Afinal haverá hierarquia? Os direitos do consumidor no caso de desconformidade do bem com o contrato.
Começamos por referir que se reveste para nós de clareza que, aquando da transposição da Directiva 1999/44/CE, Portugal foi além do nível de harmonização mínimo previsto pela Directiva. Isto é, com vista proporcionar um regime mais favorável à protecção do consumidor e conforme ao rigor da redacção da Lei da Defesa do Consumidor à data vigente, o legislador nacional não determinou (pelo menos expressamente) a existência de uma hierarquia para o exercício dos direitos do consumidor no caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tendo consagrado, pela letra da lei, uma efectiva alternatividade de direitos. De facto, partindo de uma análise gramatical do teor do DL n.º 67/2003 e em consonância com o entendimento maioritário jurisprudencial e doutrinário nacional, não nos parece razoável entender de outra forma.
Quer isto dizer que, à presente data, ainda que balizado pela possibilidade efectiva da execução do direito e pelo instituto do abuso de direito, o consumidor possui uma “livre escolha/alternatividade” quanto ao exercício dos seus direitos no caso de desconformidade do bem com o contrato, poendo optar pela: reparação, substituição, redução do preço ou resolução do contrato.
Efectivamente, ainda que sujeito a escrutínio, foi este o cânone no ordenamento jurídico português por vários anos, porém o mesmo estará prestes a mudar.
Com efeito, as Directivas (UE) 2019/770 e (UE) 2019/771 surgiram na sequência de uma necessidade premente de melhoramento da tutela dos direitos dos consumidores e de actualização de conceitos e preceitos em face a um encomia digital e, cada vez mais, globalizada. Nesse sentido, a primeira regula, em especial, o fornecimento de consumo de conteúdos e serviços [exclusivamente] digitais, normatizando a segunda as matérias relativas aos contratos de compra e venda [e outros] de consumo.
Não olvidando o teor paradigmático destas Directivas no tocante ao tratamento dado aos contratos de consumo relativos ao fornecimento conteúdos e serviços digitais, bem como relativamente à actualização de definições e critérios, salientamos que estes normativos vêm impor uma efectiva hierarquização dos direitos do consumidor nos casos de desconformidade do bem com o contrato, sujeitando tal norma a um regime de harmonização plena, ou seja, que impede os Estados-Membros de introduzir regras mais rigorosas do que as constantes da Directiva transposta/a transpor.
Para melhor compreensão, ainda que de forma sintética e que não dispensa a consulta dos diplomas, vejamos:
A Directiva (UE) 2019/771, cuja transposição irá substituir o regime constante do Decreto-Lei 67/2003, privilegia a reparação ou a substituição, com a excepção dos casos em que o meio de ressarcimento imponha ao vendedor custo que sejam desproporcionados, podendo-se dizer-se que vigora um princípio de conservação ou aproveitamento dos negócios jurídicos.
Neste seguimento, de acordo com o teor da citada Directiva, o consumidor (só) terá direito a exigir a redução do preço, proporcional à diminuição do valor dos bens recebidos, ou à resolução do contrato quando: (1) O vendedor não tenha efectuado a reparação ou a substituição, nos casos em que esta é devida, ou quanto o vendedor se recuse a repor a conformidade dos bens com fundamento na excessiva onerosidade ou impossibilidade daí advenientes; (2) se verifique uma falta de conformidade apesar da tentativa do vendedor de repor os bens em conformidade; (3) a falta de conformidade é de natureza tão grave que justifica a imediata redução do preço ou a rescisão do contrato; (4) o vendedor tenha declarado, ou é evidente das circunstâncias, que não irá repor os bens em conformidade num prazo razoável ou sem inconvenientes importantes para o consumidor. Prevê-se, ainda, que o consumidor não tem direito a resolver o contrato se a falta de conformidade for menor.
A Directiva (UE) 770/2019, relativa ao fornecimento de bens ou serviços digitais, espelha equivalente teor referindo apenas que “..o consumidor tem direito a que os conteúdos ou serviços digitais sejam repostos em conformidade, a beneficiar de uma redução proporcional do preço ou a rescindir o contrato….”. Salientamos que não refere a Directiva a opção pela reparação, situação que, ainda que se tratando de bens digitais, dependerá, no nosso entendimento, da sua natureza e forma.
Nesta conformidade, o consumidor tem direito a que os conteúdos ou serviços digitais sejam repostos em conformidade, salvo se tal for impossível ou impuser ao profissional custos que sejam desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias concretas. Por sua vez, terá direito a uma redução proporcional do preço sempre que os conteúdos ou serviços digitais forem fornecidos em troca do pagamento de um preço, ou à resolução (“rescisão”) do contrato em qualquer dos seguintes casos: (1) a solução de repor os conteúdos ou serviços digitais em conformidade é impossível ou desproporcionada; (2) o profissional não repôs os conteúdos ou serviços digitais em conformidade; (3) verifica-se uma falta de conformidade apesar da tentativa do profissional de repor os conteúdos ou serviços digitais em conformidade; (4) falta de conformidade é de natureza tão grave que justifica a imediata redução do preço ou rescisão do contrato; (5) o profissional declarou, ou resulta claramente das circunstâncias, que não irá repor os conteúdos ou serviços digitais em conformidade num prazo razoável ou sem inconvenientes importantes para o consumidor. Mais uma vez, o consumidor só terá direito a resolver o contrato se a falta de conformidade não for menor.
Em face ao que se descreveu e remetendo, em especial, para o teor dos considerandos das Directivas supra referidas, dúvidas não nos assolam quanto à emergente e imperativa hierarquização direitos do consumidor no caso de falta de conformidade do bem com o contrato, sendo de realçar que [supostamente] até 01 de Julho de 2021 os Estados-Membros deverão traspor as Directivas, com vista à sua aplicação com efeitos a 01 de Janeiro de 2022.
Prosseguindo este excurso, é verdade que a Directiva 1999/44/CE, ainda que sujeitando tal temática a harmonização mínima, já previa a existência de subsidiariedade no exercício dos direitos do consumidor, tendo por base o objectivo do cumprimento e manutenção dos contratos e o fito de garantir, não só ao consumidor uma protecção completa e eficaz dos seus interesses, mas também ao vendedor (profissional) um adequado amparo dos seus interesses económicos, procurando na assegurar na União uma tutela uniforme e de “equilíbrio”. Desta forma, ainda que com inerente desconforto decorrente da diminuição do nível de protecção dos consumidores, não é com espanto que se observa tal alteração.
Nesta sequência, cumpre ainda mencionar que a modificação em sindicância será atenuada pelo efectivo cuidado na escolha dos critérios subjacentes à mesma e, em particular, por se reconhecer ao consumidor o direito de resolução do contrato desde que o profissional recuse a reposição da conformidade, ou desde aquele tenha tentado a reposição da conformidade e a tentativa de reposição tenha falhado. Acresce, ainda, no caso da Directiva (UE) 771/2019, o facto de se prever a possibilidade de os Estados-Membros preverem que os consumidores possam escolher um “meio de ressarcimento específico” no caso de a falta de conformidade dos bens se manifestar num prazo curto após a entrega, o qual não poderá ser superior a trinta dias.
Aditamos, porém, que, pese embora tal hierarquia esteja assente em critérios aos quais assiste razoabilidade e proporcionalidade, tal não retira a tónica de retrocesso normativo e de tutela dos direitos do consumidor, devendo indagar-se, ainda que teoricamente, se o aproveitamento dos contratos e o aparente equilíbrio carreado pela hierarquia ora imposta, [primus] efectivamente se verifica e [secundus] se deverá sobrepor à alternatividade de direitos que permite, hoje, uma maior conformação da vontade e interesse contratual do consumidor lesado.
Concluímos dizendo: afinal existirá hierarquia!
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