Horário flexível;

Horário flexível
Atribuição a trabalhador com responsabilidades familiares

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Data: 22 de junho de 2022
Processo: 3425/19.4T8VLG.P1.S2
Relator: Conselheiro Dr. Ramalho Pinto

Sumário:
I - Os artigos 56º, 57º e 212º, nº 2, do Código do Trabalho, atribuem ao trabalhador com responsabilidades familiares o direito a solicitar ao empregador a atribuição de um horário flexível;
II- Sendo o horário flexível, antes de mais, um horário de trabalho, esse trabalhador pode, no seu pedido, precisar quais os seus dias de descanso, incluindo o sábado e o domingo.
 
 
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
 
Lojas Primark Portugal – Exploração, Gestão e Administração de Espaços Comerciais, S.A. intentou contra AA a presente acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, peticionando que seja declarado que a Autora aceitou o pedido de trabalho em regime de flexibilidade de horário apresentado pela Ré e que, consequentemente, não tem esta direito a escolher os dias de descanso semanais, devendo por isso trabalhar em qualquer dia da semana que a Autora indique.
A Ré contestou.
Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência final.
Por sentença de 09/12/2021, o Tribunal de 1º Instância decidiu “Nos termos e pelos fundamentos expostos julgo procedente a presente acção, declarando-se que a autora aceitou o pedido de horário apresentado pela ré no que tange às horas de entrada e de saída, e que a ré não tem direito a escolher os dias de descanso semanais.”.
A Ré interpôs recurso de apelação, o qual veio a ser considerado procedente, tendo, em consequência, sido decidida a improcedência da acção.
Inconformada, a Ré interpôs o presente recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
“A) A Recorrente não se conforma com o Douto Acórdão a quo que julgou improcedente a presente Acção de Processo Comum e absolveu a Ré do pedido;
B) Com o devido respeito, o Douto Acórdão extravasou o conteúdo da letra da lei inscrita no artigo 56.º, n.º 2 do CT e onde está escrito “o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário”;
C) O Douto Acórdão acrescentou, sem um mínimo de suporte na letra da lei, a “escolha dos dias em que o trabalhador escolhe a hora de início e termo”;
D) Ao fazê-lo, violou o artigo 9.º do Código Civil e violou o artigo 56.º, n.º 2 e 3 do CT, pois atribuiu um direito à Ré que não tem qualquer previsão na letra da lei, quer nas normas já indicadas, quer no resto do Código do Trabalho ou legislação avulsa;
E) Em termos práticos, custa dizer, mas o Douto Tribunal a quo, por discordar do resultado prático da lei, criou a sua própria lei, o que não pode ser admissível;
F) Requerendo-se por isso e em conformidade, e sempre com o maior respeito por opinião diversa, que o Douto Acórdão a quo seja revogado integralmente, mantendo-se a condenação da Ré nos exactos termos definidos pela 1.ª instância;
G) Ficando claro entendimento de que o regime do horário flexível previsto no artigo 56.º, n.º 2 do CT não concede ao trabalhador o direito a escolher os dias de descanso semanal.”.
Foram apresentadas contra-alegações, onde a Recorrida veio suscitar a questão da intempestividade do recurso de revista.
A Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de ser negada a revista. 
Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões, temos, como única questão em discussão:
- se o regime de horário flexível previsto no artigo 56º, nº 2, do Código do Trabalho permite ao trabalhador escolher os dias de descanso.
Estão fixados os seguintes factos como provados:
a) A autora é uma sociedade comercial cujo objecto abrange a exploração, administração, gestão e desenvolvimento de espaços comerciais, bem como de todas as actividades com estes estabelecimentos relacionadas, nomeadamente artigos para o lar, decoração, vestuário, calçado, artigos de uso e consumo pessoal e doméstico, produtos têxteis, electrodomésticos, equipamentos electrónicos, produtos alimentares, bebidas e tabaco, joalharia, ourivesaria, mobiliário, livros, papelaria, tabacaria, perfumes, produtos químicos e farmacêuticos, instrumentos musicais, bicicletas, veículos mecânicos de propulsão e actividades de restauração, hotelaria, decoração e cultura e lazer, transporte, exploração de teatros e cinemas, compra e venda, investimento e revenda de móveis e imóveis adquiridos para esse fim, consultoria para negócios e gestão, prestação de serviços, participação em outras sociedades com objecto análogo como forma do exercício de actividades económicas e tudo o mais que esteja relacionado ou seja conveniente para o desenvolvimento do objecto social aqui referido.
b) Os estabelecimentos são caracterizados por terem uma área comercial ampla e situarem-se em centros comerciais, os quais estão em funcionamento durante os sete (7) dias de semana e com horário de abertura às 10:00 horas e encerramento entre as 23:00 e as 24:00 horas, todos os dias.
c) Estando a autora obrigada a manter as lojas abertas todos os dias e durante o horário de funcionamento dos respectivos centros comerciais, sob pena de lhe serem aplicadas penalizações comerciais em caso de incumprimento.
d) Deste modo, a empresa realiza o seu objecto através da exploração de dez (10) lojas espalhadas por Portugal, a saber: ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...), ... (...) e ... (...).
e) A autora e a ré celebraram um contrato que apodaram de contrato de trabalho em 25-08-2014, no qual a última se obrigou a prestar trabalho à primeira sob as suas ordens e direcção, contra o pagamento de uma retribuição mensal.
f) No início do contrato a ré foi contratada para exercer as funções de operador de loja.
g) Mantendo actualmente e desde há 3 a 4 anos as funções, compreendidas nas de operadora de loja, de visual merchandising, que consistem essencialmente em preparar a loja antes da abertura ao público.
h) A ré exerce actualmente funções na loja Primark sita no Centro Comercial ... com morada na Rua ..., ....
i) A ré tem um período normal de trabalho semanal de 25 horas e diário de 5 horas.
j) No passado dia 04/10/2019 a ré, através do seu ilustre mandatário, Dr. BB, remeteu à autora uma carta com o seguinte teor:
(...)
l) Com a missiva supra indicada, juntou ainda um atestado da Junta de Freguesia ... e uma declaração do Centro .... m) A carta foi recepcionada a 07/10/2019.
n) A autora respondeu à ré por carta registada com aviso de recepção (...) datada de 18/10/2019, a qual foi recepcionada a 22/10/2019.
o) A resposta apresentava o seguinte teor:
(...)
p) Por carta registada datada de 25/10/2019, recebida pela autora a 31/10/2019 (...), a ré apresentou resposta à anterior missiva, com o seguinte teor:
(...)
q) Recebida a resposta da ré, a autora enviou uma carta à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) datada de 04/11/2019 (...) e recebida a 05/11/2019, com o seguinte teor:
(...)
Onde juntou: i) a carta da ré (e anexos); ii) a resposta da autora (e anexos) e; iii) a pronúncia da ré à carta anterior enviada pela autora.
s) Através de missiva datada de 21/11/2019 (recebida a 22/11/2019) a CITE emitiu parecer desfavorável à intenção de recusa da autora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível, apresentado pela ré.
t) Após receber o parecer desfavorável por parte da CITE, a autora entregou à ré aos 29/11/2019 uma missiva, dando-lhe conhecimento do mesmo.
u) De imediato a autora atribuiu à ré o horário pretendido: entrada às 7:00 horas e saída às 12:00 horas.
v) Ficando a definição dos dias de trabalho a cargo da autora, ou seja, de 2ª feira a domingo.
x) Porém, tal como indicado na comunicação enviada à ré, a autora sempre que lhe foi possível fez coincidir os dias de descanso semanais da ré com os fins de semana.
z) A autora é uma multinacional, que tem ao seu cargo pelo menos várias dezenas de funcionários apenas e tão só na loja onde a ré presta a sua actividade.
a1) A autora, tem dezenas e dezenas de funcionários que exercem a categoria profissional de operador de loja.
b1) O agregado familiar da ré é composto por si e pela sua filha nascida em .../.../2019.
c1) A ré não tem possibilidade de deixar a sua filha na creche, nem terá na pré-escola, nos dias não úteis e nos dias úteis antes das 7:30 horas e depois das 19 horas.
Cumpre apreciar e decidir:
O acórdão recorrido resumiu assim a solução que encontrou para a questão que nos ocupa:
“E, assim sendo, só podemos julgar como o defende a recorrente que não decidiu correctamente o Tribunal “a quo” ao ter considerado, como considerou que a Ré não tem direito a escolher os dias de descanso semanais e, por isso, a sentença recorrida não pode manter-se.
Pois, perante o quadro legislativo, em questão, tendo a empresa/empregadora, um período de laboração em todos os dias da semana, incluindo sábados e domingos, faz todo o sentido e só faz sentido que, o horário flexível de trabalho do trabalhador, que invoca e prova a necessidade de acompanhar o filho menor fora dos horários de abertura das escolas e creches, porque não tem qualquer suporte familiar, sendo o seu agregado familiar composto, apenas, por si e pela filha menor, nascida em .../.../2019 e sem possibilidade de a deixar na creche em dias não úteis, seja considerado e lhe seja concedido, tendo em conta não só as horas diárias dos dias úteis, em que aqueles estão encerrados, ou seja, o período normal de trabalho diário, como os dias não úteis em que os mesmos se encontram fechados.
Aliás, só assim, sendo entendido, se poderá concordar que a empregadora aceita conceder horário flexível a trabalhador com responsabilidades parentais e sujeito às referidas limitações, possibilitando-lhe a conciliação da sua actividade profissional com a sua vida familiar de um modo normal quanto possível.
Razão porque, no caso, consideramos que a A./empregadora, ao contrário do que diz, não aceitou o horário flexível apresentado pela R./trabalhadora e, sendo desse modo, competia-lhe invocar e demonstrar os fundamentos que, sendo reconhecidos, na acção que intentou, lhe possibilitariam recusar o pedido da Ré (art. 57º, nºs 2 e 7), o que manifestamente não fez”.
A Autora- empregadora insurge-se, no seu recurso, contra este entendimento, sustentando que o pedido de que os dias de semana de descanso fossem o sábado e o domingo não integraria o pedido de regime de horário flexível à luz da definição do nº 2 do artigo 56º do CT – “Entende-se por horário flexível aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário”, o que não deixaria espaço para qualquer pedido relativamente aos dias de descanso semanais.
Sobre esta mesma questão se pronunciou muito recentemente este Supremo Tribunal e Secção Social, pelo acórdão de 17/03/2022 (relator Júlio Vieira Gomes), processo 17071/19.9T8SNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, em termos que aqui acolhemos e seguimos:
Decorre do artigo 59º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa o direito de todos os trabalhadores a uma organização de trabalho que permita a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, sendo que o artigo 33.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê igualmente a proteção da família “nos planos jurídico, económico e social”. Em conformidade com este escopo o artigo 56º, nº 1, do CT prevê o direito de os trabalhadores com filhos com idade inferior a 12 anos ou independentemente da idade se tiverem deficiência ou doença crónica que vivam com o trabalhador em comunhão de mesa e habitação a trabalharem em regime de horário de trabalho flexível, sendo que o artigo 57º do CT regula o procedimento a adoptar para obter a autorização pelo empregador, bem como os fundamentos de uma possível recusa (nº 2 do artigo 57º).
No caso dos autos a Ré- trabalhadora apresentou a sua solicitação nos termos que constam do facto provado j):
Depois de referir “(...) as dificuldades do seu agregado monoparental, com a dificuldade de adaptação da sua filha menor à creche, bem como a necessidade de conseguir conciliar os seus horários com as necessidades da menor, que atendendo ao tempo de viagem entre o infantário e o local de trabalho, não é comportável com a sua actual situação profissional, é incompatível com o meu actual horário laboral, mas essencialmente com as minhas obrigações familiares”, incompatibilidade essa “que irá subsistir pelo período mínimo de quatro anos, por referência ao período de frequência entre a creche até á entrada na pré-escola ou no 1 ciclo do ensino básico”, remata do seguinte modo:
“Assim, pelos exposto e nos termos do art.º 56.º n. 4 do Código do Trabalho, vem a trabalhadora solicitar que o seu horário a ser adoptado seja o seguinte:
- Um horário fixo das 07 horas às 12 horas, de forma ininterrupta, ficando de segunda-feira a sexta-feira (...)”.
A Autora - empregadora não aceitou a pretensão de que o descanso semanal fosse aos sábados e domingos.
Como se diz no já citado acórdão deste Supremo Tribunal, importa, contudo, ter presente que a montante da definição de horário flexível está a definição do que seja um horário de trabalho. Ora, nos termos do artigo 200º, nº 1, do CT, “entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal”, sendo que, como esclarece o nº 2 do artigo 200º do CT, “o horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal”. O horário flexível é um horário de trabalho pelo que bem pode a trabalhadora, no seu pedido, precisar que pretende que os seus dias de descanso sejam o sábado e o domingo. As questões estão evidentemente imbrincadas e conexas. Acresce que também uma interpretação teleológica do regime de horário flexível aponta no mesmo sentido, porquanto só assim se consegue o desiderato da conciliação entre atividade profissional e vida familiar. Como a trabalhadora referiu no seu pedido, a não consideração dos seus dias de descanso ao sábado e ao domingo acabava por lhe acarretar, a si e por inerência à sua filha menor, um grave prejuízo, que em grande medida comprometeria o escopo legal do regime de horário flexível.
Há que confirmar, pois, o acórdão recorrido.   

Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
 
Custas pela recorrente.
Lisboa, 22/06/2022
Ramalho Pinto (Relator)
Domingos Morais
Mário Belo Morgado


ANOTAÇÃO

Sobre a atribuição de horário flexível a trabalhador com responsabilidades familiares veja-se, entre outros, o seguinte acordão:
Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-11-2021 - Processo: 3690/20.4T8SNT.L1-4, disponível em www.dgsi.pt:
Sumário: (...) II.– O regime especial de horário flexível previsto no art.º 56, n.º 2, do Código do Trabalho, tem por escopo a adequação do tempo de trabalho às exigências familiares do trabalhador, nomeadamente, quando este tem um filho menor de 12 anos.
III.– Cabe ao empregador, no exercício do seu poder de direção, a concretização do horário de trabalho, devendo ter em atenção, designadamente, a necessidade de o trabalhador conciliar a atividade profissional com a sua vida familiar (art.º 212, n.º 1 e 2, al. b., e 56/3, corpo, do CT).
IV.– A indicação pelo trabalhador dos limites que balizarão a determinação, pelo empregador do concreto horário de trabalho há de ter em conta, por um lado, a premência das suas responsabilidades familiares, que podem justificar limites muito apertados na indicação feita pelo trabalhador quando esta é a única forma de conciliar a sua vida familiar com a profissional, e, por outro, as necessidades de gestão e o poder de determinação do empregador.
V.– O recurso da A. improcede, pois, pretendendo a cessação de toda a atividade aos fins de semana, por o marido trabalhar fora da cidade e o casal ter dois filhos menores de 12 anos, o que visa não é um horário flexível mas uma situação em que o empregador ficaria sem possibilidade de determinar o que quer que fosse em termos de horário da autora, não obstante outras trabalhadoras terem também filhos menores de 12 anos, e o estabelecimento - hotel - da empregadora ter bastante atividade aos fins de semana.

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