Tributação do teletrabalho transfronteiriço deve ser reformulada;

André Gomes, associado da Equipa de Fiscal da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, considera
Tributação do teletrabalho transfronteiriço deve ser reformulada
“O essencial será, no fundo, adaptar o normativo comunitário e os tratados bilaterais ao fenómeno do teletrabalho”, afirma André Gomes.
“Mais do que dar uma nova (e mais atrativa) roupagem à legislação nacional, impõe-se que a resposta à problemática da deslocalização do domicílio fiscal seja dada, em uníssono, através da União Europeia”, afirma André Gomes, associado da Equipa de Fiscal da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, à Vida Económica.
“Antevendo-se que o número de teletrabalhadores transfronteiriços venha a aumentar no seio do território comunitário, é  fundamental que as regras de tributação nesta matéria sejam reformuladas”, acrescenta.

Vida Económica - Existe uma tendência de crescimento no trabalho transfronteiriço?
André Gomes - Sem dúvida, especialmente desde a chegada da pandemia Covid-19. Foi em função desse contexto muito particular que as empresas, fruto das imposições de confinamento, se viram instadas a renovar-se e a acolher o fenómeno do teletrabalho. Não obstante as medidas restritivas tenham vindo a ser suavizadas, a resposta francamente satisfatória que foi dada pelo “trabalho à distância” não foi esquecida, pelo que é expetável que as empresas continuem a realizar investimentos, a nível digital, por forma a potenciar, dentro das suas estruturas, a implementação desta modalidade, tornando-a, cada vez mais, eficiente e eficaz. Adicionalmente, o teletrabalho permite conciliar de modo mais harmonioso a carreira profissional e a vida pessoal, o que, claro está, é muito bem recebido por todos os colaboradores. É, por isso, inequívoco que o “flex work” veio para ficar, traduzindo-se, não raras vezes, num aumento da qualidade de vida dos trabalhadores que a ele recorrem.
Não só é natural que o trabalho transfronteiriço tenha, nos últimos tempos, apresentado um crescimento interessante, como será expetável que esta tendência se continue a verificar no futuro. De facto, ao olhar para o exemplo português, estando as pessoas cada vez mais sensíveis à pesada carga a nível de tributação, sobretudo em cenário de inflação desenfreada, é previsível que o teletrabalho venha a facilitar a deslocalização dos domicílios fiscais para países mais atrativos em matéria de impostos, avolumando, pois, o contingente de compatriotas nossos que, trabalhando ou continuando a trabalhar para empresas portuguesas, residem algures no estrangeiro.
 
VE - Em que profissões ou setor de atividade é mais fácil atravessar as fronteiras?
AG - Existem profissões que, pela sua natureza, sempre foram mais propícias ao trabalho transfronteiriço, como é o caso, por exemplo, dos artistas e desportistas. Contudo, recentemente, fruto do surgimento do teletrabalho, o palco foi entregue aos nómadas digitais, os quais, optando por um estilo de vida itinerante, escolheram dissociar-se do conceito tradicional de escritório. Note-se, com efeito, que não existe um número limitado de profissões que se reconduzam à condição de nómada digital, podendo esta visar não só profissionais liberais, bem como, inclusive, trabalhadores dependentes. Todavia, noto que se, grosso modo, o trabalho em rede acaba por exponenciar estes fluxos migratórios, a maior ou menor facilidade de fixar a vida profissional num outro país dependerá sempre das funções a desempenhar e das fronteiras que se pretendem atravessar (isto é, das suas caraterísticas e necessidades).
 
VE – O crescimento do trabalho transfronteiriço poderá levar o Estado a criar um regime mais competitivo?
AG - Reconheço que será um fator que poderá, quem sabe, impulsionar o Estado português a procurar soluções mais competitivas do ponto de vista da tributação em razão do trabalho.
Porém, mais do que dar uma nova (e mais atrativa) roupagem à legislação nacional, impõe-se que a resposta à problemática da deslocalização do domicílio fiscal seja dada, em uníssono, através da União Europeia. Antevendo-se que o número de teletrabalhadores transfronteiriços venha a aumentar no seio do território comunitário, é efetivamente fundamental que as regras de tributação nesta matéria sejam reformuladas, de modo a simplificar procedimentos e a prevenir litígios relativos à dupla tributação de rendimentos dos trabalhadores. Preferencialmente, em linha com as recomendações do Comité Económico e Social Europeu, será desejável que o teletrabalho passe, de uma vez por todas, a ser expressamente regulamentado nas convenções destinadas a evitar a dupla tributação, consagrando-se critérios claros de “desempate” adaptados a esta nova realidade e que se revelem aptos a dirimir putativos conflitos entre o Estado da residência e o Estado da fonte dos rendimentos. O essencial será, no fundo, adaptar o normativo comunitário e os tratados bilaterais ao fenómeno do teletrabalho, criando regras razoáveis e simples que não desencorajem as entidades empregadoras de contratar trabalhadores fora da sua jurisdição devido a obstáculos fiscais.
Por fim, a par e passo, sublinho que não pode ser, em momento algum, menosprezada a circunstância de os teletrabalhadores transfronteiriços correrem o risco de criar inadvertidamente um estabelecimento estável para as suas entidades empregadoras. Com efeito, se é certo que a OCDE já se pronunciou pela inexistência de estabelecimento estável pela circunstância de os trabalhadores continuarem a trabalhar a partir de casa após o termo da pandemia Covid-19, nas situações em que desempenhem funções a partir de país distinto do da sede da sua empresa, é imprescindível que a União Europeia também tome uma posição sobre esta questão, no sentido de, novamente, tornar cristalinos quais os pressupostos em matéria de competência para tributar.
 
VE - A questão dos trabalhadores transfronteiriços coloca-se apenas entre Portugal e Espanha, ou também envolve, trabalho com deslocações entre Portugal e França ou Portugal e Alemanha?
AG - Com o teletrabalho, o trabalho transfronteiriço acabou por sofrer alterações inevitáveis. Por isso mesmo, é cada vez mais comum que esta problemática se coloque não só entre Portugal e Espanha, acabando, ao invés, por se estender a outros países mais distantes, como é o caso, claro está, da França e da Alemanha. Aliás, cumpre sublinhar que, com os avanços experimentados no mundo tecnológico, é factual que, por exemplo, os famigerados nómadas digitais conseguem exercer as suas profissões em qualquer região do globo, por mais distante que seja.
Virgilio Ferreira virgilioferreira@grupovidaeconomica.pt, 06/01/2023
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