Os reflexos da pandemia na desmaterialização da Administração Pública – os primeiros passos;

Os reflexos da pandemia na desmaterialização da Administração Pública – os primeiros passos
Volvido um ano desde a chegada da pandemia, são evidentes as transformações ocorridas em todos os setores da nossa vida. Das escola, ao teletrabalho, passando pelo incremento das compras online e pelos convívios eletrónicos, a desmaterialização de muitas atividades trouxe-nos, sem dúvidas, muitas vantagens. A situação de “lock down” de que estamos a sair fez-nos ainda repensar muitos dos nossos hábitos de trabalho e deixou clara a nossa total dependência das tecnologias de informação.
A esta realidade não ficou indiferente a Administração Pública, que, em diversas vertentes, se viu obrigada a reinventar novas formas de atuação, não só nas relações entre si, mas também na sua relação com os administrados. O exemplo disso foi a aprovação da Lei n.º 72/2020, de 16 de novembro, que veio introduzir alterações ao Código de Procedimento Administrativo (CPA) e, simultaneamente, estabelecer um regime transitório de simplificação aplicável quer ao procedimento administrativo comum quer aos especiais, com exceção do regime de emissão de regulamentos, avaliação de impacte ambiental e avaliação ambiental estratégica.
Uma breve nota sobre este regime transitório, que se aplica até 30 de junho de 2021, para dizer que o mesmo visa responder às exigências levantadas à atuação administrativa multipolar num contexto de pandemia, criando um mecanismo mais célere de decisão quando haja lugar à intervenção de diversas entidades. Na prática, em vez da tradicional atuação parcelar da administração, vem-se instituir a existência de uma atuação concertada, através da organização de uma conferência procedimental deliberativa obrigatória. O objetivo é promover a participação de todas as entidades intervenientes com vista à emissão dos pareceres necessários à sua pronúncia coletiva e à emissão de decisão final do procedimento, sendo a audiência prévia feita oralmente. São apenas dispensadas de participar as entidades que já tenham emitido os respetivos pareceres e pronúncias e desde que se mantenha o status quo ao abrigo do qual foram emitidos.  A validade da deliberação fica sujeita à verificação do quórum constitutivo e à existência de poderes de representação, o que significa que: i) devem estar obrigatoriamente presentes a maioria dos membros com direito a voto e; ii) tais membros devem dispor de poderes de representação do órgão em questão. As deliberações são tomadas por maioria absoluta dos votos dos membros dos órgãos presentes, sem prejuízo da obrigatoriedade de existência dos pareceres vinculativos, sem os quais há lugar ao indeferimento das pretensões. Relembre-se que este regime está em vigor desde 18 de novembro e terá, em princípio, duração até 30 de junho, período a partir do qual voltaremos aos tramites tradicionais.
Mas mais significativo que isso são as alterações permanentes introduzidas ao CPA, particularmente no que diz respeito ao uso de meios telemáticos para a realização de reuniões dos órgãos colegiais, ao encurtamento dos prazos decisórios e ao regime das notificações eletrónicas.
Com efeito, a partir de 17 de novembro de 2020, passou a ser possível a realização de reuniões dos órgãos públicos por via telemática, sempre que as condições técnicas o permitirem. Para tal, cabe ao presidente do órgão na convocatória fazer constar expressamente essa possibilidade bem como a indicação dos meios telemáticos disponibilizados para o efeito. Cumpre ainda realçar que, para efeitos de quórum constitutivo e deliberativo, nomeadamente para contabilização dos votos, não existe qualquer diferenciação entre os membros fisicamente presentes e os participantes por meios telemáticos.
No que se refere ao encurtamento dos prazos, foram aprovadas alterações que visaram reduzir o tempo médio do procedimento administrativo, cuja contagem corre, como se sabe, apenas em dias úteis. Assim, a emissão de pareceres por qualquer entidade tem agora que ser feita em 20 dias úteis, ao invés dos 30 dias. A notificação ao particular de atos administrativos vê o seu tempo reduzido de 8 para 5 dias. Os prazos máximos de duração do procedimento foram igualmente encurtados. Desta forma, aqueles de iniciativa particular passam a ter de ser decididos no prazo máximo de 60 dias e não em 90 dias. O mesmo se diga dos procedimentos de iniciativa oficiosa que possam culminar com uma decisão com efeitos desfavoráveis para o particular que estão agora sujeitos a um prazo de caducidade de 120, em vez de 180 dias.  
Em termos de notificações eletrónicas, o CPA permite agora que a notificação por anúncio possa ser feita sempre que os notificandos forem em número superior a 25.
Prevê-se, igualmente, a possibilidade de as notificações serem feitas a pessoas singulares via e-mail, exigindo-se, porém, que o particular preste o seu consentimento no respetivo procedimento. Por último, mas não menos relevante foi a alteração introduzida em sede de perfeição das notificações eletrónicas. Com efeito, com esta alteração legislativa, as notificações consideram-se feitas no 5.º dia útil posterior ao seu envio ou no primeiro dia útil seguinte a esse quando aquele não seja útil.  Trata-se, porém, de uma presunção que pode ser afastada pelo particular, que pode fazer prova perante a administração, que apenas foi efetivamente notificado decorrido tal prazo.
Acreditamos que estas alterações são apenas o início de um processo de transformação digital e de modernização pública que começou há vários anos, mas cuja pandemia veio impor novas exigências. Portugal está no bom caminho e isso foi já reconhecido internacionalmente pelo “United Nations e-Goverment Survey”, que coloca Portugal na 35.ª posição num total de 193 países. O desafio será, na nossa perspetiva, reforçar a administração pública do ponto de vista da sua capacitação institucional, criando-se simultaneamente mecanismos que fomentem a interação direta com os administrados e instrumentos de combate à infoexclusão.
Eliana Silva Pereira, Advogada Associada na Next - Gali Macedo & Associados, Sociedade de Advogados SP, RL, 26/03/2021
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