O nós que o digital mata ;

À Esquina do Tempo
O nós que o digital mata
Haviam-me informado de que, em 15 minutos e em passo normal, chegaria ao meu destino. Avancei tranquilamente, que não era tarde. Os quinze minutos foram mais de 25, afinal, pois dispersei, no caminho, o meu olhar pelo olhar de diferentes cidadãos que, àquela hora matutina, passo estugado, passavam por mim em sentido contrário ao meu. Uma segunda-feira de frio, no mês de janeiro, no centro de Lisboa.

O meu destino (o sítio para onde me deslocava… “chegou ao seu destino”, não o outro!) era uma prolongada sessão de trabalho, no CES, sobre “Os desafios das Novas Criminalidades no Espaço Tecnológico”. Ver o nosso tempo com outras lentes, do outro lado das coisas que, as mais das vezes, nem sequer sonhamos existirem.
Ao fim do dia consubstanciou-se-me no espírito o encontro da viagem matinal com a informação recolhida nas conferências a que assisti.
Havia lido recentemente, de Ricardo Araújo Pereira, uma crónica incisiva do seu recente livro “Estar Vivo Aleija” que tem como título “A Sentir-se Controlado”: (…) “é ou não verdade que esteve de férias em Paris entre 20 e 25 de Março?
- Quem é que me denunciou?
- O seu Instagram.
- Ah.
- Bonitas fotos. Nesta, parece mesmo que está a pegar no topo da Torre Eiffel com o polegar e o indicador. Um clássico. A sua mulher enquadrou bem isto.
- Como é que sabe que foi ela que tirou a fotografia? Vocês têm agentes em França?
- Não, vimos no Twitter dela. Que tal eram os “escargots” naquele restaurante dos Champs Élysées?
- Não tem nada a ver com isso.
- Já vi. Estavam bons. Deu-lhes cinco estrelas na página de Facebook do restaurante.” Vale bem a pena ler toda a crónica, mas aqui fica apenas o essencial relativamente ao que venho.
É que aquelas pessoas que passaram por mim na rua não estavam sós: tinham nos seus ouvidos aparelhos conexos ao telemóvel que tinham na mão e para o qual debitavam palavras, frases continuamente. E, todavia, o seu rosto mostrava a revolta da maior solidão citadina. Que estranha sociedade!
Fazendo a ligação ao mundo digital – o espaço, afinal, onde habita tudo o que dizemos, escrevemos e mostramos nas redes sociais, e não só –, aquela solidão é, também, uma espécie de comunhão de todo o mundo e de ninguém.
A solidão acompanhada digitalmente. O que resta da sociabilidade com o outro nesse tempo digital? Nunca antes tinha verificado o que nestes dias me entrou pela consciência: ninguém já fala com ninguém no falar ou entrar em contacto com os outros sem os outros estarem presentes. Mas alguém está lá que de tudo sabe – e que nos manipulará até ao tutano com a nossa cumplicidade.
António Vilar, 10/01/2019
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