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O direito de retenção do empreiteiro

De acordo com o disposto no artigo 1207º do Código Civil, a empreitada é definida como “O contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”, pelo que, os elementos integrantes do contrato de empreitada são os seguintes: (i) os sujeitos, mais concretamente, a entidade que encarrega outrem de executar uma obra (o “dono da obra”) e o empreiteiro; (ii) a realização da uma determinada obra e (iii) o pagamento do preço.
Ou seja, o contrato de empreitada é um contrato oneroso, pelo que, as duas principais obrigações sinalagmáticas subjacentes ao mesmo, consistem na realização da obra por parte do empreiteiro e no pagamento do preço por parte do dono de obra.
No âmbito deste contrato, tem surgido várias questões problemáticas na nossa doutrina e jurisprudência, relacionadas com a atribuição ou não ao empreiteiro do direito de retenção sobre a obra em construção ou já construída, caso o dono de obra não proceda ao pagamento do preço da empreitada, bem como, sobre a graduação do respectivo crédito, nomeadamente perante os demais credores beneficiários de hipoteca sobre o prédio em obra, no decurso dos processos executivos ou de insolvência do dono de obra.
Actualmente, de forma praticamente unânime, reconhece-se que o empreiteiro goza do referido direito de retenção sobre a obra em construção ou já construída, quer para garantia das despesas já efectuadas, quer ainda para garantia do pagamento do próprio preço (com excepção da situação prevista no art. 1212º nº 1 do CC).
Efectivamente, a polémica instaurada entre os defensores da tese negacionista que se sustentavam essencialmente na posição defendida por Pires de Lima e Antunes Varela, e os defensores da tese positivista, encontra-se praticamente extinta, no sentido de ser hoje pacífico o reconhecimento ao empreiteiro do direito de retenção.
De facto, a posição defendida por aqueles Autores, in “Código Civil Anotado, Volume II, Pág. 875 e ss”, segundo a qual, não poderia ser reconhecido o direito de retenção ao empreiteiro, isto porque, , não só o respectivo crédito não figura em nenhuma das alíneas excepcionais previstas no art. 755º do Código Civil, como também, porque o crédito do empreiteiro não pode estar abrangido pelo art. 754º do CC, dado que,  tendo o mesmo por objecto o preço da empreitada, este não deve  ser confundido com despesas feitas por conta da coisa, não nos parece, efectivamente, a mais adequada à situação em análise.
Ao invés, concordamos inteiramente com a posição positivista, pelo seguinte somatório de razões:
    (i) O artigo 755º do Código Civil, deve ser interpretado como uma norma meramente exemplificadora de situações tipo em que se pode verificar o direito de retenção e não com uma norma redutora ou impeditiva no sentido de não ser atribuído tal direito a outras situações, interpretação esta que, aliás tem como suporte a palavra “ainda” constante do referido preceito legal;
(ii) A norma delimitativa dos pressupostos em que se funda o direito de retenção consta do art. 754º do CC, pelo que, quando numa determinada situação se verifiquem os requisitos aí referidos, deverá aplicar-se tal instituto;
(iii) Não se verifica a necessidade de existir uma disposição normativa específica, no âmbito da qual, seja expressamente atribuído ao empreiteiro o direito de retenção enquanto não lhe for pago o preço, isto porque, no caso da empreitada, o crédito encontra-se intrinsecamente ligado à coisa, existe uma conexão objectiva entre o crédito e a coisa (debitum cum re iunctum), ou seja, o que se pretende obter é o pagamento das despesas que o empreiteiro suportou ou a indemnização dos prejuízos que em virtude da mesma sofreu, pelo que, esta situação encontra-se plenamente abrangida pelo art. 754º do Código Civil.
Sendo assim, desde que, por um lado, não se verifique nenhuma das situações de exclusão do direito de retenção previstas no art. 756º do Código Civil e, por outro, se encontrem reunidos os pressupostos para que o empreiteiro exerça o direito de retenção, nomeadamente que: (i) detenha licitamente a coisa, podendo, inclusivamente, recorrer às acções possessórias previstas nos arts. 1276º e ss do Código Civil para fazer valer os seus direitos; (ii) tenha a obrigação de entregar essa coisa a outrem; (iii) seja credor desse outrem e (iv) entre o crédito e a coisa entregue exista uma conexão causal, consideramos que, não existe qualquer impedimento a que o empreiteiro exerça e lhe seja reconhecido o respectivo direito de retenção.
Por outro lado, outra questão que tem suscitado alguma polémica está relacionada com a graduação do crédito do empreiteiro, mais concretamente, sobre a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca no que tange ao imóvel alvo da obra, ainda que a hipoteca tenha sido registada anteriormente.
De acordo com o nº 2 do art. 604º do Código Civil “São causas legitimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção”.
Ou seja, quer o direito de retenção, quer a hipoteca, entre outros, estão classificados como direitos reais de garantia.
Porém, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 759º do Código Civil “O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente”, pelo que, a questão que se pode colocar é por que motivo atribuiu o legislador esta prioridade ao direito de retenção em relação à hipoteca, consagrando uma verdadeira excepção quer à hierarquia dos credores, quer ao princípio da prioridade do registo.
Sucede que o direito de retenção não só tem uma função de garantia, como também tem uma função coercitiva, ou seja, o empreiteiro tem a faculdade de legitimamente recusar proceder à entrega da coisa até ser ressarcido do seu crédito, pelo que a prioridade que é conferida ao direito de retenção está directamente relacionada com a verdadeira tutela possessória de que o empreiteiro goza em relação ao imóvel.
Acresce que, o crédito do empreiteiro tem subjacente a celebração de um contrato de empreitada, no âmbito do qual, este comprometeu-se a uma obrigação de resultado, tendo como contrapartida o direito ao pagamento do preço, ou seja, o empreiteiro comprometeu-se a realizar uma determinada obra, pelo que, é manifestamente inequívoco que, este direito de retenção que é conferido ao empreiteiro está intrinsecamente relacionado com as despesas efectuadas com a coisa, tal como é definida no art. 754º do Código Civil.
E, finalmente, não podemos deixar de considerar que, esta prevalência do direito de retenção, nomeadamente, sobre os credores hipotecários, também está directamente relacionada com a mais-valia, com o beneficio que a execução dos trabalhos realizada pelo empreiteiro acarretou para o imóvel, nomeadamente, para o aumento do seu valor de mercado, pelo que, não seria legítimo, nem legalmente admissível, que os credores hipotecários viessem a obter um enriquecimento sem causa justificativa e à custa das despesas e dos trabalhos executados pelo empreiteiro.
Em síntese, é hoje pacífico o reconhecimento do direito de retenção ao empreiteiro, verificados que sejam os requisitos legalmente exigíveis, gozando, nesses casos, de prioridade em relação a hipoteca que possa incidir sobre o imóvel, ainda que com registo prévio ao nascimento do direito de retenção.
Carla dos Santos Freire Sócia RSA-LP, 21/09/2021
 
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