A Covid-19 deixou também a Justiça doente?;

A Covid-19 deixou também a Justiça doente?
A pandemia provocada pela Covid-19 teve, tem e, vislumbra-se, ainda terá por um alargado período de tempo – que infelizmente, por enquanto, não conseguimos, mesmo com o tão ansiado plano de vacinação em vias de ser aplicado, determinar – impactos profundos e muito diversificados em várias áreas da sociedade, para além da evidente crise de saúde pública que provocou.
A crise pandémica conduziu a uma paralisação generalizada da vida económica e social do país, afetando de forma particular a justiça – quanto ao funcionamento da administração e dos tribunais – na qual a Covid-19 tem deixado uma marca indelével, mas que, confia-se, a ajudará também a transformar-se numa justiça mais moderna, mais flexível às contingências sociais e mais próxima dos cidadãos.

Poder-se-ão enumerar, de forma muito resumida, três grandes fatores que concorreram para que a Justiça – em particular o funcionamento dos tribunais – saísse grandemente afetada pela pandemia: a decisão de suspensão dos prazos judiciais, com início em março, entretanto retomados com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, a 3 junho; a avalanche legislativa que permanece e a circunstância de os agentes da justiça, nomeadamente funcionários judiciais, se encontrarem em teletrabalho.
Quanto ao funcionamento dos tribunais em sentido estrito, o impacto da pandemia fez-se sentir num primeiro momento com a publicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que estabeleceu o regime de justo impedimento, que previa a suspensão de prazos processuais e procedimentais sempre que o impedimento ou o encerramento de instalações fosse determinada por decisão de autoridade de saúde ou de outra autoridade pública. Num segundo momento, e perante o aumento do número de casos, medidas mais gravosas foram adotados, entre elas a suspensão dos prazos judiciais, com a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Apenas não ficaram abrangidos por esta suspensão todos os prazos dos processos urgentes. No entanto, quando todas as partes entendessem ter condições para assegurar a prática dos atos processuais através das plataformas informáticas que possibilitassem a sua realização, por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, os processos continuaram a tramitar sem qualquer entrave, assim como continuaram a ser proferidas decisões finais em processos cujo estado o permitiu. Talvez seja esta a face mais visível do real impacto da Covid-19 na celeridade da justiça, por ser passível de quantificação com relativa objetividade. Assim, é possível determinar, mesmo no âmbito de todos os condicionalismos, os processos que deram entrada nos tribunais, os que foram tramitando e aqueles em que, inclusivamente, foi proferida decisão final. Com estes dados a Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) concluiu que os processos possam vir a durar em média mais 1,5 meses por conta destas suspensões. Ainda assim, a mesma entidade admite que possam ter ficado pendentes mais de cerca de 20 mil processos, o que aumentaria o impacto na sua duração, elevando o atraso para cerca de 5 meses. Tudo somado, a DGPJ considera que, mesmo no pior dos cenários, os Tribunais enfrentam atrasos perfeitamente recuperáveis e sem impactos significativos na efetivação da justiça.
Relativamente à resposta legislativa, e não descurando a circunstância de o legislador ter sido forçado a responder, de forma muito rápida, a um cenário pandémico para o qual ninguém estava preparado, a verdade é que o fenómeno de “avalanche” de diplomas legais num muito curto período de tempo, a somar a uma duvidosa técnica legislativa – desde logo no que diz respeito à redação pouco clara do texto da lei, que criou a necessidade de sucessivas declarações de retificação e, bem assim, as consequentes dúvidas interpretativas e de aplicação dos diplomas, deficiências do texto da lei essas que, aliadas à duplicação e sobreposição de regimes jurídicos e, ainda, à falta de clareza relativamente à data da produção de efeitos dos diversos diplomas –, contribuíram para um aumento da instabilidade e insegurança jurídicas, em diversos domínios, com particular ênfase, claro, para o domínio da Justiça, promovendo assim os sentimentos de instabilidade e incerteza já verificados no contexto económico e social. Em última instância, tal poderá traduzir-se, no imediato, na protelação de situações de litígio já preexistentes no seio do sistema judicial, como, também, no surgimento de novas situações de litígio derivadas da errónea interpretação e aplicação da legislação, quer por entidades públicas, quer por privados.
Quanto à adoção do teletrabalho como regime regra, abrangendo os operadores judiciais, nomeadamente os oficiais de justiça, diga-se que, embora o início da experiência tenha demonstrado resultados positivos, já que, de acordo com estudo desenvolvido pela Direção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), as estatísticas sobre a utilização da plataforma Citius, no período entre 13 de abril e 17 de maio de 2020, demonstram que houve uma média de 13 a 15 atos processuais diários praticados pelos oficiais de justiça que permaneceram nos tribunais, enquanto essa média foi de 14 a 20 no caso dos funcionários colocados em regime de teletrabalho, o que representou um aumento de 7% a 33% de produtividade em relação aos colegas que permaneceram nos postos de trabalho. No entanto, estes dados iniciais tão animadores sobre a capacidade de adaptação ao regime de teletrabalho pelos oficiais de justiça não podem deixar de ser considerados enganadores, já que os dados se reportam ao período de confinamento obrigatório entre os meses de abril e maio, com o número de oficiais de justiça a trabalhar presencialmente ser residual. Agora, passados uns meses sobre a experiência da aplicação do regime de teletrabalho nos tribunais, vale a pena um novo e mais fundamentado olhar sobre o tema. Ora, o tempo tem demonstrado que os meios tecnológicos e os instrumentos de trabalho ao dispor dos funcionários judiciais não estavam preparados para esta modalidade, pelo menos para proporcionar uma eficácia equiparada ao trabalho presencial. Aliás, queixas há pelos oficiais de justiça, sobre a dificuldade em aceder a plataformas de tramitação eletrónica de processos através de redes privadas de internet, muitas vezes impossível e frequentemente dificultado, verificando-se igualmente sucessivos bloqueios e atrasos na ligação remota aos servidores dos tribunais, já para não mencionar a falta objetiva de instrumentos de trabalho adequados ao desempenho de funções. E, por isso, os dados do mais recente estudo da DGAJ referentes ao período temporal compreendido entre 16 de março e 30 de novembro de 2020, sobre o total de atos praticados no Citius pelos oficiais de justiça, demonstram que 75,7% dos atos são praticados por oficiais de justiça que se encontram em regime de trabalho presencial, cuja efetividade continua a ser indiscutível, muito provavelmente pelas dificuldades mencionadas.
Por tudo isto, são evidentes os impactos que a pandemia tem provocado neste âmbito, deixando a descoberto a falta de preparação dos tribunais para se adaptarem a realidades como a que vivemos, forçando a ilações obrigatórias, embora já tardias, a retirar por quem tem uma palavra a dizer sobre o funcionamento do sistema.

Ana Francisca Brochado Associada Next-Gali Macedo e Associados SP RL, 07/01/2021
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