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Nuno Magalhães, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Lisboa, considera

Candidatura da Ucrânia à UE deve ser bem ponderada

“Na União Europeia, devemos ser tão solidários quanto exigentes. Solidários na aceitação e elaboração dos dossiês de candidatura e na concessão do estatuto de candidato, mas exigentes no escrutínio do seu cumprimento. E, na minha opinião, e por muito que possa ser considerada “fria” esta análise, ela deve ser aplicada em qualquer caso, incluindo à candidata Ucrânia que, não nego, será sempre uma candidata com especificidades próprias, que devem ser ponderadas, mas nunca ao ponto de, em nome de interesses conjunturais, ponderosos, não podem, ainda assim, sobrepor-se àqueles valores”, afirma Nuno Magalhães, professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Lisboa.


Um dos intervenientes em relações internacionais são os Estados. À luz do panorama de hoje em dia a nível mundial, como se evita que princípios fundamentais como Estado-nação e soberania sejam postos em causa?
A procura de uma resposta para a sua pergunta resultou na consagração do Direito Internacional Público (DIP) como ramo autónomo do Direito. Tem, por isso, séculos na aspiração e sete décadas na insistência, com o denominado modelo moderno ou da Carta das Nações Unidas do DIP. Ou seja, a pergunta não tem resposta fácil… A verdade é que, apesar dos inegáveis progressos, a sociedade internacional ainda não foi capaz de se constituir na tal comunidade internacional que Immanuel Kant sonhou no seu extraordinário “À Paz Perpétua” e, como bem ensina o Senhor Professor Francisco Ferreira de Almeida, o voluntarismo, enquanto doutrina dominante da atuação dos Estados nas relações internacionais, não despareceu com as organizações internacionais globais enquanto novo sujeito de Direito Internacional. Quando muito, tornou-se mais exigente se me permite a ironia…
Por outro lado, tendo sido criada no contexto em que foi e pelos Estados que foi, está indelevelmente marcada por esse contexto que, manifestamente, há muito já não existe, ou, pelo menos, transformou-se. A guerra fria e o mundo “bipolar”, dividido entre Leste e Oeste, socialismo e capitalismo, liberdade e opressão, já não existe. Mas quem, como por exemplo Francis Fukuyama, proclamou o “fim da História” com a queda do Muro de Berlim, e o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a consequente criação de novos Estados e progressiva integração na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte, manifestamente, parece-me ter exagerado no otimismo. A ONU precisa de se reformar, todos o reconhecemos há tempo de mais, diria, mas a ONU é composta pelos Estados e a verdade é que os Estados nunca mostraram grande interesse em que isso acontecesse. Quando confrontados com a ineficácia das decisões da ONU, com o direito de veto ou até de duplo veto, todos somos muito céleres em criticar e apontar deficiências, mas quando se apresentam propostas concretas para alterar o “estado da arte” tudo se torna mais difícil, pela simples razão de que os Estados, sobretudo aqueles que são membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e que gozam de direitos acrescidos, não se mostram interessados.
Percebo Jürgen Habermas quando propõe reforçar o poder da ONU através da redução das suas competências ao seu fim fundador – a promoção e manutenção da paz mundial e a defesa dos Direitos Humanos –, pois a dispersão de funções e competências não tem ajudado na sua afirmação, mas outras propostas como a criação de uma Constituição Democrática Mundial com normas de ius cogens de conteúdo mínimo, ou de um Parlamento Mundial, parece improvável, para não dizer mesmo impossíveis de concretizar nas próximas décadas.
Temos de aceitar que o Direito Internacional Público é um processo contínuo, inacabado por natureza e pela sua própria natureza, pois regula as relações jurídicas entre sujeitos de Direito Internacional e esses são, sobretudo, Estados soberanos. Ora, regulando relações entre Estados soberanos, estará sempre dependente da forma como esses mesmos Estados soberanos exercem a sua soberania, mais ou menos de acordo com a legalidade.
Como estamos, infelizmente, a constatar, ainda há Estados que confundem poder soberano com poder absoluto e quando assim acontece é muito difícil de respeitar princípios básicos de direito natural, diria até. Um dos factos que mais me impressionaram do ponto de vista do Direito neste conflito entre a Rússia e a Ucrânia foi o facto de a Rússia nem tão pouco ter invocado um pretexto, um facto falso, um suposto estado de necessidade ou uma legítima defesa, mesmo que sem fundamento, para justificar a sua “operação militar especial” na Ucrânia. Isso dá-nos a dimensão da loucura desta agressão e a irracionalidade é muito difícil de regular por normas de conduta.   

Ainda focado na situação bélica mencionada, que análise faz às sanções internacionais impostas à Rússia no quadro de guerra em que vivemos? Considera que as mesmas são suficientes e/ou adequadas?
Parece-me que, mais do que suficientes ou insuficientes, são as sanções possíveis… Por muito que o que vemos, lemos e ouvimos ofenda a nossa consciência, e ofende, estou em crer que seria um erro com consequências imprevisíveis qualquer reação mais “musculada” por parte da NATO por “muito preventiva” que pudesse ser. Estas sanções, sob a forma de contramedidas e represálias, foram as mais duras que alguma vez a sociedade internacional, particularmente o Ocidente, tomou. As consequências económicas e sociais para a Rússia serão, e creio que já estarão a ser, muito difíceis. É certo que também estão a ser para quem as aplica, pois as sanções repercutem-se a prazo e as consequências no imediato, mas temos que nos habituar que o mundo mudou desde março. Não é retórica, é a realidade.  
 
Considera contraditória a aplicação de sanções por parte de países que em simultâneo mantêm relações de interdependência com países não cumpridores de acordos internacionais?
Sim, são contraditórias, mas os Estados, tal como as pessoas, são contraditórios nas suas aspirações e objetivos. O mundo é contraditório e um mundo global como o nosso, em que todos dependem de todos, ainda mais. Não quero transformar esta entrevista numa apologia à “real politique” diplomática, mas a realidade é sempre um bom ponto de partida para qualquer análise, e a realidade diz-nos que um mundo “não contraditório” seria seguramente um mundo mais perigoso, porque muito menos regulado pelo Direito Internacional Público. O mundo de Westfália, do século XVIII ou XIX, era muito menos contraditório que o atual. Havia países amigos e inimigos, alianças militares e combates militares. Era mais simples, mas muito mais perigoso.
Se bem percebo onde quer chegar com a pergunta, à China, deixe-me dizer-lhe que penso que um conflito desta natureza, e com as contramedidas que foram aplicadas, com a China seria catastrófico para todos. E este não é um cenário académico, basta ver o que está a acontecer com Taiwan… A posição da China neste conflito é ainda pouco clara, há que estudá-la e tentar compreendê-la melhor. A verdade é que, aparentemente e nas decisões mais críticas, como as sanções, não afrontou a Rússia, para dizer o mínimo, mas, não menos verdade e se olharmos mais profundamente para as alianças que sempre se formaram nas Nações Unidas e no Conselho de Segurança, a China tem mantido uma prudente distância com a Rússia e isso tem também um significado. Qual é esse significado? Desde logo que a China não está disposta a sacrificar a sua economia em nome das suas alianças geopolíticas e ideológicas e só isso é uma alteração profunda, para não dizer um avanço. Estamos a viver mudanças muito profundas num curto espaço de tempo e o pragmatismo, preferiria dizer o bom senso, é bom conselheiro. Em qualquer ocasião, mas sobretudo nestas…       

Na sua óptica, a solução para que as relações na sociedade internacional prosperem de forma sustentável, é necessário um alargamento da União Europeia e dos seus ideais? Ou que outra solução considera pertinente?
Quem, como eu, acredita no respeito pela dignidade humana, na liberdade, na democracia, na igualdade, no Estado de Direito e no respeito pelos Direitos Humanos, baseados numa sociedade internacional caraterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres, não pode deixar de responder afirmativamente à sua pergunta. Estes, e intencionalmente citei o artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE) que consagra os valores fundamentais da União Europeia, devem ser o primeiro critério dos processos de adesão. É um bom sinal para a sociedade internacional que cada vez mais Estados pretendam defender e a aplicar estes valores, mas é nesta parte, na da aplicação, que devemos ser prudentes. Primeiro, e na União Europeia, devemos ser tão solidários quanto exigentes. Solidários na aceitação e elaboração dos dossiês de candidatura e na concessão do estatuto de candidato, mas exigentes no escrutínio do seu cumprimento. E, na minha opinião, e por muito que possa ser considerada “fria” esta análise, ela deve ser aplicada em qualquer caso, incluindo à candidata Ucrânia que, não nego, será sempre uma candidata com especificidades próprias, que devem ser ponderadas, mas nunca ao ponto, de em nome de interesses conjunturais, ponderosos, não podem ainda assim sobrepor-se aqueles valores. Creio até que a União Europeia terá cometido um erro quando foi condescendente com alguns Estados no denominado grande alargamento do início do século, privilegiando argumentos geopolíticos, em detrimento de uma análise mais objetiva daquelas candidaturas em matéria do cumprimento dos critérios quanto aos valores da União. E a verdade é que, poucos anos depois, assistimos a processos instaurados pela União a Estados-membros nos termos do artigo 7.º do TUE, precisamente por violação daqueles valores.
Segundo, e não menos importante, a Europa e a União Europeia devem ser suficientemente humildes para perceber que outras organizações transnacionais regionais existem e também delas pode retirar ensinamentos. Se o Mercosul ainda é uma organização muito débil em matéria de regulação e consagração dos direitos fundamentais, e quase exclusivamente dedicada a questões económicas, no campo conceptual, e admito que sobretudo nesse ponto de vista, a União Africana tem nos seus Tratados ideias interessantes em matéria de proteção dos direitos fundamentais, como a criação do Tribunal Africano de Justiça que tem um conjunto de competências que me parecem ser de estudar e eventualmente consagrar nos Tratados da União.      

Fruto de diversas variantes, nomeadamente, situações de conflito armado, crises económico-financeiras, governos totalitários, entre outros, a União Europeia tem sentido um enorme fluxo de migração. Considera as actuais políticas europeias suficientes para fazer frente a estes problemas ou acha pertinente a existência de uma política migratória comunitária onde cooperação e sentido de proteção são fundamentais?
Acho que são insuficientes, e continuarão a ser, porque partem de uma premissa errada. A premissa errada é precisamente o facto de a regulação desses fluxos basear-se em políticas dirigidas a um espaço, como o da União, de liberdade total de circulação de pessoas. Encarar os fluxos migratórios partindo de uma perspetiva estadual para uma perspetiva interestadual, que é o que tem sido feito, creio que está condenado ao insucesso. Não sou adepto de um modelo federalista para a União Europeia, mas estou em crer que há questões em que, pela sua natureza, é preciso reforçar as competências e atribuições da União e dos órgãos da União Europeia. Matérias transversais, como é o caso de gestão de migrações ou do combate ao crime transnacional, por exemplo, é imperativo serem exercidas de forma centralizada e ao nível europeu. Neste sentido, creio que a criação do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança não obteve os resultados esperados e tem-se revelado um cargo mais representativo ou simbólico do que executivo, sendo muitas vezes ultrapassado pelo Conselho Europeu e, pior, por alguns Chefes de Estado, unilateralmente e com um mandato precário para dizer o mínimo, e isso não é bom nem para resolver o problema nem para reforçar a coesão da União Europeia. Devemos insistir no aprofundamento do processo de integração europeia nestas áreas.    

Desempenhou o cargo de Secretário de Estado da Administração Interna com a tutela dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras. Que impacto acontecimentos como o do SEF, em 2020, têm na imagem de Portugal internacionalmente?
O que se passou no SEF com um cidadão ucraniano foi muito grave. Não consigo até vislumbrar outro facto que possa ser mais grave que um cidadão ser torturado e assassinado quando está sob custódia de um serviço de segurança, e isso tem sempre repercussões internacionais. Dito isto, e sendo o mais claro possível neste ponto, creio que a reação do anterior Governo não terá sido a mais racional ao extinguir um serviço de segurança que tem prestígio internacional, que já presidiu à Frontex (Agência Europeia de Guarda de Fronteiras Costeiras), que desenvolveu um sistema de concessão de vistos que foi pioneiro ao nível europeu e que trouxe enorme prestígio ao país. Mais ainda quando a Europa e o Mundo se encontram no meio de um conflito internacional com consequências ainda imprevisíveis. Considerando até que poderia haver necessidade de revisitar algumas das competências e atribuições do SEF, creio que foi um erro extingui-lo. E a realidade demonstra-o. Não é preciso conhecer profundamente os serviços para saber que não é fácil, do ponto de vista operacional, administrativo e até financeiro, extinguir o SEF. Creio que o novo Ministro da Administração Interna, que conheço e prezo, tem consciência disso mesmo e está a fazer o possível para minimizar o que considero ter sido uma decisão errada. Neste contexto, não ter um serviço de segurança específico de controlo de fronteiras, com a designação que se queira dar (e que a meu ver pode e deve ser o de sempre - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) é uma errónea perceção da realidade e estou convencido que o Senhor Ministro da Administração Interna tem consciência disso mesmo.  

A situação pandémica, para além de instaurar uma crise sanitária, fez-se sentir, também, através de uma forte recessão económica a nível internacional. Que medidas devem os países implementar de forma que se consiga retomar uma fase de crescimento económico?
Não tenho uma resposta concreta a essa pergunta e tão-pouco a pretensão de ter uma solução para um contexto que será dos mais complexos desde meados do século XX. O que posso tentar é partilhar umas ideias sobretudo sobre o que não se deve fazer: repetir erros do passado. Quais? Não responder às dificuldades com mais protecionismo, mais nacionalismo, não ter a tentação do imediato, do populismo, de processos como o denominado “Brexit,” que pode garantir votos e governos, mas que a longo prazo só gera mais tensões, como vemos, e veremos, na Grã-Bretanha com questões muito interessantes do ponto de vista do Direito Internacional, como a do invocado direito de autodeterminação da Escócia ou da unificação das Irlandas, mas perigosas para a estabilidade europeia. Creio que a União Europeia deve ser solidária e manter, se possível reforçar, este caminho de cooperação e assistência mútua que a pandemia e a crise na Ucrânia, ironicamente para Vladimir Putin, nos trouxe, e por muito que se queira afirmar o contrário. Deve ser capaz de partilhar, inovar e investir no que tem de melhor – os recursos humanos e o conhecimento, de forma aberta para o mundo, assumindo sem complexos, nem de superioridade nem de inferioridade, o papel central que desempenha desde meados do século passado. Se o fizer, não sem dificuldade, creio que poderá ultrapassar esta fase que será muito complexa, difícil e dolorosa, temo.     

No mesmo seguimento, e sendo Portugal um país maioritariamente exportador, que linhas orientadoras devemos seguir por forma a reforçar a nossa posição no comércio internacional?
Portugal deve acompanhar o esforço conjunto da União Europeia, mas tem também de resolver problemas que são seus e que há muito tem adiado. Não gostaria, permita-me, de desenvolver muito esta resposta, pois ela tem mais de política do que de académica, mas é conhecido que Portugal tem um problema sério de excesso de dívida pública, e outro de produtividade, que é uma economia assente em baixos salários, e não são só os mínimos, são também, e até sobretudo a meu ver, os médios… Os dos jovens licenciados, os dos mestres e dos doutorados, da dita, e bem, geração mais qualificada de sempre, que “só” o é verdadeiramente nas habilitações académica… E isso é profundamente injusto, amplifica a nossa falta de competitividade à escala global e promove a emigração de jovens que, compreensivelmente, num mundo e numa geração global, procuram melhor vida. Depois, Portugal tem de saber juntar à “riqueza” do turismo outras fontes de riqueza que não sejam apenas as dos produtos em que somos tradicionalmente competitivos e onde enfrentamos um insolúvel problema de escala. Como o País não vai crescer territorialmente, é preciso inovar, especializar e formar e é neste ponto que a academia tem de desempenhar um papel disruptivo para usar um “termo da moda.” Cabe ao Estado dar-lhe condições para tal, mas também cabe à academia reclamar esse papel, que é o seu. Mas isso daria outra entrevista, porventura…        
21/07/2022
 
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