A viragem para o Leste;

A viragem para o Leste


João Diogo Barbosa

Advogado estagiário na Abreu Advogados
Na Europa, os últimos meses foram passados a olhar para o Leste. Dos conflitos com o Estado de Direito na Hungria e na Polónia à invasão da Ucrânia e às sanções à Rússia, tudo se inclina para aí.
Para a Europa que construiu a União Europeia, o Leste nunca foi evidente, mas não podia ser ignorado. Com o bloco soviético, a solução imediata para o recomeço das relações foi o dogma do alinhamento, diligentemente repetido por gerações de governantes, académicos e diplomatas como política oficial.
Por um tempo e à superfície dos acontecimentos, a solução funcionou. O alinhamento trouxe o alargamento da União Europeia para uma parte considerável do espaço soviético, com vantagens aliciantes: crescimento económico, liberdades políticas e dinamismo social.
No processo de alinhamento, o Leste trouxe à Europa um dinamismo incómodo. Para a Europa, a falta de notícias era agradável e as perturbações ao curso lento da História dispensáveis – os britânicos, menos convencidos da vantagem de avançar gentilmente para o declínio, preferiram sair –, enquanto os novos membros estavam a construir Estados.
Compreender essa dissonância ajuda a explicar o resto. A Polónia, por exemplo, desenvolveu uma economia industrial vibrante, tem hoje perto de 40 milhões de habitantes e uma cultura política que é simultaneamente competitiva (as últimas presidenciais decidiram-se por dois pontos percentuais) e oposta ao consenso europeu. A Estónia permanece como um ícone do liberalismo e do progresso, mesmo numa altura em que essa combinação, antes comum, parece tóxica para o centro. E a Hungria, sob o longo governo de Orbán, tem desenvolvido com sucesso um modelo político que é simultaneamente alternativo e inteiramente dependente do financiamento europeu.  
Por comparação, o que sobra parece pouco. A França combina um crescimento económico anémico com uma sociedade fragmentada, dividida cultural e politicamente, numa sucessão de governos que prometem reformas e perdem apoio ainda antes de avançarem com uma agenda. A Alemanha definiu a sua liderança europeia pela vontade de assegurar a mínima disrupção política, ao mesmo tempo que transferiu toda a sua autoridade para a sua vantagem económica, num momento em que essas premissas se tornaram incompatíveis para exercer influência. Mesmo no Reino Unido, onde parecia haver interesse na mudança, independentemente do custo, o dinamismo trouxe apenas discussões inflamadas sobre pequenas burocracias e pouca vontade de reabrir o debate sobre temas maiores, como a independência da Escócia ou da Irlanda do Norte.
Há casos intermédios, de maior dinamismo no Ocidente e de atavismo a Leste, que servem de aviso. Itália será o maior exemplo, uma lição sobre como o dinamismo por si só não significa avanço, porque não há vantagem no movimento que é apenas uma expressão de inquietude sem um propósito. No Leste, a Bulgária é exemplo das dificuldades do alinhamento e da suscetibilidade desses países à captura política e económica. Em todo o caso, a vontade de se mover é um bem intencionalmente escasso para os europeus.
Essa foi a principal característica de 30 anos de relacionamento com a Rússia, como ficou evidente nos últimos meses. A Rússia era “especial”, porque tinha potencial, armas e energia, mas sobretudo porque tinha sido o último grande adversário e nunca se comprometeu inteiramente com o alinhamento.
Enquanto não se alinhava, a Rússia lutava com o seu próprio dinamismo. A URSS não foi um sucesso, mas o seu desaparecimento também não trouxe amanhãs que cantam. Para o país que passou pela maior transição política nos últimos quarenta anos, toda a transformação parece ter mantido os principais problemas anteriores, ao mesmo tempo que diminuiu a sua posição relativa no mundo. Se durante o comunismo o espaço russo tinha uma economia surpreendentemente frágil e autofágica, havia pelo menos uma pretensão plausível a criar uma potência mundial alternativa aos EUA e uma efetiva concorrência cultural, das artes às ideias.
A Rússia que invadiu a Ucrânia e fornecia gás à Europa é substancialmente diferente. Mesmo antes das sanções, a sua economia estava capturada, crescia menos do que os seus pares e estava presa a indústrias extrativas, distante da competição tecnológica. Culturalmente, a queda da URSS trouxe um fechamento e a grande potência deixou de ter pensadores, artistas e figuras literárias que fossem figuras verdadeiramente reconhecidas por todo o mundo.
Mesmo num regime autoritário, a oposição vivia relativamente organizada e institucionalizada (Alexei Navalny é, a par do presidente Putin e da modelo Irina Shayk, o russo mais conhecido no estrangeiro), capaz de se unir em campanhas eleitorais e em protestos de grande escala, mas menos eficaz na conquista de poder ou sequer de concessões do regime.
A especialidade do dinamismo da Rússia é o facto de não existir mesmo quando tudo aponta para isso. As grandes façanhas do regime, que cultivaram uma imagem de vigor e visão estratégica, cabem na categoria de controlo da vizinhança – na Geórgia, na Ucrânia, na Bielorrússia ou no Azerbaijão. Essa bravata trouxe menos influência do que a conseguida no período soviético ou no tempo dos czares, mas convenceu a Europa de que havia um movimento, uma promessa de disrupção que teria de ser cancelada.
Anos de alinhamento orientavam-se para aí. A História poderia ser perpetuamente travada através de acordos de comércio, gasodutos, deslocalização de fábricas e lugares para iates na marina do Mónaco. O dogma do alinhamento foi adotado como um instrumento de proteção contra a mudança, mas, numa situação em que o poder alinhador passa a estar dependente daquele que quer alinhar, o seu efeito ficou aquém das expectativas.
A fragilidade do modelo ficou exposta com a invasão da Ucrânia. Uma crise agravada pelo acumular de erros na condução política não era novidade, muito menos para a Europa que quase quebrou com a recessão da década passada. Os governos da França e da Alemanha tinham liderado os esforços de aproximação à Rússia, na prática e na retórica, com os laços económicos e os discursos que prometiam uma Europa de Lisboa a Vladivostok. Nos meses que antecederam a invasão, Merkel, Scholz e Macron desdobraram-se em esforços e deslocações que sublinhavam a implausibilidade – lógica, mais do que concreta ou operacional – da guerra.
Quando o implausível se tornou contexto, a posição tornou-se incomportável para todos. Desde logo, porque havia uma guerra nas fronteiras europeias, envolvendo um adversário visto como frágil e temível em simultâneo; mas também porque o dinamismo se tornou estrutural, uma peça constitutiva e definidora da realidade.
Numa manhã, o complexo equilíbrio de poder que se tinha construído na União Europeia tornou-se a pior solução para resolver os seus problemas. O consenso, apanhado em falso na sua grande estratégia, tinha perdido credibilidade e ideias para o que estava para vir. A narrativa começava a desenhar-se: conflitos internos sobre a dimensão do compromisso numa aliança contra a agressão, um posicionamento dúbio e, finalmente, após a habitual noitada de negociações, um acordo técnico complexo que ninguém conseguiria explicar e muito menos aplicar.
Não foi o que aconteceu. Por muito que a Alemanha resistisse a arriscar o gás da sua indústria e a França persistisse em telefonar a Putin para conseguir uma vitória pela diplomacia, o dinamismo sobrepôs-se.
Fora da União Europeia, o Reino Unido liderou o apoio aos ucranianos, começando pelo discurso e incluindo desde cedo o armamento. Dentro, foram os Estados-Membros do Leste a liderar, incluindo pelo exemplo, uma reação decidida e comprometida. A Polónia, acima de todos, alavancou a sua posição relativa e tornou-se o país a escutar em matérias da guerra, acolhendo quase 4 milhões de ucranianos ao mesmo tempo que abjurava a sua longa aliança com a Hungria para concertar uma ampla coligação amplo de governos europeus. A Lituânia conduziu um corajoso, ainda que justamente polémico, corte de abastecimentos a Kaliningrado. E até a Hungria, onde Orbán combinava o apreço genuíno por Putin e pelo bloqueio de grandes decisões acabou por aprovar matérias sensíveis sem escândalo público.
No momento em que a Chéquia assume a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, o poder de influência do dinamismo do Leste é incomensuravelmente maior do que era no início do ano, mas os esforços europeus começam a ter custos cada vez mais difíceis de aceitar. Não obstante o caminho percorrido até agora, os próximos meses trarão mais clareza sobre a grande questão: está a Europa preparada para adotar o dinamismo ou o peso do risco vai fazer a situação recuar até à narrativa que todos tinham previsto em fevereiro?
A importância da resposta a essa pergunta extravasa a guerra na Ucrânia. Apesar dos seus melhores esforços para o impedir, as circunstâncias vão forçar os europeus a decidir. A melhor forma de proteger o que temos é tentar que nada aconteça?
21/07/2022
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