Um judeu representando um nazi;

Um judeu representando um nazi
Fez há pouco meio século que o advogado David Goldberger defendeu em tribunal o direito do líder nazi da região de Chicago, Frank Collin, de fazer uma demonstração na pequena vila Skokie.
Fê-lo pro bono e como representante da ACLU (American Civil Liberties Union). Apesar de ser judeu, de em Skokie metade da população ser judia e de incluir muitos sobreviventes do holocausto.
Na década de oitenta a conhecida artista Vanessa Redgrave era uma declarada apoiante, propagandista e frequentou campos de treino da PLO onde foi filmada a dançar erguendo uma kalashnikov e defendendo a destruição do estado de Israel: “não penso que haja lugar para o estado de Israel”. Opunha-se à solução de dois estados e apoiava a via militar.
Consequentemente a orquestra de Boston cancelou um contrato em que Vanessa Redgrave deveria narrar partes da obra Oedipus Rex de Stravinsky.
Alan Dershowitz, professor de direito de Harvard (que defendeu O. J. Simpson e Claus von Bülow) e zionista declarado, chamou Redgrave de hipócrita, cúmplice de assassínios e aceitou que músicos se recusassem a tocar com ela. Mas opôs-se veemente ao cancelamento do contrato.
Tudo em nome da primeira emenda/revisão à Constituição dos EUA, segundo a qual não haverá lei proibindo a liberdade de expressão ou demonstrações pacíficas.
Hoje há variadas excepções a este direito básico nos EUA, mas só existem algumas poucas instâncias em que elas são verdadeiramente aceitáveis.
Primeiro, a 1) incitação, 2) imediata e 3) concreta à 4) violência. Não difusa.
Segundo, a 1) pornografia, 2) pública causando 3) repulsa na 4) generalidade das pessoas. Em tempos a Benetton fez uma campanha publicitária que incluía um padre a beijar uma freira e cavalos a terem relações sexuais.
Terceiro, 1) ofensas ou 2) mentiras 3) entre particulares. Aqui não há crime público. Trata-se de uma questão entre privados. Excepto 4) ameaças precisas e 5) coacção ou intimidação severa.
E finalmente não há liberdade de expressão em locais que pertencem a outros: a casa ou a empresa, sendo extensível aos empregados públicos no seu local de trabalho.
Há outras situações excepcionais em que a liberdade de expressão pode ser limitada, por exemplo quando a segurança nacional é ameaçada.
Mas aqui não se trata propriamente de uma limitação à expressão mas de comparação, ponderação, de dois direitos: liberdade e segurança. A decidir caso a caso (pelos tribunais). Na dúvida a favor da liberdade (ex: documentos do Pentágono). Porque a segurança é frequentemente um pretexto do governo para a censura.
Fora das situações de cima (quatro excepções e uma limitação), a liberdade de expressão não deve ser restringida. Por três argumentos. E uma razão (sendo os argumentos razões menos fortes e a razão um argumento mais poderoso).
Argumentos: a censura é perigosa (ao promover para a clandestinidade o que se fosse público seria mais fácil de combater); é racista (ao criar cidadãos de segunda e primeira – em termos de expressão, não de acção); e é arrogante (eu é que sei o que se pode ou não pode dizer).
Mas a razão principal é que a censura destrói a democracia. Abre-se uma caixa de pandora. Sabe-se onde começa, não se sabe onde acaba. Pelo que é uma incubadora da opressão e tirania.
Imaginemos que discutir a democracia é um assunto tabu. Então não se pode discutir o direito dos emigrantes votarem em todo o tipo de eleições (presidenciais, parlamentares e autárquicas)? Os presos? Os estrangeiros residentes (que pagam impostos)? Quem não paga impostos (no representation without taxation por oposição a no taxation without representation)? O aumento da idade para votar? O que é discutível? Ao fim e ao cabo tudo isto afecta a democracia.
Depois, se o governo ou parte da população pode censurar uns, então pode pouco a pouco censurar outros com opiniões de que não goste. A democracia é tabu? E o direito à vida, discute-se? Não. Então o aborto é proibido. A vida é sagrada? Sim? Então a eutanásia é ilegal. A tortura é haran? Então a criação de animais para alimentação?
Aquele quer proibir este partido? Bom, eu também quero proibir que ele coma carne, porque considero isso explorar animais. Não posso? Mas ele pode? Porque é que ele é mais que eu?
Aquele outro quer proibir aquele movimento? Eu considero o direito à vida fundamental e consequentemente proíbo-o a ele de aceitar (seja em que condições for) o aborto. E a eutanásia. Etc.
Onde é que isto pára?
Discursos de ódio são proibidos? Mas porquê? Ao fim e ao cabo não temos que gostar uns dos outros. E quem define a fronteira entre opor-se, não gostar e odiar? O governo?
A História não mostra que este é mais apto a perseguir do que a proteger minorias? Donde à medida que vamos censurando mais e mais, as minorias vão sendo excluídas.
Como disse o bispo protestante alemão: primeiro Hitler perseguiu os comunistas, e como não sou comunista fiquei quieto. Depois foi atrás dos socialistas. Ora como também não me dizia respeito não intervim. Depois os judeus. Depois os católicos. Depois os ciganos e os homossexuais. Finalmente, quando me veio buscar, como clérigo protestante, já não havia ninguém para defender fosse quem fosse.
Como se come um elefante? Às fatias, uma de cada vez.
Daí a frase frequentemente atribuída a Voltaire: não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres.
A liberdade? A liberdade como disse a marxista Rosa Luxemburgo é sobretudo a liberdade dos outros.
Donde: deixem falar. Deixem falar. Quem desabafa, age menos. E o melhor modo de proteger o meu direito é nunca proibir o de ninguém. Quando aceitamos a censura, sabemos onde começa, não sabemos onde acaba.
Se tu me censuras (numa coisa) eu também te censuro (noutra coisa), ou és mais do que eu?
Proibido? Só é proibido proibir. No falar.
A acção? Ah…, aí é diferente.
Vasconcellos Sá, 21/01/2022
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