Contrato social da União Europeia pode estar em risco

A curto/médio prazo, a União Europeia pode vir a enfrentar vários desafios, tais como “subida dos preços da energia, inflação, recessão, estagflação, aumento do custo de vida, diminuição de poder de compra. Tudo isto, seguido de contestação e agitação social que vai corroer a legitimidade de governos. Ou seja, o nosso contrato social pode ser posto em causa (já vinha ferido da pandemia e beliscado da crise financeira de 2008/2013), dando margem a que outras fórmulas políticas possam vir a ser poder”, afirma Felipe Pathé Duarte, investigador e professor na NOVA School of Law, coordenador do Master’s Degree in Law & Security.
Tendo em conta o seu papel como analista em assuntos de segurança internacional, que análise faz à intervenção militar levada a cabo pela Rússia, resultante das conhecidas anexações territoriais e violadora do princípio da autodeterminação dos povos?
Ao contrário do que se esperava, trata-se de uma guerra com uma lógica muito convencional, quase napoleónica na sua forma, mas cujas motivações vão para além da dimensão lógica estratégica que estamos habitados no Ocidente. Tem um pendor profundamente ideológico e identitário, que impele o Kremlin a ver na anexação territorial uma legitimidade.
No âmbito do Direito Internacional, considera que as ações de ocupação e invasão propugnadas pela Federação Russa poderão ser responsabilizadas criminalmente?
Deveriam ser. Mas depende de muitas variáveis, nomeadamente do resultado da própria guerra. Mas o Tribunal Penal Internacional já está a abrir investigações sobre crimes de guerra. E há uma cadeia de comando das forças armadas russas que leva directamente ao Kremlin. Agora, não há mecanismos para obrigar a Rússia a extraditar suspeitos para que possam ser levados a julgamento.
Considera que a União Europeia deverá tomar uma posição perante tal panorama e resultantes problemas? Se sim, como e em que termos? Se não, porque não?
Sim. A geografia a isso obriga. Nos termos que tem vindo a ser feito.
Na perspetiva antropologicamente cética, o Homem é caraterizado como mau por natureza e a guerra uma vontade intrínseca ao mesmo, o que torna a paz uma exceção merecedora de manutenção significativa. Nesse prisma, considera que (e quais) os organismos internacionais que sobre nós impedem deveriam atuar pelo bem maior que é a paz mundial e a vida? Em que termos e condições?
Tendo uma matriz realista na análise, sou céptico relativamente ao papel da imposição de organismos internacionais. A legitimidade é sempre contestada ou manobrada, escudada numa suposta moralidade e/ou neutralidade – com resultados nulos, que podem ser perniciosos. Repare-se nos bloqueios do Conselho de Segurança da ONU, ou na irrelevância da Sociedade da Nações na Segunda Guerra. Numa forma muito genérica, respondendo à questão, acho mais eficaz a concertação entre Estados, no sentido de uma anarquia madura (citando o Professor Adriano Moreira), que mecanismos “impositivos” da chamada Comunidade Internacional.
Em geral, a curto/médio prazo, quais considera serem os mais latejantes desafios que a União Europeia virá a enfrentar?
Aumento dos preços da energia, subida da inflação, recessão, estagflação, aumento do custo de vida, diminuição de poder de compra... Tudo isto, seguido de contestação e agitação social que vai corroer a legitimidade de governos. Ou seja, o nosso contrato social pode ser posto em causa (já vinha ferido da pandemia e beliscado da crise financeira de 2008/2013), dando margem a que outras formulas políticas possam vir a ser poder. A Europa, e bem, já não está preparada para este tipo de abalos. Putin sabe disso.
Concretamente, tendo em conta os acontecimentos de 2014, era possível antecipar a situação que se vive atualmente e implementar medidas preventivas? A entrada planeada da Ucrânia na União Europeia ou na NATO poderia ter funcionado como elemento dissuasor?
Quanto à primeira questão – sim, pelo menos desde Fevereiro 2007 que tudo isto vinha sendo anunciado. É bom lembrar o discurso de Putin na Conferência de Segurança de Munique. Os avisos estão lá todos. Quanto à segunda questão, não me parece que essa fosse a solução.
Muito se tem falado de conceitos relativamente revivalistas: imperialismo russo, guerra fria, entre outros. De um ponto de vista geopolítico, considera que esta invasão ira exigir um reequacionamento perene dos agentes e forças políticas internacionais?
Sem dúvida. O realismo nas relações internacionais sobrepôs-se a uma perspectiva mais construtivista que marcou o final da Guerra-Fria. Mas temos de ter cuidado com a retórica binária de democracia vs. autoritarismo, que enquadra esta guerra. Embora útil, porque dá propósito, pertença e justifica sacrifícios, a médio prazo, esta lente interpretativa pode custar-nos (ao Ocidente) um preço elevado. São slogans que, se não forem restringidos, vão complicar opções estratégicas.
Desde fevereiro, a UE impôs seis pacotes de sanções contra a Rússia, incluindo medidas restritivas específicas (sanções individuais), sanções económicas e medidas diplomáticas. Na sua opinião as sanções referidas são suficientes para pôr cobro, ou fragilizar, a invasão militar em curso?
Em teoria, sim. As sanções são um instrumento coercivo para evitar confronto militar cinético. Mas pode levar muito tempo até os resultados desejados. Na prática, as consequências não intencionais das sanções podem ter um efeito complexo – a Rússia não é o Iraque ou a Venezuela. E depois, a longo prazo, a pressão na sociedade civil pode legitimar ainda mais o poder que se ataca.
O facto de a União Europeia manter relações de interdependência com a Rússia, nomeadamente ao nível da energia, havendo uma enorme e histórica dependência da importação de gás natural, pode dificultar o objetivo dos pacotes sancionatórios?
Precisamente.
Tendo em conta o panorama internacional atípico que vivemos, com a consequente recessão económica, a nível mundial, quais considera, ainda, serem os maiores problemas jurídicos passíveis de surgir num futuro próximo?
Vários. Mas, não sendo jurista, remeto para os riscos da renovação do contrato social e, resultante da guerra, talvez para o Direito Internacional Humanitário.