Serviços de advogados estagiários devem ser remunerados;

Diretor da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa defende
Serviços de advogados estagiários devem ser remunerados
Manuel Fontaine, diretor da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Apesar da multiplicidade de cursos nas universidades públicas e privadas, “os licenciados em Direito vão conseguindo colocação profissional”, constata o diretor da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (UCP), onde o desemprego entre licenciados em Direito não ultrapassa os 3% (4% a nível nacional).
O problema está mesmo nos primeiros anos, que “são sempre mais complicados”, dado o “hábito que existe em Portugal em muitos escritórios de não pagar os estágios”. Manuel Fontaine é taxativo: “há cada vez mais escritórios de advogados a remunerarem os estágios dos advogados estagiários”. O caminho deve, aliás, ser esse, diz. É que “um estagiário, se bem aproveitado, pode trazer muito valor para o escritório”. Por isso, “era importante fixar o princípio de que todo o estagiário deve ser remunerado”, até porque essa é “uma exigência de dignidade de quem trabalha”.
Vida Económica – Como olha para o ensino do Direito em Portugal? Há muita oferta formativa, múltiplos cursos de Direito, em universidades públicas e privadas, mas há quem coloque em causa a qualidade de alguma dessa oferta. Que opinião tem?
Manuel Fontaine – A avaliação que faço é, no fundo, essa: há grande diversidade na oferta do Direito. Não há dúvida que qualquer pessoa do mundo do Direito dirá que há cursos de Direito que são reconhecidos no mercado como tendo mais qualidade que outros. Não vou falar em causa própria, mas existe essa diferença. Depois existem diferenças entre escolas que têm uma postura mais conservadora e escolas que têm uma postura mais inovadora. 
 
VE – Mas mais inovador não significa de melhor qualidade. Nem o contrário.
MF – De todo. De todo. Entre as escolas de boa qualidade, há algumas com uma postura mais conservadora e outras com uma postura mais inovadora e que procuram pensar em novos modelos pedagógicos, em novas matérias que vão surgindo e que devem ser abordadas ao nível de uma licenciatura. Vão pensando em responder aos desafios que o jurista tem de responder para ser bom.
 
VE – E isso bom, do seu ponto de vista? 
MF – Bom, nós procuramos ter essa postura de inovação. Veja: ao fim e ao cabo, um jurista hoje, para desempenhar adequadamente e com sucesso a sua profissão o que é que precisa? Precisa de um conjunto de qualidades. Então, vamos procurar nós, aqui na licenciatura e depois no mestrado, providenciar a aquisição dessas qualidades. Questões como a da internacionalização, da especialização, a questão cada vez mais importante hoje em dia, que é o domínio do digital. São tudo questões novas às quais se exige uma certa interdisciplinaridade. Tudo isto são desafios de hoje em dia. Tradicionalmente, um jurista, advogado ou um magistrado tinha de ter excelência técnica, tinha também, já no passado, de dominar as tais qualidades de oratória e negociação. Mas não havia quem formasse os juristas nessa área. E depois tinham de dominar aquelas competências práticas, de como lidar com os tribunais, os processos, etc.. E tudo isso mantém-se, mas há um mundo de coisas novas.
 
VE – Portanto, há escolas de Direito que ainda não estão a fazer essa transição?
MF – Não me vou pronunciar sobre as outras escolas de Direito. O que digo é que, em geral, há escolas com uma postura mais conservadora e há escolas com uma postura mais inovadora. E nós procuramos ter uma postura mais inovadora. A todos esses níveis. Por exemplo, ao nível da internacionalização. Hoje em dia, qualquer advogado ou jurista, mesmo que não vá para o estrangeiro, vai ter de contactar com clientes estrangeiros em Portugal. E as grandes sociedades de advogados têm normalmente um exame, uma prova de acesso de inglês. Porquê? Porque justamente são cada vez mais os clientes estrangeiros com que têm de lidar, seja em Portugal, seja no estrangeiro. Portanto, adquirir essa capacidade de domínio do inglês jurídico e adquirir, até, um certo conhecimento do que são as ordens jurídicas estrangeiras, dá hoje em dia uma vantagem competitiva muito grande. 
 
VE – Há pouco falou também na especialização.
MF – Exato. O paradigma do advogado generalista que sabia de tudo um pouco e que tinha o seu escritório individual, isso é do passado. Não quer dizer que não exista e que não possa ainda haver lugar para esses advogados chamados em prática isolada, mas hoje em dia cada vez mais o que está no mercado é a prática em sociedades.
 
VE – A própria Ordem dos Advogados criou a figura dos advogados especialistas.
MF – Sim. E, nas sociedades de avogados, os advogados enquadram-se em áreas de prática especializada. Ora, nós temos de dar aos nossos alunos esse conhecimento especializado. 
 
VE – Quando é que o aluno faz a opção por uma determinada área do Direito?
MF – Logo na licenciatura faz uma espécie de pré-especialização no último ano, em Direito Público, Direito privado ou Direito Criminal. Mas a verdadeira especialização vai acontecer no mestrado. Aí temos oito áreas diferentes: Direito Privado, Criminal, da Empresa e dos Negócios, Internacional e Europeu, do Trabalho, Fiscal, Administrativo, Direito e Gestão, que habilitam os nossos mestres ao exercício dessa advocacia mais especializada.
 
VE – E como estamos em termos de saídas profissionais? Há uma multiplicidade de cursos de Direito em Portugal que formam milhares de juristas por ano. Como é que o mercado os absorve?
MF – É claro que podemos estar a beneficiar de um contexto geral de desemprego baixo, mas a perceção que temos é que o desemprego na área do Direito, neste momento, e de acordo com os dados divulgados pelo [portal] InfoCursos, é muito baixo. Anda aí à volta dos 4%, sendo que aqui ao nível da Escola [de Direito da UCP] está nos 3%. E, de acordo com os nossos inquéritos ao emprego, a maior parte [dos licenciados] está na advocacia ou noutras profissões jurídicas. O Direito efetivamente tem muitas saídas profissionais – a advocacia, a magistratura, o notariado, os conservadores, os departamentos jurídicos das empresas, as consultoras, a Polícia Judiciária, as profissões em que não é obrigatório ter o curso de Direito mas em que o curso de Direito dá alguma vantagem, etc. Como a diplomacia…
 
VE – E o Jornalismo.
MF – E o Jornalismo. Exatamente. Mesmo a própria Administração Pública. Os licenciados em Direito apesar de tudo vão conseguindo colocação profissional. Claro que os primeiros anos são sempre mais complicados, porque há este hábito em Portugal em muitos escritórios de não pagar os estágios.
 
VE – Ora, acabou de tocar num ponto sobre o qual o queria questionar. Numa entrevista à “Vida Económica em junho, o reitor da Universidade do Porto falava nisso, ou seja, na falta de valorização dos recém-licenciados. E focava justamente os licenciados em Direito e em Arquitetura como tendo de passar “um calvário de vários anos” a trabalhar “de graça” nos escritórios de colegas até serem devidamente reconhecidos e remunerados no mercado de trabalho, o que leva muitos até a emigrarem. Como olha para esta situação?
MF – Vamos lá ver, isto tem de ser visto de diversos pontos de vista. Como é evidente, temos de distinguir o que acontecia há 20 anos do que acontece agora. Eu diria que há cada vez mais escritórios de advogados a remunerarem os estágios dos advogados estagiários. Essa é uma realidade que temos observado e, até, em parte, pelo facto de esse ser um hábito mais enraizado em Lisboa do que no Porto. As sociedades de advogados que vêm de Lisboa para o Porto, habituadas que estão a pagarem aos advogados estagiários [em Lisboa], geram concorrência junto dos escritórios do Porto, que também acabam por pagar. Portanto, isso está a evoluir positivamente. Por outro lado, há um aspeto que é preciso ter em conta: o estágio é, neste momento, bem mais curto do que foi no passado. No passado não tão distante, o estágio podia ser de três anos. E, neste momento, o estágio é de um ano e meio, no máximo dois anos. Portanto, o tal período em que, nalguns escritórios, não remuneram o estágio, apesar de tudo é bem mais curto. Ainda um outro ponto de vista: como é evidente, o estágio é também um período de formação. Há aqui alguns advogados que dizem, penso eu com alguma graça ou até com algum humor: ‘nós damos formação, nós é que devíamos ser remunerados’. Mas, como é evidente, um estagiário, se bem aproveitado por um escritório de advogados, pode trazer muito valor para o escritório e, portanto, eu diria, em princípio, o estágio deve ser remunerado. E acho que temos de avançar para aí. Se calhar, no passado não havia condições para isso, mas eu penso que, tal como já sucedeu noutras profissões em situações semelhantes, era importante fixar o princípio de que todo o estagiário deve ser remunerado. Depois, o quanto da remuneração seria algo, naturalmente, a avaliar. Mas eu diria que é uma exigência de dignidade de quem trabalha deve ser remunerado.

Programa “ADN do Jurista” é uma “resposta às exigências do mercado”

Entre 1978 e até 2018/2019, a Faculdade de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa formou 4944 licenciados em Direito, 1163 mestres, 32 doutorados e 1296 pós-graduados.
O programa “ADN do Jurista”, que funciona de 2013 para cá, tem a duração de três anos, integra disciplinas centradas no desenvolvimento interpessoal do aluno, focando-se na construção de capacidades relacionadas com argumentação retórica, oratória e escrita jurídica ou, ainda, o desenvolvimento de capacidade de negociação e da tomada de decisão. Manuel Fontaine não tem dúvidas: sendo uma componente da formação “diferenciadora”, esta é também “uma resposta às exigências da sociedade e do mercado”
 
Vida Económica – A UCP relança este ano o projeto “ADN do Jurista”. Do que é que se trata?
Manuel Fontaine – É um projeto novo nas faculdades de Direito portuguesas, mas já começou em 2013. O objetivo é permitir formar os alunos de Direito quanto a um conjunto de caraterísticas e competências que, classicamente, não eram visadas nos cursos de Direito. Aquilo que se convencionou chamar-se ‘soft skills’, competências transversais, de negociação, o que para um jurista e um advogado é fundamental, argumentação, retórica, oratória, até algumas competências em mediação, negociação. Todo um conjunto de competências que não são especificamente jurídicas, em muitas outras profissões é preciso negociar, em quase todas as profissões é preciso saber falar, saber falar em público, saber apresentar o seu argumento, pensar criticamente. E é um pouco nesta linha que foi criado este programa. Que é paralelo à licenciatura.
 
VE – Estamos a falar de uma componente não letiva do curso, mas que complementa a formação do aluno. É isso?
MF - Certo. Complementa. É letiva, porque também é constituída por disciplinas, seminários ou módulos, por vezes em formatos mais flexíveis, de interação do docente/formador com o aluno. Mas, na verdade, o aluno está a frequentar a licenciatura em Direito e não está obrigado a frequentar o “ADN do jurista”. É opcional. Sendo que é completamente gratuito para o estudante.
 
VE – E que é que o vai ministrar?
MF – O programa é constituído por várias disciplinas. Temos uma coordenação, que é garantida por um professor de Direito e por uma doutorada em Psicologia que faz parte aqui dos quadros da faculdade de Direito; depois temos, em Argumentação e Retórica, uma docente formada em Filosofia; em Negociação e Tomada de Decisão temos um docente que por acaso até é estrangeiro mas que fala português e que é formado em Direito mas que adquiriu essa competência até nos Estados Unidos; há dois blocos muito interessantes de Oratória que são lecionados por uma atriz (saber colocar a voz, falar em público, saber colocar as mãos e expressão corporal). Tudo isto se aprende. E os alunos podem aprender, sobretudo aqueles que têm mais dificuldade nesses aspetos. No fim há a apresentação de um projeto e há um prémio do estágio. E é um programa que se desenvolve ao longo dos quatro anos do curso de Direito. Não é ensinado ‘a martelo’ num semestre. Não. É importante que as competências se vão desenvolvendo e os alunos depois até tenham a oportunidade de praticar algumas das coisas que aprenderam nas disciplinas do curso e mesmo nos estágios que vão realizar no exterior até podem estar ligados ao programa ADN do jurista. É para irem desenvolvendo. E, no fim, há uma espécie de encerramento, com uma apresentação em público de um tema, que é avaliado por um júri. A ideia é que, no fim, para além de terem adquirido competências de conhecimento jurídico, adquiram também estas competências que não o são especificamente.
 
VE – Esta é uma componente de formação cada vez mais valorizada pelas empresas e pelo mercado de trabalho?
MF – Absolutamente.
 
VE – Mas que diagnóstico é que fizeram para chegarem a essa conclusão?
MF – Primeiro é preciso enquadrar isto numa postura de constante busca da inovação por parte da Faculdade ao serviço dos alunos. Nós estamos num contexto concorrencial e estamos sempre em busca de formas de acrescentar valor e diferenciação. Temos de nos diferenciar. E esta é uma forma. Mas é uma diferenciação que traz valor para os nossos alunos. Nós não queremos diferenciações que não se traduzam em valor acrescentado para os profissionais do Direito. No passado, os nossos estudantes queixavam-se que a vida prática colocava muitos desafios que eles não tinham antecipado quando estavam a frequentar o curso. Era um curso eminentemente teórico. 
 
VE – E continua a ser?
MF – Sim, essa faceta continua lá, de grande exigência e muito aprofundada. Mas há conjunto de outros aspetos que pensamos que podiam ser úteis. E este é um deles. Isto também porque as entidades empregadoras vão-nos contactando, as sociedades de avogados, empresas, no sentido de que é um aspeto a valorizar e dando nota de que depois se nota a diferença entre duas pessoas com a mesma qualificação jurídica, mas em que uma tinha competências e sabia transmitir o conhecimento que tinha adquirido e sabia negociar e outra não. Portanto, esta é também uma resposta às exigências da sociedade e do mercado. E temos tido, felizmente, muitos alunos inscritos no programa. Todos os anos há cerca de 100 alunos. Já vem de 2013 e é um programa completamente inovador no panorama nacional. Mais nenhuma faculdade de Direito tem um programa destes.

 


TERESA SILVEIRA teresasilveira@vidaeconomica.pt, 23/08/2019
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