Setor imobiliário à beira de nova crise;

António Raposo Subtil, sócio e coordenador da RSA LP, “chumba” programa Mais Habitação
Setor imobiliário à beira de nova crise
A alteração constante do regime jurídico do arrendamento habitacional não permite criar a confiança nos investidores e senhorios para estabelecerem relações de arrendamento de médio e longo prazo – afirma Raposo Subtil.
O programa “Mais Habitação” não é concretizável, envolvendo um conjunto de medidas que podem gerar uma nova crise no setor imobiliário – afirma António Raposo Subtil, sócio e coordenador da RSA LP.
Considerando o arrendamento coercivo “inconstitucional” e “irracional”, Raposo Subtil entende que a confiança dos investidores, construtores e operadores do setor é cada vez menor.
 “Se o Estado tornar eficiente o funcionamento dos tribunais ou prestar fiança em situação de superveniente incapacidade financeira, muitos proprietários colocariam os seus imóveis no mercado do arrendamento”, acrescenta.

Vida Económica - Como se pode “converter” em diploma legislativo (direito aplicável a todos os cidadãos assistido de coercibilidade, incluindo por via de recurso aos tribunais) o conjunto de medidas anunciadas como “Mais Habitação”?
António Raposo Subtil - O governo apresentou cinco eixos (objetivos políticos) para suportar as anunciadas propostas, a saber: aumentar a oferta de imóveis para habitação, simplificar os processos de licenciamento, aumentar o número de casas no mercado de arrendamento, combater a especulação e proteger as famílias.
Como parece evidente, não se trata só de “mais habitação”, nem de objetivos suscetíveis de serem atingidos por via da alteração do quadro legislativo fiscal (tributação do património), financeiro (crédito à habitação), investimento (apoios à indústria do imobiliário), turismo (regulação do alojamento local) ou do regime do arrendamento urbano (fixação e subsídios às rendas habitacionais).
 
VE - A anunciada medida designada como “aumentar a oferta de imóveis para habitação” será de fácil execução?  
ARS - Quem desenvolve a sua atividade no âmbito do sector imobiliário e tem conhecimento da ineficácia do funcionamento dos tribunais no que respeita aos processos de despejo com fundamento no incumprimento de contratos de arrendamento e de execução de obras coercivas da responsabilidade dos senhorios, conclui de forma imediata que, no curto prazo, não existirão condições para tornar efetiva qualquer medida política que tenha, em última instância, de ser executada (imposta) pelos tribunais.   Desde logo, a concretização no plano legislativo da medida denominada “arrendamento coercivo”, visando aumentar o número de casas no mercado de arrendamento, teria de implicar alterações profundas no Código Civil, Código de Processo Civil, Regime do Arrendamento Urbano, entre outros diplomas estruturantes do nosso sistema jurídico, pelo que nem é necessário invocar a inconstitucionalidade da medida. Todos reconhecem que, apesar da sua importância económica e social, a infraestrutura – de meios e recurso  humanos - relativa à regulação do mercado habitacional é manifestamente insuficiente e ineficiente, sendo de realçar que o Estado é um construtor, senhorio e fiscalizador ausente!
VE - Mas o legislador não poderá criar uma lei estabelecendo o arrendamento coercivo de imóveis habitacionais, forçando a sua colocação no mercado?
ARS - Já existem disposições normativas prevendo a oneração (aumento da tributação) de imóveis devolutos, mas em que a fiscalização é quase inexistente, pelo que a possibilidade de “obrigar /forçar” um proprietário a arrendar um imóvel não tem qualquer viabilidade, para além de que o mesmo teria de ser indemnizado (compensado) financeiramente, sob pena de confisco de direitos. A medida não seria só inconstitucional, mas também irracional! Na existência da necessidade urgente e inadiável de imóveis para alojar famílias, como está previsto na lei, o Estado poderá requerer o acesso aos mesmos, pagando a justa indemnização, mas não pode forçar um proprietário titular de um direito real a subscrever um contrato, em que as condições são estabelecidas por um terceiro.

A ineficiência dos tribunais
 
VE - Então qual o fim visado pelo anúncio da medida “arrendamento coercivo” ou, ainda, da extinção das autorizações de residência (vistos gold  para investidores) com efeitos imediatos, suportada no eixo  “combater a especulação”?
ARS - O regime jurídico do arrendamento habitacional tem sido alterado dezenas de vezes, assim como o regime fiscal aplicável, complementado pelo regime do alojamento local, sem que tenha sido possível criar a confiança nos investidores e senhorios para estabelecerem relações de arrendamento de médio e longo prazo.
Importa perguntar: qual a razão? Resposta fácil. Um processo de despejo com fundamento no não pagamento da renda demora anos e, no final, o senhorio fica sem quaisquer garantias de recebimento (remuneração) do seu investimento. Essa a razão.
Naturalmente que o problema da atualização das rendas antigas e da realização de obras pelo senhorio também tem sido uma das razões para agravar a instabilidade do mercado, mas nos últimos anos o problema está centrado nas garantais de cumprimento dos contratos.
No alojamento local, pela natureza da relação, não existe incumprimento e no arrendamento corporativo (em que o arrendatário é uma empresa para fins de alojamento dos seus colaboradores) o incumprimento, por regra, também não existe.
 
VE - Mas esse problema não existe também no incumprimento, por exemplo, dos financiamentos para compra de habitação?
ARS - Essa uma das confusões recentes, as rendas dos contratos de arrendamento (antigos ou recentes) não podem aumentar sem respeitar a atualização legal (em regra, inferior á taxa de inflação), mas as prestações do crédito à habitação têm aumentado sem controlo legislativo (aumento da taxa de referência/ euribor), o que tem provocado e irá continuar a provocar o  incumprimento dos contratos de financiamento, mas a execução judicial dos mesmos é mais rápida e garantida para os Bancos credores (despejo efetivo das famílias num prazo mais reduzido).
Se o Estado tornar eficiente o funcionamento dos tribunais (ou delegar em entidade pública a competência para regular o cumprimento dos contratos de arrendamento, como contratos de base financeira) ou prestar fiança (substituição nas obrigações dos arrendatários) em situação de superveniente incapacidade financeira, muitos proprietários colocariam os seus imóveis no mercado do arrendamento.
É um problema de confiança, que não pode ser ultrapassado com ameaças!
Mesmo no regime legal dos contratos com rendas acessíveis, que previa a existência de um seguro para efeitos do cumprimento do contrato e benefícios fiscais (isenção de tributação), não foi alcançado o nível de confiança entre os operadores envolvidos, para além de que a base do cálculo das rendas dificilmente poderia ser aplicável a imóveis construídos sem ser na base de parceria público-privada. Em Lisboa e no Porto, o custo do terreno e dos projectos de licenciamento contribui para o valor do preço de venda de habitações de médio padrão em cerca de 50%; o que é um facto muito relevante.
 
VE - Para combater a especulação, o Governo pretende terminar com os “vistos gold” (fim da autorização de residência para investidores) e intervir na regulação das rendas (fixando limites à atualização das rendas), para tornar o acesso ao arrendamento habitacional mais fácil. Será viável esta intervenção legislativa?
ARS - No plano legislativo, proibir e fixar limites é muito fácil, mas nem sempre os resultados ou consequências são os que visualizamos numa leitura rápida.
Sem investidores no mercado habitacional, no segmento de habitações de médio e baixo padrão,  que retenham a propriedade na sua titularidade (como é obrigatório nos “vistos gold”), o caminho é construir e vender a quem, por regra, recorre ao crédito bancário, ficando dependente das subidas da taxa de juro, sem anúncio prévio ou defesa preventiva.
Quem comprou um imóvel habitacional para efeitos de “retenção de poupança” e o mantém devoluto, mesmo com a elevada carga fiscal aplicável à detenção de património, se a remuneração (renda) for equilibrada (mesmo que para isso o Estado apoie o arrendatário), bastará que exista garantia de cumprimento do contrato, para reduzir o spread (risco) e, no médio prazo, o valor das rendas a aplicar no mercado do arrendamento habitacional.
A medida apresentada não cumpre este objetivo (prestar garantia de cumprimento do contrato), dado que visa garantir “o pagamento após três meses de incumprimento (ou cobra, ou apoia, ou despeja)”.
Não entendemos como será concebida uma lei em que se prevê a intervenção do Estado (Ministério da Habitação?) como julgador e, após avaliação da situação concreta, como financiador do arrendatário, numa posição de terceiro relativamente ao senhorio (proprietário).
Como se tornaria operativa uma lei com esta previsão, quer no plano extrajudicial, quer judicial!
Existem alternativas mais simples e defendidas em fóruns especializados: contratos de arrendamento registados com garantia de pagamento (fiança pública), que teriam a natureza de uma operação financeira de risco reduzido e, por isso, com uma contraprestação  (renda) mais reduzida.

VE - Só o anúncio das mencionadas medidas pode ter consequências no desenvolvimento e dinâmica do sector imobiliário?
ARS - A instabilidade e redução da confiança dos investidores, construtores e operadores do sector,  resulta directamente do “compacto de medidas” que, sem uma justificação económica  ou social  compreensível, estabelece  que o Estado vai intervir de forma imediata, nomeadamente: extinguindo os visto gold, fixando limites à negociação de rendas, reduzindo as licenças de alojamento local, forçando o arrendamento de imóveis devolutos, impondo aos Bancos regras nos contratos de crédito à habitação, etc.
Existem consequências negativas desta iniciativa política que, mesmo se a sua concretização por via legislativa, já são irreversíveis!
As empresas da indústria do imobiliário, para além do sector financeiro (crédito à habitação), com o fim dos vistos gold, redução das licenças de alojamento local, limitações na fixação de rendas e arrendamento coercivo, sem ocorrer uma redução da actividade (construção e vendas), associada ao agravamento dos juros (encargos financeiros), voltarão a entrar num período de crise, com as consequências conhecidas!
Susana Almeida, 24/02/2023
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