“Muitas vezes, certas investigações só são desvendadas a partir de delações, especialmente em crimes de colarinho branco e financeiros”
Procurador de Justiça, membro do Ministério Público (MP) do Estado do Rio de Janeiro (ERJ), membro eleito do Conselho Superior do MP do ERJ, ex-Procurador-Geral de Justiça, ex-presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e da União e ex-professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado do ERJ e da Fundação Escola do MP do ERJ, Cláudio Soares Lopes aborda a atuação do MP no Brasil, assim como a delação premiada, as interceptações telefónicas, o foro especial, a incriminação das empresas e o processo de extradição entre países lusófonos
VJ - Quais são as áreas de atuação do MP no Brasil?
Cláudio Soares Lopes – O MP brasileiro tem um perfil ímpar. Acredito que poucos ministérios públicos no mundo tenham tantas áreas de atuação. Obviamente, sua atuação primordial é na área criminal. Porém, atualmente, temos grande e decisiva atuação na área de tutela coletiva, na defesa dos direitos individuais e sociais indisponíveis. Assim, temos promotorias de justiça de defesa do património público, de cidadania, de saúde, do idoso em situação de risco e do portador de necessidades especiais, da criança e do adolescente, do meio ambiente, de fiscalização das fundações privadas, de família, cível – para cuidar de interesses de incapaze –, de fazenda pública, empresariais, enfim, uma gama enorme de atribuições. O MP ganhou importância e relevância, em especial, com a Constituição Federal de 1988. Ali ficou estipulado que passámos a ter as mesmas garantias e prerrogativas dos magistrados. Portanto, temos as garantias de inamovibilidade, independência funcional e irredutibilidade de vencimentos. Essas garantias são fundamentais para que o membro do MP possa atuar em defesa da sociedade, enfrentando criminosos perigosos, combater o crime organizado em suas várias esferas, com a certeza de que não será, por exemplo, removido contra sua vontade de seu órgão de atuação por interferências externas, além de ter a fundamental garantia de que nem mesmo o chefe da instituição pode dizer como deve agir. Portanto, essas garantias permitem uma atuação firme e corajosa. O facto de ser o único responsável em promover a ação penal pública nos dá muita força. A possibilidade de realizar investigações civis que invariavelmente resultam em ações civis públicas com resultados concretos nas diversas áreas de atuação tem-nos dado muita credibilidade perante os “media” e a sociedade civil.
VJ - Quais os procedimentos de transparência e “accountability” que atualmente o MP do Brasil utiliza para se autoavaliar?
CSL – Atualmente, no Brasil existe uma legislação específica que obriga os órgãos públicos a divulgar os salários dos servidores e demonstrar os gastos com o dinheiro público. Portanto, salários e todo o tipo de gasto devem estar expostos nos portais e “sites” dos órgãos públicos para que a sociedade possa consultar e fiscalizar. No caso do MP e do Poder Judiciário, uma emenda constitucional criou os Conselhos Nacional do MP e da Justiça. Esses conselhos exercem um controlo externo administrativo e disciplinar do MP e do Poder Judiciário. No começo houve uma certa resistência dos integrantes do MP e da magistratura. Porém, acredito que a criação dos conselhos foi salutar, na medida em que serviu para o aperfeiçoamento dessas instituições. Todos os gestores destes órgãos foram obrigados a melhorar e aperfeiçoar o funcionamento das instituições para evitar práticas administrativas que acabavam por macular a idoneidade do MP e da Justiça perante a sociedade, tirando, de certa forma, a credibilidade.
VJ - Que avaliação faz do trabalho que desenvolveu à frente do MP do Rio de Janeiro, quais os pontos positivos e os pontos negativos e o que gostaria de ter feito sem ter conseguido?
CSL – Realmente, ter exercido a chefia do MP do Estado do Rio de Janeiro, o cargo de Procurador-Geral de Justiça por quatro anos em dois mandatos em que fui eleito por vontade da classe foi a maior honra nesses quase trinta anos que completarei na instituição em dezembro deste ano. Por outro lado, foi um desafio enorme. Trabalhámos, inicialmente, com planeamento estratégico. No primeiro ano, ouvimos democraticamente os quase mil integrantes da carreira, procuradores e promotores de Justiça, que elegeram as prioridades institucionais. A partir daí, criámos projetos que espelhassem a vontade da classe em todas as áreas, inclusive, na área administrativa. Por exemplo, criámos grupos de combate ao crime organizado (GAECO), pois o crime organizado cresceu e fortaleceu-se tanto no Brasil, e, em especial, no Rio de Janeiro, de forma que promotores de justiça, isoladamente, não tinham mais condições de agir sozinhos. Criámos o GAEMA, uma espécie de GAECO só para combater crimes e improbidade na área ambiental. Instituímos o laboratório de combate à lavagem de capitais. Criámos procuradorias especializadas no 2.º grau, como procuradorias de “habeas corpus”, de infância e tutela coletiva, especializando nossa atuação também na fase recursal. Enfim, uma série de medidas e projetos que levaram, inclusive, a uma maior divulgação de nossa atuação para a sociedade, com um acréscimo significativo de matérias positivas nos “media”. Incentivámos e ampliámos o treino dos nossos servidores de apoio e conseguimos atingir a meta de dar um assessor jurídico para auxiliar cada promotoria de justiça, o que ajudou muito a otimizar o trabalho do membro do MP, que ficou com maior disponibilidade para dar atenção às grandes causas e questões mais relevantes. Sinceramente, sem falta modéstia, acredito que todas as metas que tínhamos em mente para os nossos mandatos foram atingidas. Não vi assim um ponto negativo significativo. Mas MP é assim, há sempre espaço para avançar e crescer, pois as demandas sociais são infinitas.
VJ - Como avalia a atuação do MP no Brasil e o seu protagonismo nas delações e na operação Lava Jato?
CSL – Acho que a atuação do MP na operação Lava Jato em geral tem sido muito positiva e tem tido o apoio popular, principalmente, ao MP federal, pois os crimes praticados são delitos que envolvem verbas federais, daí porque é este ramo do MP que tem atuado, e não algum MP estadual, cuja atribuição constitucional ficou reservada para a persecução das demais infrações penais. Tem sido importante o MP estar à frente das delações, na medida em que é o destinatário das investigações visando propor e iniciar o processo criminal. Porém, no Brasil, a polícia federal tem tido um papel decisivo no apuramento de diversos crimes que causaram enorme prejuízo para o erário público. O ideal, penso eu, no entanto, é que ocorra uma integração e uma atuação conjunta. Naturalmente, existem críticas a eventuais excessos na atuação dos procuradores da República, mas creio que isto faz parte, em parte, da utilização de um instituto novo, também para nós, que é o instituto da colaboração premiada. Com certeza os nossos tribunais e, especialmente nossa Suprema Corte, ainda terão que se pronunciar sobre várias questões jurídicas controvertidas. Existem ministros da Corte Superior que questionam exatamente esse protagonismo do MP. Acham que o juiz ficou com um papel secundário, ou seja, ficou como mero homologador, sem poder de se imiscuir no mérito do acordo, podendo apenas verificar aspectos de legalidade formal. Essa discussão se acirrou em caso recente em que o Presidente da República atual, Michel Temer, teve uma conversa gravada com um empresário, o qual, após, fez um acordo com o MP para delatar o Presidente, ganhando, em troca, uma imunidade total. Os ministros de nossa Suprema Corte entenderam que a legislação não permitiria alterar os termos do acordo, e isso acabou por levar a um questionamento do instituto da delação premiada. Há no Parlamento projetos que propõem alterações na legislação processual penal e poderão ocorrer alterações legislativas na Lei que cuida da delação premiada.
VJ - No Brasil, a delação premiada tem sido largamente utilizada. Em Portugal, apesar da falta de consenso, começa a ser debatida. Que conclusões retira da experiência brasileira na utilização dessa “ferramenta de investigação” que poderão suportar a eventual regulamentação e uso da delação premiada por outros MP lusófonos?
CSL – Acredito que seja um caminho sem volta no Brasil, pois, realmente, muitas vezes, certas investigações só são desvendadas a partir de delações, especialmente em crimes de colarinho branco e financeiros. Mas, evidentemente, não se pode pensar em condenar exclusivamente com base na palavra do delator. A delação deve vir acompanhada de provas ou indicações que demonstrem a veracidade do que foi revelado para que tenha valor e a fim de que o colaborador faça jus à redução de pena e outros benefícios. Porém, no Brasil, alguns casos têm sido criticados por advogados e pela classe política. Como qualquer instituto, deve e pode ser aperfeiçoado através da experiência na sua utilização. Esperamos, no entanto, que eventual nova regulamentação no Brasil traga o seu aperfeiçoamento e melhoria, sob a ótica de todos, da colheita da prova, do investigado, do colaborador e, principalmente, de sua eficácia, sem retrocessos que prejudiquem a obtenção da provas que tanto têm ajudado a combater crimes muito graves de corrupção que tanto prejuízo têm causado à sociedade. Agora, penso ser importante aperfeiçoar a questão do sigilo da delação, da divulgação de depoimentos, etc..
VJ - É prática de algum modo comum o MP lançar mão da interceptação telefónica para suportar a acusação e obter condenação de uma pessoa. Como avalia a utilização de interceptação telefónica pelo MP para ser obter condenações? Na sua opinião, o MP tem utilizado este meio de obtenção de prova de forma adequada?
CSL – No Brasil existem leis específicas que regulamentam a interceptação das comunicações telefónicas. Só pode ser realizada para fins criminais e mediante autorização judicial segundo a nossa constituição federal. Em minha opinião, tanto o MP como a polícia têm utilizado, sim, esse instituto de forma adequada e nos casos necessários. Não me parece que existam excessos, principalmente porque há o controlo do juiz. É verdade que a jurisprudência tem-se encarregado de resolver algumas questões, como, por exemplo, o tempo em que pode ser renovado o período de escuta, a questão do encontro fortuito de provas de outros crimes e outros envolvidos, a gravação de uma conversa pelo próprio interlocutor, sem autorização judicial, etc.. Recentemente, tivemos uma questão bastante discutida: o juiz Sérgio Moro, que está à frente do caso envolvendo o ex-Presidente Lula, autorizou a interceptação de seu número telefónico e acabou havendo a escuta de uma conversa sua com a presidente então em exercício, Dilma Roussef, que, por sua qualidade, à época, só poderia ter sua conversa interceptada por decisão do Supremo Tribunal Federal. Houve divulgação na imprensa da conversa e aí surgiu a controvérsia se a prova seria válida ou não para incriminar a Presidente, na medida em que foi “sem querer” que ela teve sua conversa gravada. Essas questões ainda estão pendentes de julgamento.
VJ - Recentemente, um estudo indicou que no Brasil existiam 54.990 pessoas com foro especial por prerrogativa de função. Estão em curso duas propostas de emendas constitucionais, PEC n.º 10/2013 e PEC n.º 18/2014, nos termos das quais se pretende, respetivamente, extinguir o foro especial por prerrogativa de função em casos de crimes comuns e eliminar o foro especial por prerrogativa de função no caso da prática de crimes contra a administração pública, de lavagem de bens, direitos ou valores decorrente de crime contra a administração pública e de crimes hediondos, prevendo-se, ainda, que lei ordinária poderá limitar as hipóteses de sua aplicação. Qual a sua opinião sobre esta alteração de paradigma?
CSL – A questão do foro especial pela prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, tem sofrido muitas críticas de todos. Não penso que o “foro privilegiado” seja sinónimo de impunidade. Tivemos no Brasil o famoso caso do “mensalão” e a nossa Suprema Corte foi dura e condenou quase todos os envolvidos, políticos e empresários, a penas altas. Sem falar que a pessoa julgada por um tribunal, ao invés de um juiz singular, em caso de condenação, praticamente não tem direito a um recurso para reverter a situação. O problema é que hoje existem tantas autoridades públicas incriminadas em razão das delações que aí sim, de certa forma, inviabilizou a atuação dos tribunais, que estão atolados com esses julgamentos, que seriam mais rapidamente apreciados por magistrados de primeiro grau. Mas essa é uma questão ainda em discussão no parlamento e não sei haverá alteração constitucional tão cedo. De qualquer forma, as próprias cortes superiores já têm elaborado decisões visando restringir o “foro privilegiado” e isso parece salutar. Nossos tribunais superiores, em especial, o Supremo Tribunal Federal, só deveriam julgar casos excepcionais de autoridades, como os presidentes dos poderes, penso eu.
VJ - É defensor da incriminação das empresas. Em que medida a incriminação das pessoas coletivas pode contribuir para combater determinados crimes e permitir a prevenção de delitos? O que tem feito o Brasil neste sentido?
CSL – Penso ainda que alguns avanços legislativos deveriam acontecer. Por exemplo, no Brasil as pessoas jurídicas só podem responder criminalmente exclusivamente por delitos ambientais. Há base constitucional, a meu sentir, para a incriminação das pessoas coletivas em crimes contra a ordem económica e o sistema financeiro. Porém, penso que falta vontade legislativa de avançar nesse campo. Estou convencido de que em alguns crimes, como os societários, onde há uma dificuldade, muitas vezes, de se estipular a responsabilidade das pessoas singulares, que a melhor solução é a incriminação da pessoa coletiva.
VJ - Atenta a absoluta falta de dispositivos legais que realizem a adequação típica da conduta antijurídica da corrupção privada, é defensor da criminalização desta conduta no Brasil. Que vantagens se podem obter com a criminalização da corrupção privada?
CSL – Não temos, realmente, como ocorre em Portugal, a tipificação do crime de corrupção privada. Assim, temos visto que alguns dirigentes desportivos no Brasil estão sendo acusados de receber vantagens em razão de contratos de patrocínios firmados pelas entidades que dirigiram. A mim me parece que, ao menos no Brasil, não poderão responder por essa conduta. É uma lacuna legislativa. Veja, se o facto de receber o dirigente desportivo a vantagem indevida não constitui a figura de corrupção privada, por falta de previsão legal, penso que consequência imediata é afastar o delito de branqueamento de capitais, pois este delito, para sua configuração, pressupõe um delito anterior. Evidentemente, a importância maior é combater a corrupção passiva por parte do agente público, em razão dos interesses que estão em jogo. Entretanto, não se pode fechar os olhos e deixar impune certas condutas que atentam contra o interesse privado, como a hipótese de um funcionário ou diretor de uma empresa que recebe uma indevida vantagem para realizar um ato, muitas vezes, contrários ao interesse da empresa.
VJ - Que alterações recomendaria, em benefício da persecução penal, mas sem beliscar a soberania dos países, para a facilitação de processos de extradição, em especial de pessoas com dupla nacionalidade em países lusófonos (a do país que pede a extradição e a do país requerido)?
CSL – Acho que todo o regramento que agilize e permita um maior combate ao crime, em especial, ao crime organizado, é importante. A criminalidade está cada vez mais globalizada, principalmente quando se têm em conta só os crimes praticados através da internet, como os casos de pedofilia. Lógico que se deve sempre respeitar a soberania e a legislação de cada país. Penso ser fundamental que cada vez mais se aperfeiçoem os tratados de colaboração internacional e que facilitem, por exemplo, a extradição de criminosos para os países que devem ter prioridade no julgamento. O problema é que, muitas vezes, as próprias constituições dos países impedem a extradição de seus nacionais. Mas deveriam os países discutir regras que possam tentar unificar essas normas. A questão da autoridade central para resolver esses problemas é outra questão delicada. Acredito que, fora dos casos de extradição, em relação à colaboração para a obtenção de provas, seria conveniente que o MP, por sua natureza e vocação, pudesse estar na frente.