente demasiado longos; e apostando numa administração urbanística municipal mais estratégica e mais ativa, que tome a iniciativa, articulando agentes, fazendo acontecer.
Sabemos todos que a alteração de uma prática instalada não é coisa fácil, confronta-se com rotinas e com mentalidades, é um processo de transformação cultural, inevitavelmente longo. Mas não é, como se tem feito nos últimos anos, introduzindo alterações no quadro legal que este problema se resolve. Com frequência as sucessivas alterações legais têm-se mostrado, algumas, desnecessárias, e outras, mesmo, nocivas. E quando algumas delas são positivas, a verdade é que, somando a todas as restantes, o sistema vai-se tornando cada vez mais complexo e difícil de gerir.
Deixemos a legislação estabilizar e preocupemo-nos mais em dotar as entidades públicas de estratégias de atuação que melhorem as práticas instituídas, devendo ser dado particular relevo à coordenação e concertação entre as várias entidades que têm de intervir nos procedimentos urbanísticos.
"Processos de planeamento devem garantir a participação efetiva dos vários interessados"
VJ – Como podemos distinguir entre uma operação de transformação fundiária e as operações de loteamento urbano?
FPO – A resposta a esta questão depende do contexto em que ela é colocada, mas poderei dizer, de forma muito simplista, que uma operação de loteamento é uma operação de transformação fundiária, mas nem todas as operações de transformação fundiária se traduzem em operações de loteamento, porque lhes falta os elementos essenciais que caraterizam esta: a de a operação de transformação fundiária dar origem de forma imediata, a lotes para construção e parcelas para “fins coletivos”, uns e outras com estatutos jurídicos específicos.
De facto, de um loteamento urbano resultam, por um lado, lotes – que correspondem a unidades prediais autónomas, isto é, a novos prédios perfeitamente individualizados e objeto de direito de propriedade nos termos gerais, com uma finalidade imediata ou subsequente de edificação urbana (que fica logo estabilizada no momento do respetivo licenciamento) e que se destinam, por isso, a ser livremente transacionados no mercado – e, por outro lado, parcelas com um estatuto jurídico próprio que decorre quer do fim a que se destinam – áreas verdes e de utilização coletiva, equipamentos e infraestruturas –, quer da respetiva titularidade, já que ou serão cedidas ao município (para o seu domínio público ou privado, embora, neste caso, sempre afetas àquelas finalidades e não livremente transacionáveis), ou permanecerão propriedade privada, embora com o estatuto especial de partes comuns dos lotes e dos edifícios que neles venham a ser erigidos.
Deste modo, sempre que estejamos perante uma operação de transformação fundiária (divisão ou reparcelamento) destinada imediatamente a urbanização e futura edificação, teremos um loteamento, a que se aplicam os procedimentos e regras materiais previstas no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE); tratando-se uma operação de transformação fundiária (divisão ou reparcelamento) não destinada imediatamente a urbanização ou edificação, não se aplica este regime, sendo a esta situação que se refere o n.º 3 do artigo 4.º do RJUE.
VJ – Vivida uma situação pós-pandémica, de que forma situações semelhantes de saúde pública poderão moldar ou obrigar a repensar o Direito do Urbanismo?
FPO – De facto, este tipo de situações coloca ao direito do urbanismo vários desafios. O confinamento (ou os vários confinamentos) que fomos obrigados a cumprir levaram à paralisação de muitas das funções urbanas tal como foram concebidas, o que nos permitiu a todos experienciar uma realidade que não conhecíamos, dando-nos a oportunidade de aproveitar este “autêntico laboratório vivo dificilmente imaginável e dificilmente simulável em computador” para podermos refletir sobre o presente e o futuro das cidades e, consequentemente do direito do urbanismo.
Um primeiro desafio prende-se com a eventual necessidade de regressarmos a um urbanismo sanitário (de saúde pública, de higiene e salubridade), a exigir a imprescindível articulação entre medidas de saúde pública e a ocupação urbana [como a previsão de mais e mais amplos espaços públicos onde se possa dar cumprimento, se necessário, a medidas de contenção de epidemias (medidas, por exemplo, destinadas a garantir o necessário “distanciamento social”)].
Também a realidade do teletrabalho (que ficará, por certo, pelo menos em muitos casos, para lá da pandemia) – com a consequente desnecessidade de deslocação entre casa e trabalho – pode ser uma boa oportunidade para a ocupação (e o “povoamento”) nas áreas de baixa densidade: durante a pandemia, muitas pessoas acabaram por comprar casa em zonas do interior (quantas vezes num regresso às origens), ganhando essas pessoas em qualidade de vida e esses locais em dinamização de atividades económicas (o aumento do número de residentes exige comércio e serviços de proximidade).
Na mesmo lógica, surge o conceito, adotado já em várias cidades, como Melbourne, na Austrália, Otava, no Canadá, Detroit, nos Estados Unidos, e Paris, em França, da cidade dos 15 minutos: a cidade em que, em 15 minutos a pé ou de bicicleta, se consegue alcançar os serviços que são relevantes para o quotidiano do cidadão, como trabalhar, aprender, ter acesso a restaurantes, cinemas, cultura, áreas de lazer, espaços desportivos, assistência médica, etc.
"Plano Diretor Municipal do Porto prevê o zonamento inclusivo, obrigando a afetar uma percentagem da área de construção para habitação acessível"
Sendo utilizado para dar repostas à emergência climática e aos desafios de grande dimensão que as cidades colocam (estas já hoje produzem 50% dos resíduos globais, consomem 75% da energia mundial e 80% das cidades emitem mais de 80% do total de emissões de CO2) – apresentando-se, deste modo, como uma solução amiga do ambiente e baseada nas relações de proximidade e na facilidade de acessos –, dúvidas não restam que este modelo pode ajudar a repensar a cidade e o seu funcionamento em situações de emergência de saúde pública, criando dentro da cidade espaços autossustentáveis (no sentido de autossuficientes), que garantem uma organização mais fácil (e menos impacto na vida das pessoas) de eventuais necessários “confinamentos” decorrentes de situações de calamidade, designadamente em matéria de saúde publica.
Um outro desafio prende-se com a concretização do direito à habitação (direito a uma habitação condigna ou direito a uma habitação adequada). A pandemia veio colocar em relevo, no que concerne ao direito a uma habitação adequada, a reponderação do que são as condições de habitabilidade: a habitação adequada já não é apenas aquela que apresenta boas condições de segurança, higinene, salubridade, acessibilidade e conforto (condições de habitabilidade tradicionais), já que o local de domícilio passou a ser também o local de trabalho, a escola, o ginásio, o local de lazer, etc. Ora, esta nova realidade obriga a repensar os padrões de adequação, acessibilidade e qualidade das habitações, reforçando a interpretação multidimensional/ multifuncional deste direito fundamental.
Num cenário de emergência pós-COVID-19, onde o fosso de desigualdades se irá possivelmente aprofundar, a habitação assumirá, por certo, um lugar central nas agendas políticas, devendo, por isso, ser objeto de tratamento especificio no ambito do direito do urbanismo (designadamente do direito púbico da construção, que o integra), ligaçao essa que é confirmada pelo artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, que expressamnte liga o direito à habitação ao urbanismo.
VJ – Qual o impacto que a legislação produzida durante a situação de emergência teve, tem e continua a ter nas diretrizes do direito do Urbanismo? Qual a iniciativa legislativa que, na sua opinião, mais repercussões trará para o Direito do Urbanismo?
FPO – Confesso que o período referente à vigência da legislação de exceção produzida durante a situação de emergência correspondeu a um período de dificuldades de decisão e de aplicação do quadro normativo do direito do urbanismo, o que resultou em grande medida do facto de não ter havido (ou quase não ter havido) legislação produzida propositadamente para esta área do direito. Com efeito, a necessidade de adaptação de legislação genérica nem sempre se revelou fácil e a produção em “catadupa” de legislação de exceção tornou a atuação de todos os operadores mais difícil, dada a incerteza que resultava da mesma. Esta não é, por isso, uma fase que eu recorde com saudade, muito pelo contrário: quase todos os dias era confrontada com dúvidas de aplicação prática desta legislação no âmbito urbanístico e nem sempre foi fácil apontar uma solução que fizesse sentido.
De todo o modo, sempre direi que a reforço de utilização das vias telemáticas e da desmaterialização dos procedimentos, que em alguns municípios ainda era, antes da pandemia, uma “visão”, é uma das mais positivas consequências que resulta desta legislação.
"A nova realidade do teletrabalho pode ser uma boa oportunidade para a ocupação nas áreas de baixa densidade"
VJ – Em seu entender, como se trilhará o caminho, de forma a integrar as questões sociais no planeamento do território?
FPO – Destinando-se os instrumentos de planeamento territorial, em primeira linha, a regular e disciplinar os vários usos dos solos, dúvidas não existem de que os mesmos devem também, atualmente, dar cumprimento às exigências decorrentes do princípio da sustentabilidade na sua vertente social e ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11 da Agenda 2030 das Nações Unidas (tornar as cidades e os aglomerados urbanos inclusivos, seguros e resilientes e sustentáveis), fornecendo soluções promotoras da qualidade de vida dos seus habitantes e utentes e promotoras do combate à segregação espacial urbana.
Assim, ainda que o planeamento territorial não seja o campo, por excelência, de resolução das questões de cariz social, exige-se cada vez mais a superação do paradigma tradicional do planeamento territorial (preocupado sobretudo com a racionalização do espaço e da regulação do direito de propriedade), de modo que possa contribuir, nem que seja em pequena medida, para garantir uma sociedade mais coesa, integrada e socialmente sustentável.
Este objetivo é alcançado, apenas para dar alguns exemplos, com exigências como: a necessária ponderação dos interesses (as necessidades) das populações mais desfavorecidas (designadamente as suas necessidades habitacionais, integrando por exemplo na sua regulamentação standards relativos a estas necessidades); a promoção ou mesmo a imposição, pelo plano, da coexistência ou mistura de usos, designadamente de tipologias de habitação destinadas a estratos sociais diferentes (mais favorecidos e menos favorecidos) – potenciando, por essa via, a convivência, num espaço comum, de pessoas pertencentes a classes sociais ou grupos culturais distintos, promovendo uma maior riqueza do tecido social e o fortalecimento da respetiva coesão –; o incentivo de uma participação efetiva nos processos de planeamento que garanta a participação de todos (sendo o espaço urbano coletivo marcado pela diferença e heterogeneidade dos seus habitantes, o plano não pode deixar de atender à variedade de opiniões, de perceções, de interesses, de culturas, de classes, de religiões e de grupos sociais que têm de conviver num mesmo espaço urbano, ponderando os interesses de todos).
Para dar um exemplo de inserção de questões sociais no planeamento, veja-se o caso do Plano Diretor Municipal do Porto, que integrou algumas soluções por via das quais pretendeu dar resposta a alguns problemas resultantes de uma fixação quase exclusiva de usos turísticos em zonas centrais da cidade (colocando em causa a indispensável multifuncionalidade que deve existir nestes espaços urbanos), acompanhado de um recrudescimento dos fenómenos de especulação do mercado imobiliário que provocou um processo de “gentrificação turística”, com expulsão de uma parte da população do centro da cidade. Ora, para resolver em parte este problema, o Plano Diretor Municipal do Porto, com vista, precisamente, a promover diversidade social no Centro da Cidade, previu um mecanismo (designado de zonamento inclusivo) que obriga que determinado tipo de intervenções urbanísticas (acima de uma determinada área de construção) em áreas da cidade devidamente identificadas tenha de afetar uma percentagem da área de construção dessa intervenção para habitação acessível pelo prazo mínimo de 25 anos. Em alternativa à disponibilização das unidades habitacionais, admite-se a cedência de solo com capacidade edificativa equivalente ou o pagamento de valor monetário a reverter para um Fundo Municipal de Sustentabilidade Ambiental e Urbanística, as quais serão posteriormente destinados para a mesma finalidade: criação de habitação acessível em áreas centrais da cidade mais sujeitas a processos seletivos de exclusão e segmentação residencial.