Um observatório explicador das DAO, um dos novos fenómenos da web3

Um grupo de juristas juntou-se para trabalhar uma definição de DAOs.
À “Vida Judiciária”, salientam tratar-se de formas de organização humana baseadas na tecnologia Blockchain – as conclusões fazem parte de um projeto em curso.
À “Vida Judiciária”, salientam tratar-se de formas de organização humana baseadas na tecnologia Blockchain – as conclusões fazem parte de um projeto em curso.
Vida Judiciária – Em que consiste o projeto Lisbon DAO Observatory? Qual o motivo para a sua criação?
O Lisbon DAO Observatory é um projeto de investigação que procura encontrar respostas para os problemas jurídicos colocados pelas organizações autónomas descentralizadas, conhecidas pelo seu acrónimo em língua inglesa “DAO” (Decentralised Autonomous Organisations).
Através de uma abordagem simultaneamente empírica e jurídica, queremos dar resposta aos temas jurídicos fascinantes levantados por estas novas formas de organização humana, com o objetivo final da elaboração de um policy paper com recomendações de abordagens legislativas ao fenómeno.
VJ – Qual o papel do Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP) no desenvolvimento científico deste inovador projeto?
O Lisbon DAO Observatory é a manifestação externa do projeto “Crafting Legal Responses to Blockchain-Based Decentralised Business Arrangements and Organisations”, que se desenvolve dentro do Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O CIDP tem assumido um papel muito ativo no avanço, desenvolvimento e difusão do conhecimento jurídico, não apenas nos temas clássicos, mas também em temas mais modernos.
Pense-se nos temas de FinTech que, há bem poucos anos e antes da intervenção do CIDP, quase não mereciam atenção em Portugal.
Podemos dizer que o CIDP, para além de disponibilizar os recursos materiais e humanos para ajudar a concretizar os objetivos do projeto, tem tido este importante papel de incentivar a procura de novos temas e desafios jurídicos, tendo servido como importante motivador para a equipa do projeto.
VJ – O que se pode entender por organizações autónomas descentralizadas (ou DAOs, para abreviar) e qual o seu principal objetivo?
Tal como muitos outros fenómenos de Web3 e com base em Blockchain, é difícil apresentar uma definição final de DAOs, mas podemos dizer que são formas de organização humana baseadas na tecnologia Blockchain nas quais várias pessoas juntam ativos (geralmente, mas não necessariamente, criptoativos) para a prossecução de um determinado fim (lucrativo ou não).
O que as torna diferentes de outras formas de organização humana é a circunstância de procurarem ter uma gestão largamente automatizada e descentralizada, substituindo o tradicional papel da administração, gestão ou direção por um misto de smart contracts e de gestão direta pelos seus membros.
Assim, são descentralizadas na medida em que não têm uma gestão ou administração centralizada e a maioria das decisões políticas importantes são feitas pelos seus membros, numa tentativa de mitigação do tradicional problema de agência. São autónomas porque muitas das competências tradicionalmente alocadas ao órgão de administração, gestão ou direção são atribuídas a um smart contract, que as executa sem intervenção humana.
VJ – Qual a relação existente entre o conceito de Blockchain e o conceito de organizações autónomas descentralizadas?
A relação é muito simples – as DAOs usam a tecnologia Blockchain como base. O seu património é geralmente composto por criptoativos, ativos cuja titularidade é determinada pela Blockchain; a qualidade de participante adquire-se, regra geral, com a detenção de um criptoativo, cuja titularidade é determinada através da Blockchain; e os processos de tomada de decisão automatizados são feitos com recurso a smart contracts, que funcionam com base na Blockchain. A relevância jurídica da Blockchain é, aqui, igual a qualquer outro fenómeno afim – ela é um registo privado que determina a titularidade de várias unidades de ativos e, consequentemente, a legitimidade para a sua transmissão.
VJ – Será plausível considerar a estrutura de uma DAO semelhante a uma criptoempresa? Caso contrário, que diferenças existem?
Na falta de regulação legal específica, podemos dizer que as DAOs se aproximam das sociedades civis ou comerciais por terem como base uma relação semelhante – várias pessoas juntam ativos para levar a cabo uma atividade comum, de onde podem ou não retirar ganhos (geralmente retiram, mesmo que não sob a forma dos tradicionais lucros, embora em certos casos as contrapartidas possam ser menos óbvias ou não patrimoniais). Por outro lado, divergem das sociedades de capitais (em Portugal, sociedades por quotas e sociedades anónimas) por não quererem adotar uma administração ou gerência centralizada (antes pelo contrário, procuram acabar com o problema de agência eliminando tal órgão), sendo a tomada de decisões tradicionalmente reservada a esse órgão distribuída entre os membros e o smart contract. Apesar da sua denominação, poucas ou nenhumas DAOs são 100% descentralizadas – a nossa experiência no Projeto mostra que as DAOs têm sempre algum grau de centralização (mesmo que não desejado) para ultrapassar alguns bloqueios internos, para tornar certos processos mais eficientes ou para assegurar algum controlo de legalidade quanto às decisões tomadas pela comunidade.
VJ – Poderão as DAO’s tornar-se ferramentas organizacionais generalizadas? Quais os seus desafios legais?
Não fazemos esse tipo de especulação no Lisbon DAO Observatory. Observamos com atenção e curiosidade este novo fenómeno, que pode generalizar-se no futuro. Em antecipação a tal possibilidade, identificamos os problemas jurídicos que apresentam. O mais significativo é a sua qualificação jurídica – enquanto as DAOs não tiverem um regime jurídico próprio, serão consideradas sociedades civis na generalidade dos ordenamentos jurídicos. Tal qualificação traz o problema da responsabilidade ilimitada e solidária dos membros, situação altamente indesejável tanto para os membros como para os terceiros que interajam com a DAO. Outros desafios incluem o direito aplicável, responsabilidade civil, execução coerciva de dívidas, responsabilidade penal (resultante da difícil articulação com o regime do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo), o estatuto fiscal e ainda as dificuldades de interação com o mundo real off-chain. Outro desafio importante, apesar de não ser um desafio exclusivo das DAOs, é a determinação do regime jurídico aplicável aos criptoativos detidos pelos participantes das DAOs.
VJ – Quais sãos os benefícios que podem conduzir a que uma entidade ou grupo coletivo de indivíduos possa querer seguir uma estrutura DAO?
Existem motivações variadas para começar uma DAO. A falta de uma administração ou gestão apela a quem queira uma organização gerida de forma mais horizontal ou democrática em modelo bottom-up, bem como mais transparente (pois tudo fica registado na Blockchain), permitindo que pessoas com interesses semelhantes se associem no desenvolvimento de um projeto no qual podem ter um envolvimento direto, sem a existência de uma tradicional estrutura hierárquica de organização. Outros preferirão usar uma DAO pela flexibilidade na configuração de estruturas de governo e de participação, bem como dos fins. Outros terão certamente motivações menos honestas, atraídos pela ambiguidade e pseudonimato associado às DAOs.
VJ – Na atualidade, quais são as organizações autónomas descentralizadas com maior impacto no mercado e em que consiste o seu modelo diferenciador?
Duas das maiores DAOs com quem temos tido oportunidade de trabalhar são a MakerDAO, pioneira nos serviços de finança descentralizada (Decentralised Finance ou DeFi) e a Aragon, uma DAO que disponibiliza uma plataforma de criação de outras DAOs.
VJ – No que toca à divulgação deste novo modelo organizacional e desenvolvimento da investigação, que projetos se encontram em funcionamento? Existem futuras iniciativas idealizadas? Se sim, em que consistem?
Estamos neste momento a preparar um e-book com artigos, escritos por autores baseados em várias jurisdições diferentes, sobre o estatuto das DAOs nos respetivos ordenamentos. Temos também planeado, para abril, um evento, a realizar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sobre perspetivas de regulação de DAOs, em que se discutirá como deve ser a abordagem legislativa a este fenómeno. Outras iniciativas dirigidas a fomentar e alargar o estudo das DAOs estão também a ser estudadas: esperamos em breve conceder bolsas para estudantes que pretendam aprofundar os seus estudos neste tema, seja em trabalhos de pós-graduação, seja em teses de Mestrado. O sucesso da Lisbon DAO Hackathon, que ocorreu no final de outubro e início de novembro de 2022, motivou-nos para replicar a iniciativa na segunda metade de 2023. Entretanto, continuaremos a observar e a dialogar com várias DAOs existentes no mercado, de forma a melhor perceber os desafios com que estas se defrontam, e a estudar as potenciais soluções jurídicas, de forma a atingirmos o objetivo final deste projeto, que é – como referido – a elaboração de um policy paper sobre as melhores formas de regular (se for caso disso) o fenómeno.